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a per formatividade de gênero das personagens não heterossexuais nas

telenovelas da Rede Globo

L e a n d r o C o l l i n g *

Este texto1 aponta algumas das conclusões da pes-

quisa2 realizada por várias pessoas que integram o

grupo Cultura e Sexualidade (CUS), sobre as te- lenovelas, exibidas pela Rede Globo de Televisão, que contiveram em seu enredo personagens não- -heterossexuais (homossexuais, lésbicas, traves- tis, transexuais, transgêneros, intersexos e bisse- xuais).

Em um primeiro texto sobre esta pesquisa (COLLING, 2007), defendi que a representação

destas personagens esteve associada com pelo menos três grandes formas e temas. Na década de 1970, as primeiras obras ligaram as personagens com a criminalidade. Depois, constru- íram as personagens baseados nos chamados estereótipos da “bicha louca”/afetada e/ou afeminados ou das lésbicas mascu- linizadas “sapatonas”, representações muitas vezes criticadas por ativistas e pesquisadores (as).

A partir de meados da década de 1990, as tramas começam a apagar as diferenças entre héteros e não-heterossexuais e o modelo da família nuclear burguesa passa a ser uma das prin- cipais aspirações de gays e lésbicas, em especial. Por isso, na- quele primeiro trabalho, concluí que a heteronormatividade passou a incidir mais sobre as personagens não-heterossexu- ais a partir dos anos 90, mas isso não pode gerar o entendi- mento de que antes ela não afetasse as demais personagens, pois também antes disso binarismo de gênero estava presen- te, por exemplo, na delimitação de papéis e profissões dos ho- mossexuais e nas próprias profissões a eles atribuídas. Além disso, ontem e hoje os gays afeminados das telenovelas costu- mam estar, de certa forma, subjugados a um namorado, assu- mido ou não, que desempenha o papel do “macho” na relação. Neste texto pretendo refletir também sobre essas questões, mas o foco será o de analisar mais detidamente telenovelas exibidas de 1998 a 2008.

A pesquisa do CUS aponta que a heteronormatividade fica apenas mais explícita a partir da década de 1990 e essa repre- sentação, em geral, é elogiada por alguns estudiosos e boa par- te do movimento LGBT brasileiro. Ao final, o trabalho tentará apontar quais foram as formas empregadas para que os gêneros e as sexualidades consideradas dissidentes pudessem ocupar mais espaço na telenovela, mas desde que permanecessem pre- sas à heteronormatividade.

D o i s c o n c e i t o s

Mas o que é afinal heteronormatividade, conceito muitas vezes confundido como sinônimo de homofobia ou de heterossexu- alidade compulsória? Um outro texto ainda precisa ser escrito para responder detalhadamente essa questão. Aqui me conten- to em diferenciar apenas a heteronormatividade da heterosse- xualidade compulsória.

Ainda vivemos em um período histórico em que a heterosse- xualidade é compulsória, mas, pelo menos, na maioria dos países ocidentais, ela não é mais considerada um crime ou doença. Esse foi o período, do final do século XVIII até o século XX, em que a obrigação em ser heterossexual se mostrou mais forte. Hoje, esse período nos deixou como herança a heteronormatividade, que incide sobre todos, sejamos heterossexuais ou não.

Para Spargo, a heteronormatividade “especifica a tendência, no sistema ocidental contemporâneo referente ao sexo-gênero, de considerar as relações heterossexuais como a norma, e todas as outras formas de conduta social como desviações dessa nor- ma.” (SPARGO, 2004, p. 86) Pino acrescenta e conceitua a hete- ronormatividade como o “enquadramento de todas as relações – mesmo as supostamente inaceitáveis entre pessoas do mesmo sexo – em um binarismo de gênero que organiza suas práticas, atos e desejos a partir do modelo do casal heterossexual repro- dutivo.” (PINO, 2007, p. 160) Para Miskolci, a heteronormati- vidade “[...] é a ordem sexual do presente, fundada no modelo heterossexual, familiar e reprodutivo. Ela se impõe por meio de violências simbólicas e físicas dirigidas principalmente a quem rompe normas de gênero.” (MISKOLCI, 2012, p. 43-44)

Na pesquisa realizada pelo CUS, pensamos a heteronorma- tividade associada à performatividade de gênero das persona- gens. E o que é isso? Em Problemas de gênero, Butler (2003) desenhou os primeiros passos do que viria a ser chamada, pos- teriormente, como teoria da performatividade do gênero. De-

pois de fazer uma rigorosa reflexão teórica sobre vários estudos feministas, da psicanálise, da antropologia e da filosofia, a au- tora chega ao capítulo final para defender a tese de que o gênero é performativo.

