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O Bioma semi-árido da Caatinga representa um desafio para espécies de mamíferos como os carnívoros, especialmente para os felinos como a onça-pintada e a onça-parda. As suas limitações fisiológicas frente a um ambiente extremo como o do sertão (particularmente na época seca) influenciam no seu uso e ocupação do hábitat. A distribuição e abundância das suas presas, submetidas as mesmas pressões ambientais, influenciam na distribuição espacial das onças e na sua própria abundância populacional. Neste ambiente extremo, qualquer mudança nas populações das presas terá conseqüências nos predadores que dependem delas.

A ocupação humana representa um desafio para a conservação na Caatinga. A dura estação seca do sertão nordestino se combina com a concentração da maior parte da população pobre do pais. Isso deriva em um dos maiores problemas para a conservação dos carnívoros como as onças: uma situação no qual homem e onças competem por uma mesma base de presas para sua alimentação. Neste cenário, e sem políticas de conservação, as onças e as suas presas tem todas as chances de perder.

As ações de conservação não devem limitar-se ao impedimento de ações predatórias por parte de homem. Em alguns casos, o dano causado tem ultrapassado todo limite de recuperação natural das populações das espécies, e para poder recuperá-las são necessárias ações de manejo. As políticas de manejo no Parque Nacional Serra da Capivara, aplicadas desde 1994 numa parceria entre o Estado e a Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM), tem apontado a reduzir ao mínimo o impacto humano e ao mesmo tempo a procurar ações de manejo do recurso água. Os resultados dessas políticas (sugeridas no seu momento devido a crítica situação de conservação no Parque), analisadas ao longo do tempo por diferente estudos, apóiam alguns dos resultados obtidos no presente estudo.

Com a análise de adequabilidade de hábitat encontrou-se que tanto para as onça-parda e pintada, quanto para uma presa potencial, o veado-catingueiro, o recurso das fontes de água artificiais era a variável ambiental mais preferida. No caso das onças, adicionalmente as regiões de serras foram as segundas variáveis ambientais mais preferidas. Isto é congruente com a procura de refúgio nas horas mais quentes do dia, considerando as dificuldades dos felinos para termoregular. Encontrou-se também que entre os machos e fêmeas de onças-pintadas e onças-pardas existem indícios de sobreposição nas suas áreas

181 de vida mínimas, assim como sobreposição nas áreas de vida mínima dos machos entre eles, provavelmente decorrente da aparente baixa densidade de fêmeas devido a uma provável preferência por áreas com condições ambientais mais adequadas para a espécie. Com o uso de diferentes modelos de captura-recaptura identificou-se que atualmente a população de onça-pintada é maior do que a da onça-parda no Parque, e que aparentemente a primeira teria uma taxa de sobrevivência levemente superior a da onça- parda. Com os modelos de ocupação encontrou-se que a probabilidade de detecção das onças teria uma correlação positiva com a altitude, de acordo com as análise de adequabilidade de hábitat. E encontrou-se também que a probabilidade de ocupação de uma área pela onça-pintada seria maior a mais distante dos povoados humanos ela estiver. A falta de essa relação com a onça-parda pode estar refletindo a maior tolerância que esta espécie possui frente aos impactos humanos do que a onça-pintada.

Estes resultados observados são a provável conseqüência das ações de manejo estabelecidas no Parque. Um aumento artificial de um recurso escasso (água), somado a uma eficiente política vigilância (com um decorrente aumento da base de presas unguladas), e a existência de uma paisagem que oferece abrigo frente as duras condições ambientais da Caatinga pode ter mudado completamente a situação populacional entre a onça-pintada e a onça-parda, fornecendo as condições para a primeira recuperar os seus números, e provavelmente influenciar direta ou indiretamente na redução populacional da onça-parda. Os resultados de este estudo, além da descrição da situação entre as onças, fornecem a primeira evidência para a América Latina que é possível recuperar populações de espécies de fauna mediante o manejo de água em zonas semi-áridas, igual ao já reportado amplamente na África.

Com as progressivas mudanças climáticas, são esperados mais processos de desertificação nas zonas semi-áridas. Onde agora está escasseando a água, esta será mais escassa no futuro, especialmente na Caatinga. Frente a esse dilema, é necessário compreender que as políticas de conservação não podem se limitar a impedir a ação humana dentro das Unidades de Conservação, com o intuito de manter um ambiente prístino. As políticas de conservação implicam ações de manejo, e o manejo é ao final das contas uma intervenção. Uma intervenção humana fornecendo um recurso cada vez mais escasso como a água pode ter conseqüências positivas para algumas espécies de fauna, como mostrado em este estudo.

Mas a conservação sem considerar ao ser humano pode estar destinada ao fracasso. Os resultados desta pesquisa limitam-se ao Parque Nacional Serra da Capivara, e talvez

182 possam ser aplicados a Unidades de Conservação na Caatinga. Mas se as pesquisas não se estendem as áreas em volta das Unidades (geralmente povoadas), não será compreendida na sua totalidade a situação das onças e suas presas e as implicâncias das ações de manejo. O sertanejo vem convivendo desde sempre com a falta de água e as duras condições da Caatinga, ao igual do que as onças. Se é possível identificar as fontes desses conflitos e fornecer alternativas, poderiam gerar-se as bases para uma coexistência entre homens e onças no sertão.

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