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3.2 O APORTE TEÓRICO: CONCEITOS BAKHTINIANOS

3.2.2 Enunciado

Veremos neste item como o enunciado é compreendido pelo Círculo de Bakhtin, por entendermos que esse conceito possui extrema importância na concepção de linguagem que fundamenta este trabalho. Isso porque a linguagem, no pensamento do Círculo, é concebida “do ponto de vista histórico, cultural e social que inclui, para efeito de compreensão e análise, a comunicação efetiva e os sujeitos e discursos nela envolvidos” (BRAIT; MELO, 2005, p. 65).

O termo enunciado, assim como enunciação, tal como foi estudado pelo Círculo, não pode ser encontrado pronto e acabado numa determinada obra, uma

vez que sua construção se deu ao longo do conjunto de suas obras. No entanto, em Bakhtin (2003), há uma teorização bastante consistente acerca do conceito de enunciado, o qual é considerado pelo autor como sendo a unidade da comunicação discursiva.

Para discorrer sobre sua compreensão acerca do que vem a ser o enunciado, Bakhtin parte de algumas críticas que faz à Linguística, primeiramente a do século XIX, a qual relega ao segundo plano a função comunicativa da linguagem para dar ênfase à função da língua enquanto expressão do pensamento, independente da comunicação. Critica ainda a escola de Vossler, a partir da qual a função expressiva passa a primeiro plano, resumindo a linguagem à expressão do universo individual do interlocutor. O conceito de língua, segundo essa corrente, está baseado na necessidade do homem de expressar-se, de exteriorizar-se. Sua crítica toca ainda muitos outros teóricos que propuseram outras variantes das funções da linguagem, mas todas baseadas num equívoco: “a linguagem é considerada do ponto de vista do falante, como que de um falante sem a relação necessária com outros participantes da comunicação discursiva” (BAKHTIN, 2003, p. 270). Tais teorias desconsideram a relação entre o falante e seu interlocutor, aspecto para o qual se direciona a crítica bakhtiniana.

Dessa forma, a relação eu/outro não era considerada; quando se falava no outro, seu papel era de um ouvinte que compreende passivamente o falante; a língua era concebida apenas como meio de comunicação. É nesse sentido que Bakhtin critica veementemente a Linguística que representa os sujeitos da comunicação de forma fixa e acabada: falante, por meio de processos ativos, e ouvinte, por meio de processos passivos. Para o autor, esses esquemas não são de todo errado, no entanto, se o que se pretende é estudar o todo da comunicação verbal, decerto eles se tornam inadequados.

[...] o ouvinte, ao perceber e compreender o significado (linguístico) do discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc.; essa posição responsiva do ouvinte se forma ao longo de todo o processo de audição e compreensão desde o seu início, às vezes literalmente a partir da primeira palavra do falante (BAKHTIN, 2003, p. 271).

Assim, para Bakhtin, toda compreensão de um enunciado gera uma resposta, o que faz com que o ouvinte torne-se falante, ao mesmo tempo em que já é um respondente na medida em que não é o primeiro a falar, pressupondo, assim, a existência de enunciados anteriores, aos quais ele está respondendo: “cada enunciado é um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados” (BAKHTIN, 2003, p. 272).

Bakhtin, então, entende que o enunciado não é uma unidade convencional, mas uma unidade real da comunicação verbal; para ele, as fronteiras do enunciado concreto são determinadas pela alternância dos sujeitos falantes. Antes de seu início, há o enunciado dos outros; com o seu término, o falante passa a palavra ao outro, ou dá lugar à compreensão responsiva ativa do outro ou pelo menos à compreensão ativamente responsiva silenciosa do outro.

Essa alternância de sujeitos de que fala Bakhtin poderá ser verificada de forma mais perceptível no diálogo real; cada réplica do diálogo expressa uma posição do sujeito, a partir da qual se pode tomar uma atitude responsiva. As relações que existem entre as réplicas do diálogo só podem ser percebidas “entre enunciações de diferentes sujeitos do discurso” (BAKHTIN, 2003, p. 276) e não podem ser percebidas entre as unidades da língua, uma vez que não se prestam à gramaticalização.

Sem a alternância de sujeitos e sem considerar os sujeitos falantes, não se pode trabalhar com o enunciado, pois estaríamos nos resumindo à oração9. Bakhtin contrapõe a oração, unidade da língua, esta entendida como sistema gramatical abstrato, ao enunciado concreto, unidade da comunicação socioverbal: “a emoção, o juízo de valor, a expressão são estranhos à palavra da língua e surgem unicamente no processo de seu emprego vivo em um enunciado concreto” (BAKHTIN, 2003, p. 292), ou seja, palavras isoladas são neutras. Já os enunciados nunca serão neutros, e sim acabados, irreproduzíveis, únicos.

Nesse sentido, podemos dizer que o conceito de enunciado, tal como outros conceitos desenvolvidos pela teoria bakhtiniana, é compreendido considerando-se a unicidade e eventicidade do Ser, a contraposição eu/outro e o componente

9 A oração, na perspectiva bakhtiniana, insere-se num contexto de um único e mesmo sujeito falante, não

admitindo uma atitude responsiva. Portanto, a oração como unidade da língua não pode suscitar uma resposta, apenas o faz no todo do enunciado.

axiológico inerente ao ser humano (FARACO, 2006). Os enunciados apontam para outros enunciados; não são autossuficientes, ao contrário,

uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos outros [...] Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva. Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra “resposta” no sentido mais amplo): ela os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles, subentende-se como conhecidos, de certo modo os leva em conta (BAKHTIN, 2003, p. 297).

Considerando esses aspectos do enunciado, vemos que o outro exerce uma influência marcante. Questões como “A quem se dirige o enunciado?”, “Como o falante vê o seu destinatário?”, “De que forma a imagem do destinatário influencia na produção dos enunciados?” orientam a composição e o estilo do enunciado. Assim, o enunciado vai sendo elaborado tendo em vista uma reação-resposta dos outros, do destinatário, que pode ser um interlocutor direto, um conjunto de especialistas, um auditório de partidários ou adversários, de subalternos, de chefes etc. Enfim, “esses outros [...] não são ouvintes passivos, mas participantes ativos da comunicação discursiva [...]. É como se todo o enunciado se construísse ao encontro dessa resposta” (BAKHTIN, 2003, p. 301). O outro, então, constitui o enunciado, uma vez que este é elaborado tendo em vista a reação-resposta do seu interlocutor.

Assim, compreendemos que o conceito de enunciado como sendo a unidade da comunicação verbal, com limites definidos pela alternância dos sujeitos do discurso, aliado à capacidade de suscitar atitudes responsivas do outro, além de se constituir na situação extraverbal e no diálogo com os enunciados alheios, é o mais adequado para o estudo ao qual nos propomos. Fundamentando-se nessa compreensão, consideramos os programas eleitorais gratuitos veiculados pela TV como enunciados, uma vez que estes atendem a todas as propriedades que diferenciam a oração, unidade da língua, do enunciado, unidade da comunicação verbal; dessa forma, procederemos suas análises.