De Austin, Butler usa a conhecida tese dos atos performa- tivos. O linguista defende que as palavras não apenas descre- vem algo, mas que elas também têm o poder de criar aquilo que enunciam. Assim, quando um juiz ou padre diz “eu vos decla- ro marido e mulher”, a partir daquele momento os envolvidos passam, efetivamente, a ser aquilo que o enunciado determi- nou.

A mesma associação Butler faz para a frase “é menino ou é menina” proferida, atualmente, antes mesmo do parto, no momento da ultrassonografia realizada nas gestantes. A partir desse momento, aquele pequeno feto já passa a ter um gênero e sobre ele incidem todas as normas de gênero construídas e im- postas pela sociedade. Antes de chegar nesse momento, Butler já havia esmiuçado o mecanismo de funcionamento da hete- rossexualidade compulsória e da heteronormatividade, reve- lando como ambas se sustentam através da exigência da linha coerente entre sexo-gênero-desejo e prática sexual.

Assim, Butler defende que, além de obrigar que todos seja- mos heterossexuais (heterossexualidade compulsória) ou que, mesmo que não sejamos heterossexuais, pelo menos estejamos enquadrados dentro das normas tidas como heterossexuais (heteronormatividade), a sociedade também nos obriga a ter um gênero tido como compatível com a materialidade dos nos- sos corpos. E essas exigências, realizadas através de atos, gestos e atuações, são performativas, pois criam os sujeitos que enun- ciam. Para que essas ações tenham êxito é necessário que elas sejam constantemente repetidas e vigiadas.

Mas, com a influência das reflexões sobre o poder em Fou- cault (“onde existe poder, existe resistência/contrapoder”),

Butler destaca que nem todas as pessoas se sujeitam às essas normas e que esses mesmos “gêneros distintos são parte do que ‘humaniza’ os indivíduos na sociedade contemporânea”. E continua: “de fato habitualmente punimos os que não desem- penham corretamente o seu gênero. Os vários atos de gênero criam a ideia de gênero, e sem esses atos, não haveria gênero algum.” (BUTLER, 2003, p. 199) Butler analisa a performances de drags, pois enxerga nelas pelo menos três dimensões que são distintas entre si: sexo anatômico, identidade de gênero e per- formance de gênero.

Essas performances (e notem que performance, no sentido artístico, não é sinônimo de performatividade) foram funda- mentais para Butler sacar a performatividade dos gêneros. “Ao imitar o gênero, o drag revela implicitamente a estrutura imi- tativa do próprio gênero – assim como sua contingência.” (BU- TLER, 2003, p. 196) Ou seja, além de elaborar sua teoria através das reflexões teóricas de outras pessoas, as próprias apresenta- ções de drags nas noites da cena americana ensinaram muito à pesquisadora. Trata-se, portanto, de um exercício de “deixar o objeto falar e saber”, algo ainda um tanto raro nos estudos aca- dêmicos.

O livro Problemas de gênero e também as poucas páginas (cerca de 10) em que Butler trata da perfomatividade de gêne- ro repercutiram além do que era esperado pela autora. Nessa polêmica, o que passou a ser chamado de teoria da performa- tividade de gênero recebeu muitas críticas. Podemos, de forma simplificada, reunir as críticas em dois grandes blocos. Em um deles poderíamos agrupar quem critica o fato de que, para essa teoria, o gênero tem aspecto voluntarista, ou seja, assim como as drags, poderíamos montar um gênero a cada dia ou até mes- mo a cada hora. Trata-se, sem dúvida, de uma leitura apressada e mal feita, pois em vários momentos Butler destaca o quanto

esse conjunto de normas passa a ser interiorizado pelas pesso- as, ou seja, passa a ser constituidor das nossas subjetividades.

Em outro texto, na tentativa de responder a essas e outras questões, Butler é mais explícita e diz que a performatividade de gênero não pode ser entendida sem as restrições constitu- tivas registradas no psiquismo e de que seria um erro associar ou reduzir o exemplo de drags com a nossa performatividade de gênero diária. Para ela, a explicação voluntarista do gênero pressupõe um sujeito intacto que existe antes de assumir um gênero.

