• Nenhum resultado encontrado

Enxergando através do armário: corpos, margens e sexualidades policiadas

A d r i a n o C y s n e i r o s *

O presente artigo é um fragmento de uma disser- tação de mestrado, ainda em elaboração, que tem como objetivo analisar o grupo Dzi Croquettes,1

a partir do documentário homônimo lançado em 2009. A proposta será a de utilizar algumas refle- xões dos Estudos Queer, em diálogo com outras vertentes teóricas, para resgatar e atualizar o po- tencial subversivo do legado deste grupo teatral brasileiro da década de 1970. Nos limites deste texto, darei especial atenção às reflexões sobre a experiência do armário e à performatividade de gênero.

Surgidos no bojo das produções teóricas que questionam os saberes hegemônicos e, para tanto,

enfocam a historicidade das relações e dinâmicas sociais par- tindo de perspectivas não ou contra hegemônicas que deixam exposto o caráter e o envolvimento político desses mesmos estudos com seus contextos, os Estudos Queer, entre outros objetivos, buscam estranhar as normas sociais opressivas que se encontram naturalizadas. Para tanto, juntamente com os Estudos das Subalternidades e os Estudos Pós-Coloniais, dão voz e visibilidade a um largo segmento da sociedade que está nas margens em razão da ininteligibilidade de seus desejos e/ ou práticas para aqueles que se localizam na norma ou em suas imediações. Diálogos e trocas entre as produções teóricas des- ses campos são, mais que possíveis, desejáveis.

A busca por olhares mais amplos e ventilados que enrique- çam a percepção do fenômeno é necessária, ainda que se saiba que nenhum fenômeno poderá ser apreendido em sua totali- dade; bem como aproximarmo-nos das ideologias e estruturas opressivas a partir da perspectiva não só de sua historicidade, mas também de sua inseparabilidade de uma matriz que pro- duz outras segregações e hierarquias tomando por referência uma norma.

A homofobia, o racismo, o sexismo, o heterossexismo, o classissismo, o militarismo, o cristianocentrismo e o eurocentrismo, são todas ideologias que nascem dos privilégios do novo poder colonial, capitalista, masculini- zado, branqueado e heterossexualizado.

Não se pode pensar essas ideologias separadas umas das outras. Todas integram a matriz de poder colonial que em nível global ainda existe. (GROSFOGUEL, 2012, p. 343)

Navegando pelas margens onde os campos se tocam, busco aqui explicitar como a violência da colonização e da heteronor- matividade se aproximam e se confundem ao produzir a expe- riência de inadequação, autoconsciência, mal estar e defasagem

que caracterizam os subalternos em geral, e, de modo especial, os aqui contemplados usuários do armário, aqueles que dese- jam no vasto território das sexualidades não-heterossexuais. Como representantes dos campos da poscolonialidade e das subalternidades, escolhi os pensamentos de Homi Bhabha e Walter Mignolo sobre como se dá a experiência da vida “à mar- gem” da sociedade para enriquecer a presente análise.

Tanto Mignolo (2011) quanto Bhabha (2010), ao tratarem da subalternidade e da colonialidade, não deixam de fora as “se- xualidades policiadas”,2 incluindo nesse rol seus praticantes

juntamente com as mulheres em geral, homens e mulheres “de cor”, pessoas que falam línguas não européias ou nasceram fora do eixo Europa-EUA, que vivem com alguma deficiência ou Human immunodeficiency virus(HIV), entre outros incon- táveis marcadores. Inspirado nestes autores, o presente artigo reflete sobre tais sexualidades do ponto de vista da margem, utilizando a prática dos Dzi Croquettes como ilustração de fa- zeres disruptivos possíveis.

Ao ler o Elogio da criolidade (1990), de Patrick Chamoiseau, Jean Barnabé e Raphaël Confiant, por tantas passagens é possí- vel confundir a experiência da criolidade com a experiência das sexualidades dissidentes.

