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2 EXPERIÊNCIA ESTÉTICA

2.3 Imaginação e criação como regra

Segundo Vigotski (2009), a imaginação e as manifestações inventivas são pilares fundamentais para a compreensão dos processos criativos especificamente humanos, portanto, todo sujeito é um ser criador. Longe de ser um ato ocioso da mente, a imaginação é uma necessidade vital, vinculada à criação. Assim, as criações, emergentes desses processos imaginativos, devem ser vistas mais como “[...] regra do que como exceção” (Vigotski, 2009, p. 16). Dessa forma:

numa perspectiva materialista, histórica e dialética, Vigotski defende que o processo de criação não se reduz ao trabalho produzido por grandes cientistas, gênios ou artistas, mas que envolve também as criações cotidianas de qualquer sujeito. Em toda a ação humana há, para o autor, uma fagulha de criação. (Magiolino, 2015, p. 145)

Ainda para o autor bielorrusso, a imaginação emerge da e na realidade e se subordina “à experiência, às necessidades e ao interesse” (Vigotski, 2009, p. 41) de um dado sujeito ou grupo social: “há uma dependência mútua entre imaginação e

experiência. Se no primeiro caso a imaginação apoia-se na experiência, no segundo é a própria experiência que se apoia na imaginação” (Vigotski, 2009, p. 25), dialeticamente. Vigostki (2009) enfatiza, então, a relação indissociável entre imaginação e realidade. Assim, mesmo nos casos mais fantásticos, como em delírios patológicos, a imaginação fundamenta-se no real. Isso porque o autor entende, inclusive, as bases emocionais humanas como experiências absolutamente reais: “todas as nossas vivências fantásticas e irreais transcorrem, no fundo, numa base emocional absolutamente real” (p. 264).

Nesse viés, o autor defende que há dois tipos de atividades simbólicas decorrentes da plasticidade do cérebro humano. Um desses tipos, denominado atividade

reprodutiva, baseia-se na repetição dos rastros de antigas impressões, algo que já existia

na conduta humana ou já fora vivenciado: “sua essência consiste em reproduzir ou repetir meios de conduta anteriormente criados e elaborados ou ressuscitar marcas de impressões precedentes” (Vigotski, 2009, p. 11). O outro, que mais nos interessa, é denominado atividade combinatória, ou criadora, e parte da combinação e reelaboração de experiências anteriores.

Para Vigotski (2009), o círculo completo da atividade criadora é “concluído quando ela se encerra ou se cristaliza em imagens externas” (p. 39). Esse encerramento é denominado pelo autor como imaginação cristalizada ou encarnada. Segundo ele, as diversas manifestações inventivas, entre as quais encontramos a arte, são viabilizadas pela objetivação de um ciclo imaginativo que se encerra. Essa imaginação cristalizada ou encarnada, por sua vez, é constituída por alguns fatores:

a) a necessidade de adaptação do ser humano ao meio que o cerca, pois, um ser completamente adaptado não possui necessidades de criação: nem desejos, nem anseios de mudança. Assim, a inadaptação impulsiona as ações inventivas;

b) a ressurreição espontânea de imagens, que deriva de algo que “[...] ocorre de repente, sem motivos aparentes” (p. 40). Vigotski (2009) explica tal ressurreição de acordo com as contribuições de Ribot sobre o conceito de criação espontânea. Esta é uma condição adicional para que os anseios, os desejos e as necessidades subjetivas se materializem. A criação espontânea é uma espécie de origem motriz da criação: “os motivos existem [necessidades, desejos, anseios], mas suas ações estão ocultas em formas latentes do pensamento por analogia, do estado afetivo, do funcionamento inconsciente do cérebro” (Ribot conforme citado por Vigotski, 2009, p. 40). Logo, essas

latências são também propulsoras da imaginação cristalizada; e

c) a subordinação à experiência, que “[...] depende da capacidade combinatória e do seu exercício, isto é, da encarnação dos frutos da imaginação em forma material” (p. 41). Assim, autor ressalta a importância das condições externas (do meio circundante). As criações dependem do conhecimento técnico de um sujeito, e esse conhecimento é impulsionado pelas condições históricas e culturais em que ele se encontra: “a criação é um processo de herança histórica em que cada forma que sucede é determinada pelas anteriores” (p. 42). Não há como existir, por exemplo, um grande pianista em uma sociedade onde o piano ainda não foi inventado. Contudo, ao mesmo tempo que, de certo modo, um sujeito é fruto do seu tempo e meio, ele também é construtor, é um ser ativo.

Esse fator da criação e invenção, apontado no item c, é fundamental, pois implica um aprofundamento sobre outro conceito caro a nossa pesquisa: a autoria. Isso porque, no tange à cultura popular, há uma grande discussão sobre a dimensão anônima das produções artísticas, que, em maioria, são denominadas como domínio público. Sobre isso, o professor Nelson Inocêncio, em suas aulas de arte e cultura popular8,

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destacava como, inúmeras vezes, o domínio público camufla a falta de reconhecimento das manifestações populares no Brasil.