O significado da performatividade de gênero que eu gostaria de transmi- tir é bastante diferente. O gênero é performativo porque é efeito de um regime que regula as diferenças de gênero. Neste regime os gêneros se dividem e se hierarquizam de forma coercitiva. [...] A performatividade de gênero sexual não consiste em eleger de que gênero seremos hoje. Per- formatividade é reiterar ou repetir as normas mediante as quais nos cons- tituímos: não se trata de uma fabricação radical de um sujeito sexuado genericamente. É uma repetição obrigatória de normas anteriores que constituem o sujeito, normas que não se pode descartar por vontade pró- pria. (BUTLER, 2002, p. 64-65)

Mas o que Butler quer dizer com “restrições constitutivas”? Encontramos uma boa reflexão sobre essa questão no artigo Identificación fantasmática y la asunción del sexo, que integra o livro Cuerpos que importan. Continuando a responder aos críticos que interpretaram a teoria da performatividade como uma teoria voluntarista do gênero, e apontando os riscos de se defender a desnaturalização da sexualidade, ela reforça o argu- mento de que a sexualidade não é algo que podemos fazer ou desfazer ao nosso bel prazer. Isso porque somos marcados, so- fremos constantemente as restrições,

[...] que incluem o caráter radicalmente inconcebível de desejar de outro modo, o caráter radicalmente insuportável de desejar de outro modo, a ausência de certos desejos, a coação repetitiva dos demais, o repúdio per- manente de algumas possibilidades sexuais, o pânico, a atração obsessiva e o nexo entre sexualidade e dor. (BUTLER, 2008, p. 145)

Essas restrições, diz ela, são “restrições políticas registradas psiquicamente.” (BUTLER, 2008, p. 144) Ou seja, não são res- trições que podemos subverter facilmente.

Essas observações também se tornam muito necessárias para pensarmos nos riscos da tese da desnaturalização da se- xualidade, adotada por Butler e demais estudos queer. Qual seria um dos riscos? Ora, podem nos dizer que se a sexualida- de é construída, não é algo natural, por que os homossexuais, então, não constroem a sua sexualidade de forma a terem uma orientação heterossexual? Por quê não podem existir terapias para transformar homossexuais em heterossexuais? Não aca- bariam aqui assim os nossos problemas? Questões desse tipo partem de dois perigosos pressupostos: 1) reforçam a ideia que seria melhor que todos fossemos heterossexuais (por que não pensar o contrário, em como poderíamos ser mais felizes se todos fossemos homossexuais?) e 2) dão a entender que a so- ciedade não operaria com essas restrições apontadas por Butler. Se por acaso essas restrições não existissem, isso não signi- ficaria que não teríamos mais heterossexuais e homossexuais no mundo, mas teríamos pessoas que transitariam mais tran- quilamente entre as diversas possíveis sexualidades, teríamos uma sociedade que não hierarquizaria as sexualidades e, assim, respeitaria a diversidade sexual e de gênero.

Em um segundo bloco de críticas à teoria da performativida- de, Preciado (2008) e Halberstam (2008), por exemplo, dizem que a materialidade do corpo parece ter sido esquecida ou ne- gligenciada por Butler. No entanto, três anos após a publicação

de Problemas de gênero, atendendo a essas e outras críticas, Bu- tler lança o livro Bodies that matter (Cuerpos que importan) e o inicia da seguinte forma: “existe alguma forma de vincular a materialidade do corpo com a performatividade do gênero?” Em um novo prefácio para a tradução de Problemas de gênero em espanhol (El género em disputa), em 1999, Butler revela que dedicou grande parte dos últimos anos para esclarecer e revisar a teoria da performatividade, que ela própria também teria mo- dificado “em resposta às críticas excelentes.” (BUTLER, 2007, p. 16)

E como a autora responde a pergunta que abre Cuerpos que importan? Antes disso, destaco que não concordo com a crítica de que o corpo, ou a sua materialidade, não estava contempla- da já nos primeiros esboços de Butler sobre a performatividade de gênero. Em vários momentos, ela destaca que o resultado da performatividade passa a se inscrever “na superfície do corpo”, de que o corpo passa a ser “marcado pelo performativo.” (BU- TLER, 2003, p. 194) No entanto, é evidente, a discussão sobre a relação entre a materialidade dos corpos e a performatividade, Butler irá fazer com mais cuidado nessa obra seguinte, em boa medida, como ela mesmo diz, em função das críticas que re- cebeu. E o que, afinal, ela diz? Butler ataca as críticas dos dois blocos citados anteriormente e defende que

