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“Sim, esta é a vida vista pela vida.”

Clarice Lispector (Água viva)

Esse termo originalmente litúrgico, assim como também se originou a catarse, vem do grego epipháneia que designa manifestação, revelação e do latim epiphania no sentido de aparição. Nesse ângulo expressa uma revelação de cunho religioso, ligado a revelação obtida pelos os três reis magos e o nascimento de Jesus. Segundo o dicionário de teologia bíblica: “Por epifania se entende a irrupção de Deus no mundo, que se verifica diante dos olhos dos homens, em formas humanas ou não humanas com características naturais ou misteriosas que se manifestam repentinamente, e desaparecem rapidamente.” (MILLIET, 1945: 27)

Aplicado atualmente pela crítica literária, o vocábulo epifania passou por uma evolução de significados ao longo da história, assim como a catarse, o qual explicamos no quadro do anexo11. Nesse quadro tentamos evidenciar e sintetizar os nexos que unem os termos catarse/epifania nos diversos contextos, que desembocam finalmente na crítica literária e artística como parte dos processos de criação e iluminação.

Um dos nexos existentes entre catarse e epifania ocorre porque as duas foram ligadas a questões filosóficas. Aristóteles utilizou o termo catarse para explicar o processo ocorrido através da mimese na dramaturgia, como já foi mencionado anteriormente. 12 O benefício segundo Aristóteles estaria pautado no fato que uma pessoa ao sentir sensações intensas através da Tragédia ou da Sátira no teatro era capaz de eliminar de seu interior a tensões geradas rotineiramente, e assim, evitar barbáries humanas. Já a epifania foi analisada através da filosofia de Aristóteles - como menciona o dicionário de Massaud Moisés (2004:157) - visto que a ela é um estado de plenitude, ou seja, instantes de revelação máxima sobre os enigmas da vida. Aliás, podemos pressupor que os cientistas de modo geral anseiam alcançar momentos epifânicos – iluminação plena sobre o objeto pesquisado. Partindo dessa óptica podemos verificar que a expressão “eureka!” (encontrei) atribuída por Arquimedes - ao descobrir um dos princípios da hidrostática - é um vocábulo que designa: solução,

11 O quadro anexo está na p.134. 12 No capítulo 1.4.

descoberta, revelação sobre algo. Sendo assim, a expressão “eureka!” poderia ser trocada por “epifania!”, ou seja, iluminação, revelação substanciosa e profunda sobre algo.

Além disso, a epifania pode ser estudada a luz de Freud, como sugere Massaud Moisés (2004:157). A técnica de associação livre, por ter como alvo uma iluminação interior que faça papel de transcendência dos recalques é um método psicanalítico que pode ser considerado epifânico. Visto que um indivíduo com problemas emocionais e ou mentais requer não apenas um tratamento medicamentoso, contudo uma superação dos entraves internos que o bloqueiam ou que o impedem de desfrutar de uma vida harmônica. Desse modo, verificamos que a epifania no sentido de iluminação plena do íntimo do ser humano conquista-se através da libertação dos recalques, pois uma vez que o indivíduo entende o porquê de seu entrave interior o mesmo poderá elaborar maneiras de superá-lo. A técnica de associação freudiana realiza-se inicialmente por um processo catártico no sentido de purificação e clarificação, tal técnica de associação livre para o desbloqueio da psique decorre da catarse promovida pelas narrativas livres do paciente, espécies de confissões que engendram uma expurgação das emoções negativas recalcadas, permitindo-nos enxergar a catarse como um objeto de purificação essencial para o doente, pois gera uma reorganização mental e emocional eliminando ou minimizando transtornos psicossomáticos; o que se configura como uma espécie de ponte necessária para que a pessoa alcance instantes epifânicos, ou seja, revelação plena de si própria e de suas emoções. Inclusive, no aspecto místico, os que aspiram à santidade têm que se liberar dos conflitos e domínios da carne para alcançar a iluminação e o encontro com Deus tão aspirado.

Jaime Joyce foi quem levou o conceito epifania para o campo literário no sentido de iluminação, revelação. Com base nas teorias filosóficas da escolástica de Santo Tomás de Aquino, que explica e dá o peso estético na Summa Teológica ao termo epifania, atribuindo-lhe três requisitos: harmonia, integridade e iluminação. Joyce traça esse fenômeno inicialmente em Stephen Hero - esboço autobiográfico que o autor realizou aos 19 e 20 anos de idade:

Por epifania, ele entendia uma súbita manifestação espiritual, que surgia tanto em meio às palavras ou gestos mais corriqueiros quanto na mais memorável das situações espirituais. Acreditava fosse tarefa do homem de letras registrar tais epifanias com

extremo cuidado, pois elas representavam os mais delicados e fugidios momentos da vida. (JOYCE, 1949: 188– Stephen Hero)

Dez anos depois nasce o Retrato do artista quando jovem livro que é uma retomada autobiográfica do autor, porém com algumas peculiaridades distintas; na primeira obra é demonstrada uma evolução espiritual mais nítida, uma forma de enxergar o mundo e as experiências intelectuais e emocionais ocorridas por meio dessa óptica diferente, inclusive, o termo epifania é explícito na obra; já em o Retrato do artista quando jovem o termo epifania é implícito e a narrativa segue um caráter de descrição das experiências de um estudante, a epifania desde então é manifestada no criar, no processo criativo do artista.

