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ENTREVISTAS GRAVADAS EM FITA CASSETE PRIMEIRA ENTREVISTA (8/5/2004)

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ENTREVISTAS TRANSCRITAS

ENTREVISTAS GRAVADAS EM FITA CASSETE PRIMEIRA ENTREVISTA (8/5/2004)

TALISSON

Aconteceu na escola durante intervalo entre aulas.

P – Fale-me de sua experiência com a gangue. Como se aproximou, que idade tinha...

T – Eu participei de dois grupos. Tudo começou porque meu pai e minha mãe brigavam muito e aquilo me doía.

Doía ver aquilo e não poder fazer nada. Sabe, eu ficava isolado num canto... chegava em casa era briga, ia pra escola e o tempo foi passando... Com o decorrer do tempo, fui estudar à noite e comecei a trabalhar com meu pai na fábrica de botinas. Eu tinha nove anos... Foi na escola à noite que tive contato com o pessoal e achei que era uma boa e foi onde comecei a caminhar pro lado errado. Meus pais não preocupavam comigo, ficava um pra cada lado... Eu chegava da rua e eles não perguntavam nada... Eu parti pra rua, isolei minha casa. Aí, na turma da escola, eles disseram: “É seu pai tem cola, pega uma pra gente cheirar!” No começo eu dizia: ”Não, não faço isso não!” Só que faltava o afeto dentro de casa. Porque toda criança quando estuda e trabalha quer estar em casa e ter o carinho dos pais...

P – De que maneira faltava esse carinho?

T – De todas! Eu tinha de tudo, roupa, brinquedo, comida, casa, só que só isso não enche, a pessoa vai se

isolando. Aí, você se pergunta: Não é possível esperar um abraço?... Aí você chega à escola, a mãe do fulano fala: “Tchau meu filho, eu te amo”! Você vê aquilo e. (olhos enchem de lágrimas) Eu não tinha prazer em ficar em casa, faltava algo...

P – Você se lembra qual sentimento acontecia nessa situação?

T – Eu pensava que não tinha aquilo e que lá em casa é diferente. Foi onde eu comecei a envolver com a gangue.

Porque além de mim, tinham outros que sentiam as mesmas coisas. A gente se revolta, desconta a revolta do amor que não tem em casa nas pessoas.

P – Você procurou se aproximar de pessoas com sentimentos parecidos aos seus?

T – É, de não ter carinho em casa, do pai e da mãe. A gente se reúne se abre uns com os outros. No começo é um tipo de reunião para falar dos problemas, depois já começa a “matar” aula e ir para a praça. Depois a turma sai e começa com brincadeiras de desligar padrão, riscar carros, furar pneus e quebrar vidraças. E na gangue há um vínculo onde um socorre o outro.

P – O que era isso para vocês?

T – Era um meio de desabafar na rua, igual quando seu pai fala uma coisa e você não pode falar nada ou não tem

autoridade... É como dar um tapa na parede quando se está com raiva. É uma maneira de quebrar o estresse.

P – De onde vinham as idéias do que fazer? T – Do grupo inteiro...

P – Como era a sensação de fazer isto?

T – Era divertido comentar quantos carros a gente arranhou. Parece que aquilo que faltou durante o dia a gente

encontrava ali à noite. Quando chegava em casa o pai não estava nem aí e a mãe também, nem perguntavam nada.

T – Sim, porque se eles me perguntassem e falassem sobre o que eu fazia fora de casa, ficassem em cima, eu

acho que não estaria fazendo aquilo. Mas minha mãe, quando vivia com meu pai, não demonstrava muito que gostava de mim, e como eu era muito novo eu pensava que ela não gostava mesmo! Bom, começou com essas brincadeiras. Aí, a turma ia para a porta só forró e foi juntando mais gente que começamos a brigar.

P – Como as brigas aconteciam?

T – A gente ia para a porta de um bar, o primeiro que passar a olhar para a gente pergunta, o que tá olhando e se

responder... Ah! É ele mesmo. A gente batia na pessoa que não tem nada a ver, podia ser até pai de família ou até um “à toa”.

P – Vocês batem em pessoas de qualquer idade?

T – Não, se for mais de idade, não batia. No máximo era entre 15 e 30 anos e em homens. P – Como era decidido no grupo em quem bater?

T – Isso era dividido, depende do dia. Tem dia que saem de 20 pessoas, outros de 15... Por exemplo, eu estava na

minha casa e meu dia não foi bom. Aí, passa uma pessoa me olhando, eu já estou estressado, aí quero pegar o cara, mas tem outro do grupo que está mais calmo e diz: “Não mexe com isso, o cara é velho, deixa pra lá!”. Então, o próprio grupo controla a pessoa, porque pra bater não tem muita escolha. É igual quando você está dentro da boate e você está envolvido com mulher e chega um cara que você quer bater. É só falar pra menina: “Vai lá e fica com ele!” Às vezes ela é até namorada sua mesmo, ela vai, fica com o cara e a gente chega e fala: “O que você está fazendo com a minha namorada?” Aí, ele apanha até sem saber por que apanhou. Então, na gangue, você mesmo cria uma maneira de estar brigando. A gente apanhava muito também! Porque briga assim em grupo, em gangue você bate e apanha. Porque hoje sai a turma inteirinha, mas vai acontecer um dia de sair sozinho ou só três e aí você apanhava. Eu cansei de apanhar num sábado e no outro sair para bater. Para estar na gangue você tem que ter coragem, tem que ser uma pessoa que não se importa se o fulano quer te pegar porque é isso mesmo!