[...] a performatividade deve ser compreendida não como um ‘ato’ singular ou deliberado, mas, ao invés disso, como uma prática reiterativa e citacio- nal pela qual o discurso produz os efeitos que ele nomeia. O que, eu espe- ro, se tornará claro no que vem a seguir é que as normas regulatórias do ‘sexo’ trabalham de uma forma performativa para constituir a materialida- de dos corpos e, mais especificamente, para materializar o sexo do corpo, para materializar a diferença sexual a serviço da consolidação do impera- tivo heterossexual (BUTLER, 2001, p. 154)

Butler começa então a fazer uma longa e complexa reflexão para tentar convencer o seu leitor de que a materialidade dos corpos também, mas não só, é constituída de forma perfor- mativa. Entre outros aspectos, ela defende que os corpos são efeitos de uma dinâmica de poder, que a construção do sexo também é uma norma cultural que governa a materialidade dos corpos e que a heteronormatividade possibilita a existência de determinados corpos como humanizados e outros corpos como abjetos, aqueles que não gozam o status de sujeito. Ou seja, assim como existem gêneros ininteligíveis, que não são reconhecidos como gêneros aceitos porque não se enquadram no padrão binário com o qual opera a heteronormatividade, também existem corpos que não são dignos de existir social- mente, são corpos não “apropriadamente generificados”. (BU- TLER, 2001, p. 161)

Butler faz uma crítica tanto às perspectivas essencialistas como às perspectivas construcionistas em relação ao corpo e ao gênero. Segundo ela, essa última perspectiva trabalha com a ideia de que houve um sexo anterior ao gênero. Butler sugere re- pensarmos a oposição entre sexo e gênero. O construcionismo, diz ela, ou pensa que a construção age de forma determinista ou pressupõe um sujeito que faz o seu gênero. Butler contesta essas duas conclusões, pois enfatiza como existem corpos que não se conformam e que não há um “eu” que se coloca antes de ser submetido ao processo de generificação. (BUTLER, 2001, p. 160)

Nos parece, no entanto, que a grande crítica que Butler faz aos construcionistas e, por tabela, também aos seus críticos, é a seguinte: se é possível defender que o sexo é em parte cons- truído e em parte “natural”, é preciso traçar a linha entre o que é e o que não é construído. Onde começa a natureza e termina a incidência da cultura sobre o corpo? Para Butler, quem tentar responder questões desse tipo, ao elaborar essas “fronteiras”,

vai produzi-las a partir de determinadas normas. “Esse proces- so de distinção terá alguma força normativa e, de fato, alguma violência, pois ele pode construir apenas através do apagamen- to; ele pode limitar uma coisa através da imposição de um cer- to critério, de um princípio de seletividade. (BUTLER, 2001, p. 165)

Em uma entrevista concedida três anos depois de Bodies that matter, Butler destaca que seu livro não pode ser lido como um trabalho que procura considerar a materialidade em termos construtivistas, mas que ela busca entender que,

[...] assim como nenhuma materialidade anterior está acessível a não ser através do discurso, também o discurso não consegue captar aquela ma- terialidade anterior; argumentar que o corpo é um referente evasivo não equivale a dizer que ele é apenas e sempre construído. De certa forma, significa exatamente argumentar que há um limite à construtividade, um lugar, por assim dizer, onde a construção necessariamente encontra esse limite. (BUTLER, 2002, p. 158)

De forma resumida e incompleta, em Cuerpos que importan Butler tenta defender que: 1) os corpos são efeitos de uma dinâ- mica de poder; 2) a performatividade é um ato do poder reitera- do do discurso; 3) a construção do sexo é uma norma da cultura que governa a materialidade dos corpos; 4) o “eu” que assume um sexo é formado por esse processo de assumir um sexo, que é desde sempre regulado; 5) o imperativo da heterossexualida- de possibilita certas identificações sexuadas e impede ou nega outras, mecanismo através do qual produz os seres considera- dos abjetos, aqueles que não são propriamente generificados, humanizados, que não gozam do status de sujeitos. A política feminista e queer, defende Butler, pode promover a desidenti- ficação com essas normas regulatórias que materializam a dife- rença sexual. (BUTLER, 2001, p. 156)

