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2 LINHA 00: CARTOGRAFIA COMO PESQUISA INTER(IN)VENÇÃO COM OS

2.4 Estratégias e Ferramentas Metodológicas

2.4.3 Entrevistas Narrativas

Em relação aos participantes do grupo do Conjunto Ceará, entrevistei três jovens, cada um em um dia diferente, entre os meses de setembro e novembro de 2018: Igor, Iel e, por último Suarez. Para isto, pegamos seus números de whatsapp e combinamos a entrevista entre uma oficina e outra. Propomos-lhe que a entrevista fosse gravada, para podermos acessar os detalhes de suas narrativas, após transcritas. Tentamos também entrevistar Rubens, mas ele não apareceu no dia combinado, e Marley, que também não pôde nos encontrar. Em junho de 2019, entrevistei Emanuel, em conjunto com extensionistas do VIESES, que estavam realizando outro trabalho, e, em setembro do mesmo ano, entrevistei, sozinha, Pedro Bala, que estava acompanhado de João Grande.

A Pesquisa-Intervenção não se dá apenas dentro de um grupo. Por meio da entrevista com manejo cartográfico, buscamos acompanhar processos, movimentos, instantes de ruptura, momentos de mudanças presentes nas falas, considerando experiência como principal característica da pesquisa. (TEDESCO; SADE; CALIMAN, 2013). Na maioria das entrevistas, propomos aos entrevistados que falassem sobre suas histórias (“Me fala um pouco sobre sua história de vida?”) e, a partir do que narravam, fazíamos questionamentos relacionados ao que nos chamava a atenção e ao que se conectava com a pesquisa. No caso de Emanuel, sua narrativa de história de vida não ocorreu a partir de um ponto de partida inicial lançado, pois, nas circunstâncias em que a entrevista aconteceu, em conjunto com pesquisadoras que estavam voltadas para outras temáticas, o momento se desenvolveu a partir de perguntas e trocas ao longo de sua fala.

Ressalto que esse processo não tinha como objetivo se reduzir ao conteúdo da experiência e à representação que os entrevistados faziam do que contavam. A troca de informações e o acesso à experiência vivida não são a única direção (TEDESCO; SADE; CALIMAN, 2014). Há três diretrizes que auxiliam esse momento da entrevista: ‘1. A entrevista visa não à fala “sobre” a experiência, e sim à experiência “na” fala; 2. a entrevista intervém na abertura à experiência do processo do dizer; 3. A entrevista busca a pluralidade de vozes” (TEDESCO; SADE; CALIMAN, 2014, p. 99-100).

Assim, quando os jovens faziam seus relatos, nossa atenção se voltava também para a experiência produzida na própria fala, com suas variações de entonação, de ritmo e de velocidade, junto a expressões faciais e corporais. Compreendemos que a entrevista não é apenas um meio de acesso à experiência, ela própria se constitui como experiência, e buscávamos nos manter atento em sua escuta, percebendo se os jovens hesitavam em tocar em certos assuntos, se certas histórias eram carregadas de emoção durante as narrativas, se estavam confortáveis ou não, etc.

Nossa fala, ao entrevistarmos, também produz e modula o processo de dizer de quem entrevistamos, de modo que a entrevista é produtora de realidades. A construção da experiência ao longo da entrevista deve estar aberta para variações e multiplicidades, devendo- se evitar seu fechamento em formas totalizantes. A segunda diretriz nos fala sobre “os efeitos das intervenções do entrevistador sobre a experiência do dizer em curso” (p.106), que podem abrir questões e movimentá-las, ou, ao contrário, contribuir para seu fechamento. A tentativa era de que meu manejo se desse na direção de criação de novas perspectivas, acolhendo opiniões e palavras, mas sem se fixar nelas, procurando fazer intervenções e desvios.

A entrevista também se constitui na mobilização de um campo coletivo, colocado em movimento pelas narrativas. A terceira diretriz enfatiza a importância das múltiplas vozes, que, consistindo em um conjunto de interferências e agenciamentos coletivos de enunciação, produzem novos sentidos, apostando na invenção (TEDESCO; SADE; CALIMAN, 2014). Seguem abaixo descrições das entrevistas com os participantes, a serem analisadas nas Linhas que se seguem:

2.4.3.1. Entrevista com Igor

Durante a entrevista, Igor era sucinto em suas respostas e demonstrava timidez. Iniciamos a entrevista lhe pedindo para falar sobre sua história de vida. Igor nos contou sobre o tempo em que morava no interior e como veio para a capital. Segundo ele, sua cidade no interior era menos violenta e podia andar mais “sossegado” pelas ruas, apesar de, hoje, as facções já estarem lá.

Igor relatou a influência dos conflitos territoriais no seu dia a dia, o medo de transitar pelos espaços, os casos de homicídio de moradores do bairro, e o receio também de policiais. Falou sobre as abordagens policiais, a criminalização, as mortes causas por facções e as motivações dos jovens para entrarem nelas, que se devem a um “status”, um modo de impôr respeito. Em relação às formas de enfrentamento à violência, Igor afirmou ser o diálogo, disse que as pessoas deveriam conversar mais e que o mundo seria melhor se todos tivessem liberdade para ir e vir.

2.4.3.2. Entrevista com Iel

No término de uma das oficinas, perguntei a Iel se ele toparia fazer a entrevista naquele dia e ele respondeu que sim. Já havíamos conversado com ele em outro momento sobre

esta proposta.

Realizamos a entrevista sentados sobre os altos degraus entre a piscina e a quadra de esportes. Estávamos mais à vontade e tranquilos em relação ao tempo, o ar estava fresco e ventilado, o que, juntamente com a personalidade de Iel, contribuiu para um momento agradável e descontraído.

