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A entrevista narrativa como construção de dados: coerência entre teoria e método

2 EXPERIÊNCIA ESTÉTICA

4.2 A entrevista narrativa como construção de dados: coerência entre teoria e método

A entrevista narrativa (EN) é um método diferenciado das demais formas de entrevista, principalmente por seu caráter não diretivo, presente nos formatos pergunta- resposta. Composta por informante (narrador) e pesquisador (ouvinte), a EN exige do pesquisador o desafio de despertar ou instigar narrativas em seu informante (Jovchelovitch & Bauer, 2002).

Tais narrativas podem perpassar pelas impressões tanto do real como da

fantasia do narrador e devem abarcar uma estrutura sequencial composta por começo, meio e fim. Para os pesquisadores Jovchelovitch e Bauer (2002), a EN é indicada em

pesquisas que combinam histórias de vida a contextos sociais específicos.

Contudo, apesar de considerar as definições da EN exploradas pelos autores, neste trabalho, partimos da premissa de que, mesmo existindo uma delimitação entre pesquisador/entrevistador e informante/narrador, durante a entrevista, essa delimitação é tênue e possui um caráter dialógico. Isso porque, como explicitamos na apresentação deste trabalho, trata-se de uma pesquisa realizada em um contexto comum aos/às participantes e à pesquisadora. Isso implica pensarmos sobre o duplo papel assumido pela pesquisadora nas ENs: ora como pesquisadora ouvinte, ora como a própria

narradora.

Assim, aproximamo-nos também das contribuições de Oliveira (2012) sobre

experiências narrativas. Para a autora, “narrativizar a experiência é mais que enunciar

em primeira pessoa textos sociais; envolve sempre agregar à trama dos discursos um

plus de sentido subjetivo” (Oliveira, 2012, p. 370) — sentido este que integra as

Para Jovchelovitch e Bauer (2002), a EN visa privilegiar a linguagem do

narrador — fato que exige do pesquisador um cuidado e uma apropriação da

linguagem do outro na reformulação de sua própria linguagem. Para que isso ocorra, toda EN requer, antes de sua ocorrência, um convívio aprofundado com os sujeitos do e no campo de pesquisa. Esse aspecto, neste trabalho, foi facilitado, pois, na condição de brincante, a pesquisadora já compartilhava uma linguagem comum ao meio havia anos.

Assim, percebemos que esse cuidado com a linguagem que existe na EN é uma das maiores contribuições do método para esta pesquisa. Isso porque tivemos a preocupação em realizar este trabalho com os outros, dando-lhes voz — na medida em que incorporamos essas múltiplas vozes, tanto na estrutura textual da pesquisa quanto na voz da pesquisadora-brincante durante as ENs.

Porém, não se trata apenas de uma incorporação de vozes do outro por parte da pesquisadora. Há, sim uma via de mão dupla em que, ao mesmo tempo que a pesquisadora se apropria dessa linguagem do outro, o outro inevitavelmente também se apropria da sua linguagem: “[...] há um sujeito que fala e produz texto tanto quanto o pesquisador que o estuda” (Amorim, 2004, p. 16).

Dessa forma, não nos cabe a ideia de uma pesquisa neutra, que evidencia o outro (objeto e sujeito de pesquisa) em plenitude ou em sua forma pura, idealista ou romântica. Na realidade, toda pesquisa carrega uma dimensão autoral do pesquisador, que decide por aquilo, do outro, que será evidenciado ou silenciado de acordo com seus objetivos. E esses objetivos abarcam necessariamente uma dimensão política (ou projeto político) de atuação no mundo.

Há, contudo, uma possibilidade, complexa, de buscar um diálogo mais amplo com esse outro e de admitir que, apesar de ser registrada pelo nome do/a pesquisador/a, toda pesquisa é repleta de inúmeras vozes, também autorais (que a constitui). Conforme

apontamos no capítulo 2, para Vigotski (2009), toda criação — seja uma tese, uma obra de arte etc. — parte de um princípio histórico e social. Nesse sentido, esta pesquisa busca evidenciar a multiplicidade de vozes (de sujeitos) que a integra.

Ainda sobre esse assunto, Amorim (2004) desenvolve reflexões importantes sobre o pesquisador e seu outro à luz dos conceitos bakhtinianos de polifonia e

dialogismo. Segundo a autora, “em Bakhtin a polifonia é a marca fundamental de

alteridade” (Amorim, 2004, p. 50) e se efetiva por meio do diálogo com o outro, dos encontros.

A autora esclarece, ainda, que historicamente existe, nas ciências sociais, um grande problema em relação à interpretação do conceito de polifonia (ou de dialogismo), em Bakhtin. Segundo Amorim (2004), na realidade nunca há um

dialogismo absoluto nem um monologismo absoluto em uma pesquisa — do campo ao

seu acabamento textual —, mas sim sempre algo tensionado entre essas duas dimensões.

Nesta pesquisa, é interessante enfatizar essa tensão presente nos diálogos/narrativas emergidos dos encontros dinâmicos da pesquisadora com os/as brincantes; do/s eu/s com o/s outro/s e vice-versa. Esse aspecto dialógico, que permeou a própria prática de campo, aproxima-se profundamente do princípio dialético da abordagem histórico-cultural, discutido no primeiro capítulo.

Outro ponto que tange à EN e reforça a sua coerência com a teoria discutida diz respeito aos aspectos micro e macro que a constitui como método de pesquisa. Segundo Jovchelovitch e Bauer (2002), a EN privilegia a construção de enredos que revelam aspectos micro e o macro dos acontecimentos narrados na história:

é através do enredo que unidades individuais (ou pequenas histórias dentro de uma história maior) adquirem sentido na narrativa. Por isso, a narrativa não é

apenas uma listagem de acontecimentos, mas uma tentativa de ligá-los, tanto no tempo, como no sentido. (Jovchelovitch & Bauer, 2002, p. 92, grifos nossos)

Portanto, o enredo, elucidado por meio das narrativas, seria uma pequena célula de estudo (micro) de um contexto maior (macro) que engloba as atividades artísticas populares; e que nos auxilia a pensar sobre a produção de sentidos na/da constituição dos/as brincantes. Isso dialoga também com a defesa de Vigotski (conforme citado por Cole & Scribner, 2007) de que a essência geral (maior) dos fenômenos psíquicos pode ser investigada por meio de acontecimentos menores, da microanatomia. Assim, a EN pode ser aqui considerada também um estudo micro (da produção de sentidos subjetivos) de um aspecto macro do psiquismo humano (imaginação, criação etc.).

4.3 Especificidades de uma pesquisa de fronteira (psicologia da/e arte): aspectos