Nossa verdade foi encerrada no mais profundo de nós mesmos, estranha à nossa consciência e à leitura livremente artística do mundo em que vive- mos. Somos fundamentalmente marcados pela exterioridade. Isso desde os tempos de outrora até os dias de hoje. Temos visto o mundo através do filtro dos valores ocidentais, e nosso fundamento foi ‘exotizado’ pela visão francesa que tivemos de adotar. Condição terrível a de perceber sua arqui- tetura interior, seu mundo, os instantes de seus dias, seus valores próprios com o olhar do Outro. Sobredeterminados, do princípio ao fim, em histó- ria, em pensamentos, em vida cotidiana, em ideais (mesmo progressis- tas), em uma armadilha de dependência cultural, de dependência política,

2

Termo utilizado por Bhabha (2010) para descrever as sexualidades não-heterossexuais ou o que Gayle Rubin chamou de “sexualidades dissidentes” como lembrado por Freitas. (2011, p. 2)

de dependência econômica, temos sido deportados de nós mesmos a cada palmo de nossa história escritural. Isso determinou uma escrita pra o Outro, uma escrita emprestada, apoiada nos valores franceses, ou, em todo caso, fora desta terra, e que, apesar de certos aspectos positivos, não fez senão manter em nossos espíritos a dominação de um outro lugar... De um outro lugar perfeitamente nobre, bem entendido, minério ideal a ser importado, em nome do qual romper a ganga do que nós éramos. (CHA- MOISEAU; BARNABÉ; CONFIANT, 1990, p. 1)

A passagem acima ilustra, em minha opinião, tão bem a violência da colonização quanto à da heteronormatividade.3

Nascemos ante uma censura. Não existe aqui um lamento por nascer em um mundo já organizado e não poder experimentar o lugar do deus do criacionismo ou do Adão do Gênesis, que a tudo nomeou, mas a denúncia de nascer num mundo hierar- quizado e violento no qual se prescreve como cada sujeito deve ser e o que tem de fazer e gostar para que diminua sua defasa- gem em relação a um modelo preestabelecido. Nesse mundo, a experiência de si e da própria sexualidade é censurada por nor- mas e manuais diagnósticos e substituída pela cartilha médico- -pedagógica fascista do desenvolvimento “saudável” ideal. Tal prática disciplinar faz do corpo já e a cada momento um campo de batalha, superfície sobre a qual a disciplina investe na ten- tativa de desarticular corpo e poder somente para em seguida recompô-los “a seu modo”, enquanto o corpo luta por sua in- tegridade. Em que termos se dão essa batalha? Foucault (2000, p. 26) responde:

[...] o estudo desta microfísica supõe que o poder nela exercido não seja concebido como uma propriedade, mas como uma estratégia, que seus efeitos de dominação não sejam atribuídos a uma ‘apropriação’, mas a dis- posições, a manobras, a táticas, a técnicas, a funcionamentos; que se des- vende nele antes uma rede de relações sempre tensas, sempre em ativida-

3 “Por heteronormatividade, entende-se a reprodução de práticas e códigos heterossexuais” de modo inquestionado e inquestionável “com o intuito de reforçar ou dar legitimidade às práticas heterossexuais.” (FOSTER apud MIRANDA, 2010, p. 83-84)

de, que um privilégio que se pudesse deter; que lhe seja dado como modelo antes a batalha perpétua que o contrato que faz uma cessão ou a conquista que se apodera de um domínio.

À sutileza da batalha descrita por Foucault, Bento (2011) acrescenta um importante dado temporal: ela tem início sobre o território dos corpos ainda não nascidos.

Quando este corpo vir à luz do dia, já carregará um conjunto de expectati- vas sobre seus gostos, seu comportamento e sua sexualidade, antecipan- do um efeito que se julga causa. A cada ato do bebê a/o mãe/pai interpre- tará como se fosse a ‘natureza falando’. (BENTO, 2011, p. 1)

Poderíamos antecipar um pouco mais, talvez, e inaugurar o território dos corpos ainda não concebidos fisicamente, os cor- pos que ainda são apenas uma ideia, e muitas vezes uma ideia vaga.

Retorno agora à defasagem anteriormente citada para, arti- culando-a a teoria de Homi Bhabha sobre a identidade, melhor compreender o seu funcionamento.