Iel é extrovertido e comunicativo. A partir do disparador “fale sobre sua história”, Iel iniciou a entrevista falando que sua história “era uma loucura”, disse que não tem medo de nada. Sobre as facções e conflitos territoriais, Iel contou sobre as dificuldades de transitar pelo bairro, amigos que foram mortos, pessoas que tiveram que sair de casa, etc. No entanto, afirma também a relação de afeto que os membros das facções tem com moradores do bairro.

No discurso de Iel, esteve bastante presente a violência policial, criminalização por parte da polícia e de pessoas na rua e as situações de preconceito que já passou por ter cumprido e ainda cumprir medida socioeducativa, como a dificuldade de conseguir emprego. Contudo, demonstra força ao falar disto, ressaltando que não se deve “abaixar a cabeça” para ninguém. Afirma que a violência poderá diminuir através de mais opções de lazer, como praças, e ressalta a importância dos jovens conversarem e terem suas vozes escutadas.

2.4.3.3. Entrevista com Suarez

Entrevistamos Suarez após o término de uma das oficinas, na mesma área que havíamos entrevistado Iel algumas semanas antes. Seu irmão, W., que sempre o acompanhava no grupo, ficou esperando a entrevista terminar, conversando com Iel.

Relata que o que mais lhe marcou foi o assalto que realizou em um ônibus junto com um colega. Este colega foi baleado pelo motorista durante o assalto, morrendo poucos dias depois. Suarez fala do linchamento que sofreu no ônibus, da chegada do Raio e dos policiais da Força Tática e da sua foto que estes últimos expuseram no facebook. Conta sobre sua chegada na Delegacia da Criança e do Adolescentes (DCA), do encontro com sua mãe e irmã, do tratamento dos policiais da delegacia e da sua entrada no centro socioeducativo de internação. Suarez falava praticamente sem pausas, de modo que pouco intervínhamos, buscando acompanhar o que ele ia nos relatando. Tinha o discurso elaborado e nos envolvia com a sua história, que nos foi contada com detalhes e emoção. Disse que, atualmente, é acompanhado pelo Ceará Pacífico e pela Rede Acolhe, adora futebol e acompanha a torcida organizada no dia a dia e ações da comunidade, como dia das mães, dias dos pais e dia das crianças.

2.4.3.4. Entrevista com Emanuel

Entrevistei Emanuel junto a duas integrantes do VIESES que estavam preparando outro trabalho do VIESES. Emanuel se dispôs a ir até a UFC e o entrevistamos em um dos pátios, a céu aberto, sentados(as) em roda, próximos(as) a outros(as) alunos(as). Emanuel segurava uma história em quadrinhos (HQ) chamada “Maus”, que aborda o holocausto nazista, ao longo da Segunda Guerra Mundial.

Durante toda a entrevista, Emanuel ressaltou sua relação com a poesia e a palavra. Conta que seu contato com a leitura, a escrita e poesia se deu através do rap e da descoberta de escritores e artistas da favela. Contou sobre a passagem no centro socioeducativo, seus projetos após sua saída, sua ligação com esta problemática e enfatiza diversas formas de subverter estereótipos por meio da arte. A entrevista foi longa, Emanuel parecia estar à vontade, expunha bastante suas opiniões e indignações.

Desligado o gravador, conversamos mais um pouco. Comentei sobre a HQ que ele estava segurando, da qual eu estava me lembrando dias atrás. Falamos sobre o atual governo e eu comentei algo do tipo “poisé, parece que o passado se repete, né?”. Emanuel pontua que, na verdade, como diz um amigo dele, “O passado não se repete, ele rima”. Desde então, essa frase tem ressoado em mim a cada associação histórica que me deparo.

2.4.3.5. Entrevista com Pedro Bala

Pedro Bala é egresso do sistema socioeducativo e meu objetivo inicial era entrevistar apenas ele. Fui ao encontro de abertura do grupo de 2019 e assisti a apresentação do dois, que cumprimentaram os jovens participantes do grupo, cantaram rap e contaram sua história. Pedro Bala estava com o livro “Capitães da Areia” debaixo do braço e, na entrevista, trouxe sua relação com este livro.

Após a apresentação, me apresentei a Pedro Bala e o convidei para uma entrevista. Falei sobre minha pesquisa e o que ela abordava e, ele, de forma simpática, alertou-me que já fizera entrevistas para a Universidade e que só não gostaria que fosse mais uma focada no “crime” e no “ato infracional”.Disse-lhe que seria sobre elementos de sua história de vida sobre os quais ele se sentisse à vontade para compartilhar, e Pedro topou.

socioeducativo, porém João Grande, que estava próximo, foi junto conosco. Acabou participando do momento da entrevista e, assim, também a compôs, contribuindo para fluidez desta. Sentamos juntos no pátio, estando o ambiente fresco e ventilado. Com o alerta de Pedro, que me fez pensar sobre como práticas de pesquisa podem estigmatizar e objetificar, preocupei- me em deixá-los bastante à vontade. Senti que, até mais até do que nas outras entrevistas, tenha sido isto devido ao alerta e/ou ao amadurecimento no processo, guiei minhas intervenções pelo que eles iam me trazendo. A observação de Pedro provocou efeitos em mim e na produção coletiva da entrevista.

Pedro Bala, ainda assim, falou bastante sobre o sistema socioeducativo, a discriminação e a violência policial, demonstrando como certas violações marcam suas trajetórias. No entanto, sobretudo, e de modo significativo, emergiu também sua relação com a poesia, com o rap e como essas expressões ressignificaram (e ressignificam) diversas experiências. A entrevista se deu de forma leve e agradável, com vários risos.

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