P – Que idade você tinha quando participou da gangue? T – Fiz parte de onze a 16 anos mais ou menos.

P – Fale-me melhor do que é ter coragem para estar no grupo da gangue.

T – É uma maneira de... Sabe aquilo que eu falei, você vê seu pai e sua mãe dentro da sua casa e quer ajudar e não tem como... Você resolve assim, em casa eu aceito ser mandado, mas na rua ninguém me manda! Então na rua você cresce a coragem. Quantas vezes já fui ameaçado, eu falava “Eu só respeito o meu pai!”

P – Você sabia que poderia se machucar?

T – Sabia. Eu pensava que hoje estou pro que der e vier. É só isso. Ter coragem é enfrentar a ameaça. É como

encarar um grupo, você quer crescer mais ainda!

P – Como é fazer parte da gangue?

T - Ninguém é mais que você! Você bate e se enche, as pessoas te idolatram! Aí, você fica o “rei das mulheres”

e fica conhecido como “bom de briga”! Às vezes a pessoa entra porque no grupo ele perde o medo. Por exemplo, se eu quero uma menina e chego perto dela e diz que prefere o fulano que sabe nadar, pois ele já está com ela. Pode reparar que os outros vão pular dentro d água mesmo tendo medo. É o que acontece na gangue. É igual uma seita, numa seita todo mundo tem que fazer um sacrifício, você tem que abandonar alguma coisa, dar alguma coisa. Iguais a mim, moram aqui no Novo Horizonte e se eu for lá pro Miranda eu vou passar por algo tipo uma aula, como um teste de sobrevivência. Vou ter que brigar com um, com outro, depois mais outro. Vou ter que mostrar para eles que eu sou capaz... Um dia eu tomo a iniciativa de pegar um cara e bater. É uma coisa que pra quem vê, pensa que é tudo combinado e não é, porque vai crescendo dentro de você. Vai acontecendo...

T – Nada é planejado. Aí, tem um momento que a gangue já começa a envolver bebida e ninguém segura. Se a

pessoa estiver na gangue e usar a bebida aí não tem muito limite pra bater, não tem dó de ninguém. Quanto mais a pessoa está sangrando mais prazer você sente, mais você bate. É uma coisa que a bebida estimula...

P – Como é ser “bom de briga”?

T – É o cara que não corre da briga. Este é mais considerado no grupo do que um que é melhor para brigar. Ele

pode apanhar, mas vai em cima para mostrar que não tem medo. Geralmente a gangue segura mais este tipo de pessoa. Já teve vezes de uns apanharem, não dar conta de brigar, igual quando eu treinava capoeira, tinha uns que não davam conta de aprender. A questão de ser bom ou não para brigar não conta muito.

P – Fale-me de seu treino de capoeira, era o grupo inteiro?

T – Eu ia para a capoeira para ter resistência e agilidade. O treinamento não era para a briga e sim para defesa,

porque para brigar não há muita igualdade. E se você solta um golpe e a pessoa te agarra? A maioria das brigas os caras grudam e não tem muito espaço. Em briga de rua, não tem muitos golpes planejados nos treinamentos... É bom ter resistência para agüentar paulada, bicudo, soco e agilidade para fugir de faca. Uma vez levei uma pedrada na cabeça e tive que correr do centro da cidade até o (bairro) Santa Helena. Cheguei quase morto, mas você tem que correr. A lei é essa, senão eles te matam! Ninguém é obrigado a entrar na gangue, mas você precisa ter consciência que se entrou... (aumenta o tom de voz). Está ali pra viver ou morrer! Você está arriscado a qualquer coisa.

P – Como você e seu grupo pensavam esta questão de estar ali para viver ou morrer?

T – A maioria do grupo tinha esta consciência, os caras falavam: “Nossa, a gente tem que sair dessa vida!” Só

que quando você tenta sair, você busca e parece que vem algo pra te... (suspira) empurrar cada vez mais para aquilo. Com o tempo começou a morrer cara da nossa turma... (silêncio). Aquilo ali, nossa, gerava uma revolta imensa!

P – Como eles morreram?

T – Durante algumas brigas. Só que essa revolta fez a turma crescer e a gente dizia que ia vingar. Aí, ficou

naquela a gente pegava eles e depois eles descontavam e foi assim. Um dia teve uma briga e foram 25 dos nossos presos, então conversamos e combinamos de parar e foi cada um para um lado. Eu parei e fiquei uns dois meses sossegado, ajudando a tirar os outros da cadeia.

P – O que você fazia?