Feita essa breve e incompleta explicação sobre alguns con- ceitos centrais para a pesquisa, a seguir apenas apresentaremos algumas reflexões sobre a heteronormatividade e a performati- vidade de gênero de personagens não-heterossexuais presentes em 10 telenovelas exibidas entre 1998 a 2008 pela Rede Globo. Nesse artigo, trataremos sobre as seguintes telenovelas: Torre de babel, Suave veneno, As filhas da mãe, Mulheres apaixona- das, Da cor do pecado, Senhora do destino, América, Páginas da vida, Duas caras e A favorita. Por questões de espaço, aqui não daremos informações sobre o enredo das telenovelas e demais informações. Isso o leitor pode encontrar nos textos específi- cos sobre cada obra, elencados abaixo nas referências bibliográ- ficas e que também podem ser lidos no site.3

A s n o v e l a s

Torre de babel pode ser considerada um marco das mudanças ocorridas na representação das personagens não-heterosse- xuais nas telenovelas da Rede Globo. Exibida de 25 de maio de 1998 a 16 de janeiro de 1999, a obra, desde o início, contava com duas conhecidas atrizes brasileiras – Christiane Torloni (Rafa- ela) e Silvia Pfeifer (Leila) – no papel de um casal de lésbicas de classe alta. As duas faziam parte do núcleo central da trama, o que é raro nas telenovelas da Globo que possuem personagens não-hererossexuais, e eram famosas estilistas. Em função da polêmica que se instalou na época, o autor Silvio de Abreu re- solveu matar as duas lésbicas ainda na primeira fase da trama.

O autor, segundo entrevistas publicadas na imprensa na época, acreditava que a população brasileira não estava pre- parada para aceitar um casal de lésbicas já a partir do início da telenovela. Abreu havia sido bem sucedido com um casal inter- -racial de jovens gays em A próxima vítima, exibida três anos antes. No entanto, diferente de Torre de babel, naquela teleno-

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<www.politicasdocus. com>.

vela a construção do casal e da revelação da homossexualidade foi realizada aos poucos. (BRAGA, 2009?)

Interessa aqui, no entanto, saber como ocorreu a performa- tividade de gênero das lésbicas de Torre de babel. As duas se apresentaram fortemente inscritas dentro de um modelo hete- ronormativo, em especial dentro de uma performatividade de gênero esperada de uma pessoa do sexo feminino. Ambas eram muito delicadas, elegantes, educadas e sinceras. “Não há na representação deste casal uma lésbica masculinizada e a outra feminina. A reprodução do modelo heteronormativo pela per- formatividade através do modelo butch e femme não acontece” (BRAGA, 2009?)

No entanto, a força da heteronormatividade se apresenta de outras formas neste casal. Assim como viria a ocorrer quase 10 anos depois em Páginas da vida, de autoria de Manoel Carlos, com os personagens gays Rubinho e Marcelo, Leila e Rafaela, apesar de evidenciarem amor recíproco, parecem não possuir vida sexual ativa. Elas, assim como eles, não se tocam, não ma- nifestam nenhuma forma de carinho explícita, como beijos, muito menos transam. Fica evidente, nesses dois casais, que a proposta dos autores era a de não chocar os telespectadores e a presumida heteronormatividade que vigora sobre eles.

Apesar disso, Manoel Carlos não precisou matar os seus personagens. O que possibilitou a aceitação do casal de gays e a rejeição das lésbicas? Três das razões possíveis: os gays não faziam parte do núcleo central da telenovela, apareciam pouco nos capítulos, eram representados por atores desconhecidos e, além disso, personagens gays ou lésbicas, nos últimos anos, já não chamam mais a atenção da imprensa, logo, não se instala tão facilmente qualquer polêmica em torno do assunto.

Tanto Torre de babel quanto A próxima vítima também co- laboram para solidificar um discurso ainda muito corrente na sociedade, a de que existe uma forma “normal” e “natural” de

viver a sexualidade. Não é difícil encontrar, inclusive, depoi- mentos dos atores e dos autores dizendo que a proposta deles era a de não criar personagens caricatos, afeminados, mas sim personagens “normais”, como qualquer pessoa. (BRAGA, 2009?; SANTOS, 2009)

Por isso, esses personagens, ainda que apresentem a questão