“Essa tentativa de alguns autores de retratar uma realidade ‘autêntica’, transcendental, anterior à sua eventual narração é vista por Bhabha como uma busca infrutífera pelo começo. Pelas origens, pela anterioridade.” (SOUZA, 2004, p. 118) O modelo preestabelecido falado não é estabelecido antes, mas juntamente com o surgimento do corpo. No entanto, na re- presentação do corpo, ou seja, discursivamente, cria-se para o modelo uma anterioridade fictícia. Na representação instala- -se, assim, uma fenda, um espaço intersticial; a representação da identidade

[...] é sempre espacialmente fendida – ela torna presente algo que está au-

sente – e temporalmente adiada: é a representação de um tempo que está sempre em outro lugar, uma repetição.

A imagem é apenas e sempre um acessório da autoridade e da identidade; ela não deve nunca ser lida mimeticamente como a aparência de uma rea- lidade. O acesso à imagem da identidade só é possível na negação de qual- quer idéia de originalidade ou plenitude; o processo de deslocamento e diferenciação (ausência/presença, representação/repetição) torna-a uma realidade liminar. A imagem é a um só tempo uma substituição me- tafórica, uma ilusão de presença, e, justamente por isso, metonímia, um signo de sua ausência e perda. (BHABHA, 2010, p. 85-86, grifos do autor) O espaço intersticial, ainda que possa trazer a náusea, a im- pressão de defasagem, é um espaço produtivo, “onde o usuário da linguagem por sua vez está situado no contexto socioideoló- gico da historicidade e da enunciação” (SOUZA, 2004, p. 118), revelando “toda a gama contraditória e conflitante de elemen- tos linguísticos e culturais [que] interagem e constituem o hi- bridismo.” (SOUZA 2004, p. 119, grifo do autor)

Sendo o hibridismo “‘o terceiro espaço’ que possibilita o surgimento de outras posições, que desloca as histórias que o constituem e estabelece novas estruturas de autoridade, novas iniciativas políticas, que são mal compreendidas através da sa- bedoria normativa.” (BHABHA apud SOUZA, 2004, p. 127) Nele revela-se o caráter estratégico de sobrevivência das atitu- des de negociação cultural. A cultura é vista como a “produção desigual e incompleta de significação e valores, muitas vezes resultantes de demandas e práticas incomensuráveis.” (BHA- BHA apud SOUZA, 2004, p. 125) Vivendo conflitos oriundos de pressões culturais concorrentes em situações contingen- tes, ambíguas e contraditórias, buscando criar sentido para si numa realidade instável, com fronteiras movediças, os sujeitos

se vêem espremidos entre a busca angustiada por uma imagem que jamais será a coisa em si e a alternativa da tradução.

A tradução é “uma maneira de imitar, porém de uma forma deslocadora, brincalhona, imitar um original de tal forma que a prioridade do original não seja reforçada.” (BHABHA apud SOUZA, 2004, p. 125)

Trata-se de um processo pelo qual as culturas devem revisar seus próprios sistemas de referência, suas normas e seus valores, a partir de e abandonan- do suas regras habituais e naturalizadas de transformação. A ambivalência e o antagonismo acompanham qualquer ato de tradução cultural porque ne- gociar com a ‘diferença do outro’ revela a insuficiência radical de sistemas sedimentados e cristalizados de significação e sentidos; demonstra tam- bém a inadequação das ‘estruturas de sentimento’ (como diria Raymond Williams) pelas quais experimentamos nossas autenticidades e autoridades culturais como se fossem de certa forma ‘naturais’ para nós, parte de uma paisagem nacional. (BHABHA apud SOUZA, 2004, p. 127-128)

O trabalho de tradução que se dá na fronteira é o trabalho de construção de pontes que reúnem a margem do passado e a margem do novo, um novo “que não seja parte do continuum de passado e presente. [...] Essa arte [...] renova o passado refi- gurando-o como um ‘entre-lugar’ contingente, que inova e in- terrompe a atuação do presente.” (BHABHA, 2010, p. 29)

É exatamente ao teorizar a fronteira ou as margens que os trabalhos de Bhabha e Mignolo se tocam.

Bernd (2004) descreve da seguinte maneira o sentido/sensi- bilidade ou o pensamento da margem (border sensing ou border thinking) como tratado por Mignolo: “enunciação fraturada e híbrida (porque construída nas fronteiras de territórios cultu- rais diversos) que não pode mais ser controlada e passa a ofe- recer novos horizontes críticos aos discursos confinados no interior de cosmologias hegemônicas.” (BERND, 2004, p. 105)