T – Ia atrás de advogado. Eles saíram... A gente conversou de novo que esse negócio de turma não dá certo, não

compensa, mas nesse tempo eles mataram outro da nossa turma. Eles o machucaram muito e a gente se revoltou e decidiu acabar com esse problema, mas a polícia conversou com a gente e disse “vocês já estão quietos não façam mais essas coisas!” Começamos a pensar que se matássemos um deles logo ia ser um de nós, foi onde o grupo, em grande parte, se desfez. Uns se casaram e eu desinvoquei da gangue e fui para outros lados. Porque além da bebida eu fui conhecer a droga.

P – Depois que o grupo se desfez é que você começou a usar drogas?

T – Sim. Eu conhecia muitos usuários que já tinham participado da gangue. Primeiro experimentei maconha e

não gostei, não fez minha cabeça. Ah! Quando experimentei cocaína achei o que queria! Você fica acelerado, sabe? Eu sou uma pessoa que sempre gostei de balada, eu acho que eu guardei, até os nove anos, as brigas e discussões (entre meus pais) em casa, também das coisas que eu podia ter feito e não fiz dentro da minha família... (silêncio). É que eu sou uma pessoa que fico guardando e mais pra frente eu vou soltar isto...

P – Como você relaciona a droga e a gangue?

T – A droga não se envolve na gangue, quem usa droga quer ficar só ou com quem também usa. A pessoa não

quer brigar.

T – O primeiro foi de turminha da escola e foi aquilo que lhe falei das brincadeiras de arranhar carro e furar

pneu. O segundo grupo eu conheci na boate quando comecei a freqüentar estes lugares. Eu tinha 14 anos e chegou a ser um grupo de até 60 pessoas.

P – Como você falaria das pessoas que são de gangue?

T – Não é nada demais, o pessoal da gangue durante o dia são pessoas normais elas trabalham e estudam. Eles se

revelam à noite, pois todos se reúnem e só há briga à noite.

P – Atualmente, você faz parte de algum grupo?

T – Não, embora tenha muito cara que me provoca, mas sei que se eu revidar começa tudo de novo. Então fico

quieto. Por exemplo, não posso ir para os lados do bairro Goiás... Tem muitos lá que ainda querem me pegar.

P – Como se sente falando disto?

T – Eu me arrependi por ter machucado muita pessoa inocente.

Momento “informal” e imprevisto (13/11/2004)

Após várias entrevistas desmarcadas por Talisson eu o encontrei caminhando perto do seu bairro. Dirigi-me a ele e começamos a conversar. Após os cumprimentos, ele foi logo dizendo:

T – Nossa, eu tô em falta com você! Mas minha vida tá uma loucura... (respira fundo) só de pensar dá vontade de chorar.

P – O que está acontecendo?

T – Eu estava trabalhando muito aqui na plantação de café, pros lados de Santa Luzia (povoado há 45 km de distância de Araguari) Agora saí e sabe... Ontem fiquei sabendo que meu irmão mais novo teve um ataque e foi na casa do meu pai e quebrou tudo lá. Agora, pensa o cara fazer um negócio desses! A mulher dele está grávida e o filho nasce mês que vem! Amanhã eu vou lá ajudar meu pai e depois vou resolver do meu seguro desemprego... Meu pai está superabalado...

P – E agora, como está em sua casa?

T – Estou bravo com minha mãe porque meu irmão foi preso e ela foi lá e tirou ele da cadeia. Acho que ele precisava de uma lição e tinha que ficar preso! Acho que ele tá usando droga.

(Nesse momento Talisson olha para os lados e me convida a sair dali).

T – Vamos sair daqui e andar mais porque não é bom você ser vista comigo. Eu não quero te comprometer. P - Como assim?

T – Ah, eu tenho ajudado muito uns amigos e... Ah, a polícia tem andado muito por aqui e tem me parado muito. P – É está difícil para você...

T – É sim! Quando eu falo com você, contando aquelas histórias, eu acabo comprometendo muitos caras. O meu nome posso falar, mas os outros... Isso envolve a vida de muita gente!

T – Eu sei, mas quando envolve a vida de outras pessoas é difícil! Sabe, eu penso no que aconteceu... Poucos dias depois que você gravou aquela entrevista, os traficantes mataram um amigo meu. Tá difícil, viu! O cara estava lá e agora não está mais.

P – A morte de seu amigo fez você mudar?

T – Não é que eu não queira mais falar é que não estou com cabeça pra isto. Eu até parei com a escola... Mas eu vou retomar porque tenho meu sonho de ser Psicólogo, igual você, e eu vou conseguir!

P – Agora que você não está mais trabalhando, o que vai fazer?

T – Talvez eu vá embora procurar trabalho em outra cidade. Preciso ir, os caras estão me esperando, tenho compromisso... Mas eu vou lá te ajudar a terminar o trabalho! Meu sonho é ajudar os caras. Eu falo pra eles que dinheiro não é tudo. Sabe, eu já tive carro, moto e roupa bonita, hoje eu não tenho mais, e isto não é o mais importante. Porque isto não traz felicidade. Eu falo isso, porque eles às vezes ficam revoltados e com raiva dos “riquinhos”. Eu acho que a gente precisa ficar bem e não depender só de dinheiro. É... Um dia ainda vou conseguir publicar um livro de minha vida.

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