Na psicologia histórico-cultural, contudo, Vigotski (2009) problematiza a noção de invenção (sejam elas artísticas, científicas, cotidianas etc.) tendo como base que “nenhuma invenção será estritamente pessoal, já que sempre envolve algo de colaboração anônima” (Ribot conforme citado por Vigostki, 2009, p. 42). Desse modo, a autoria de toda criação (ou imaginação cristalizada/encarnada) será sempre resultante da ampla trama social na qual ela é gerada.

Um exemplo interessante sobre essa dimensão anônima, atrelada às contribuições populares, é evidenciado por Vigotski (1999), ao abordar precisamente a obra do poeta e romancista russo Púchkin [1799–1837].Para o pesquisador,

[...] o antigo ponto de vista, segundo o qual existiria uma diferença de princípio entre os processos e produtos da criação popular e individual, parece hoje abandonado por unanimidade. Hoje ninguém afirmaria que a bilina [canção épica] russa, registrada a partir das palavras de um pescador de Arkhánguelsk, e um poema de Púchkin, cuidadosamente corrigido por ele nos manuscritos, são produtos de diferentes processos de criação. [...] É absolutamente falsa a

concepção segundo a qual a poesia popular surge sem artifícios e é criada por todo o povo e não por profissionais — narradores, cantores, fabuladores

e outros profissionais da criação artística —, donos da técnica do seu ofício, rica e profundamente especializada, da qual fazem uso exatamente como os escritores das épocas mais tardias. Por outro lado, o escritor que fixa o

produto escrito da sua criação também não é, absolutamente, o criador individual da sua obra. Púchkin não é, de modo algum, o autor individual do

O pesquisador evidencia, portanto, a participação coletiva nos processos de criação, seja de um pescador fabulador — que acaba, inúmeras vezes, por se tornar anônimo no decorrer das tensões sociais historicamente marcadas —, seja de um renomado escritor, que também não foge à essas tensões. Logo, a dimensão coletiva da autoria nas invenções humanas marca a nossa constituição subjetiva, de modo que, mesmo se tratando de uma obra atribuída a um único escritor, conforme nos aponta Vigotski (1999), ela será sempre fruto das ações (e aprendizados) coletivas; culturais.

Notamos que essa dimensão da autoria, em Vigotski, dialoga profundamente com as concepções bakhtinianas acerca da memória dos objetos culturais. Em Bakhtin, todos os objetos culturais são discursos portadores de memórias sobre aqueles que vieram antes: “trata-se de uma memória que está na cultura e em seus objetos. Ela perpassa as relações intersubjetivas e as constitui ao mesmo tempo em que é atualizada por elas” (Amorim, 2009, p. 10).

Em alguns desdobramentos interpretativos, percebemos que nem um ato

criador, em Vigotski, nem um objeto cultural, em Bahktin, é novo e exclusivo de um

ato isolado de um sujeito, mas sempre um rememorar de algo que já se passou com outros sujeitos (Amorim, 2009). Ao mesmo tempo, ele nunca é velho, por estar em constante atualização articulada às singularidades dos múltiplos discursos/enunciações culturais: o momento histórico, a dimensão afetiva do discurso, os ouvintes a quem se destina, a memória coletiva que abarca etc. Assim, um discurso — ou um ato inventivo, conforme apontamos — é igualmente criador de futuro e recriador de passado (Amorim, 2009).

Desse modo, não há criação sem apropriação e repetição, tanto em Vigotski quanto em Bakhtin; não há novidade sem assumir/incorporar o antigo. Qualquer objeto ou ato criativo parte desse sistema dialético — e, portanto, contraditório — que abarca o

novo e o velho ao mesmo tempo. É interessante notar, também, que o próprio conceito de imaginação encarnada, em Vigotski, parece carregar a concepção de incorporar algo externo, de encarnar o outro (ou os outros) em uma dada expressão criativa. Assim, qualquer inventor

é sempre fruto de seu tempo e de seu meio. Sua criação surge de necessidades que foram criadas antes dele e, igualmente, apoia-se em possibilidades que existem além dele. [...] A criação é um processo de herança histórica em que cada forma que sucede é determinada pelas anteriores (Vigotski, 2009, p. 42). Contudo, apesar de todo ato criador partir desse dilema entre o novo e o velho, existe uma diferenciação conceitual, fundamental para a nossa pesquisa, entre as invenções não artísticas e as artísticas. A arte, segundo Vigotski (1999), é “uma espécie de sentimento social prolongado ou uma técnica de sentimentos”9 (p. 308, grifos nossos) diferenciada principalmente pela emoção que desperta por meio de seus múltiplos atos, discursos e objetos; emoções estéticas, conforme apontamos no capítulo anterior.

Assim, diferente das emoções geradas na/pela vida ordinária, a obra de arte, e mais precisamente a reação humana a uma obra de arte, transforma um sentimento individual em social, generalizando-o e “superando certo aspecto do psiquismo que não encontra vazão na vida cotidiana” (Vigotski, 1999, p. 308). Essa superação de determinados aspectos psíquicos é explicada pelo conceito de catarse.

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Vigotski (1999) defende que a “arte é o social em nós” (p. 315). Assim, o seu efeito, catártico, é um efeito social. Contudo, o autor se contrapõe a teoria do contagio, e defende que “a refundição das emoções fora de nós realiza-se por força de um sentimento social que foi objetivado, levado para fora de nós, materializado e fixado nos objetos externos da arte, que se tornaram instrumento da sociedade” (p. 315).