Joyce considerou, portanto, a epifania como um “momento mágico” o que configura na prática uma iluminação da essência do ser, experiência essa que - para ele - deve ser imortalizada através da escrita. Essa intensa iluminação é retomada em suas demais obras como Dublineses, Ulisses etc.

Segundo Olga de Sá, Clarice demonstra, desde seu primeiro romance Perto do coração Selvagem que foi inspirada por James Joyce, pois a epígrafe deste livro publicado em 1944 é retirada de o Retrato do artista quando jovem. Além disso, Olga afirma que os essenciais elementos epifânicos tais como: a visão transfigurada, os deslumbramentos da beleza mortal, a contemplação, o silêncio sagrado, o som dos sinos do sono, a explosão de alegria profana, a revelação da vida, entre outros, são manifestações epifânicas que ocorreram em Joyce e acontecem de forma afim em Lispector, embora ela nunca tenha citado a palavra epifania em suas obras: “Clarice privilegia este momento da obra de Joyce na sua própria inauguração como romancista. Jamais usa o termo epifania e se tem consciência deste processo, não o demonstra explicitamente.” (Sá, 2000: 194)

De fato, Clarice remonta, desde Perto do coração selvagem, diversos elementos de cunho epifânico: “Mas é que basta silenciar para só enxergar, abaixo de todas as realidades, a única irredutível, a da existência.” (LISPECTOR, 1998: 22 – Perto do coração selvagem). Também é verificado em: “Lori estava fascinada pelo encontro de si mesma, ela se fascinava e quase se hipnotizava. (LISPECTOR, 1998: 72 – Aprendizagem ou livro dos prazeres) O que é observado na maioria de suas obras inclusive nas últimas: “ultrapassar o máximo é viver o elemento puro. Tem pessoas que

não agüentam: vomitam. Mas eu estou habituada ao sangue. (LISPECTOR, 1998: 43 – Água viva). Deste modo entendemos que Lispector buscou a epifania (revelação plena) de diversas maneiras, e ainda revela nesta última citação que não são todos que conseguem suportá-la, mas que ela já está habituada em ultrapassar os limites para ir e ver além do comum. Sá afirma:

Assim como existe em Clarice toda uma gama de epifanias de beleza e visão, existe também uma outra epifania, de epifanias críticas e corrosivas, epifanias do mole e das percepções decepcionantes, seguidas de náusea ou tédio; seios flácidos da tia que a colhem depois da morte do pai, o professor hipocondríaco rodeado de chinelos e remédios, o marido Otávio fraco e incapaz de agredir a vida, a barata, massa informe de matéria viva. (SÁ, 2000: 200)

As citações anteriores inferem o quanto Lispector de modo semelhante com a técnica freudiana de associação livre percorre um caminho em busca clarificação e iluminação. Em Clarice reside uma ânsia constante de construção de sentidos. Por vezes, essa “ânsia” ao invés de demonstrar desejo, parece com verdadeira ânsia de vômito que inquieta e causa mal estar, vindo a ocasionar uma verdadeira necessidade de libertar-se dessa sensação perturbadora. Suas indagações interiores são suas “Náuseas” cotidianas que lhe impõem a busca de solução. Assim como em o Retrato do artista quando jovem de Joyce, a epifania em Clarice é engendrada na produção de sua arte.

Através de tudo que foi refletido podemos verificar o nexo entre as teorias catarse e epifania. No berço dessas palavras verificamos de modo lato que catarse designa purificação, purgação e clarificação e epifania manifestação, revelação e aparição. Ambas as palavras são termos que foram utilizados na religião: a primeira no sentido de preparação, purificação para um rito religioso, a segunda pauta-se como o próprio rito, a liturgia ou acontecimento místico através de uma aparição, revelação espiritual. Neste âmbito vale salientar que James Joyce possui uma forte influência do catolicismo, dos jesuítas e da igreja da Irlanda em sua trajetória de vida. Verificamos ainda que em O Retrato do Artista Quando Jovem, que é um livro autobiográfico, pontua, o tempo todo, a rotina do jovem Stephen Dedalus com os dogmas e normas da igreja católica; demonstrando assim, todo o vigor com que o cristianismo moldou a vida de James Joyce. O que não acontece em Clarice, porque apesar das menções de paráfrases bíblicas utilizadas nas obras dela, verifica-se através de seus textos de cunho mais particular como suas cartas endereçadas a amigos e as suas irmãs que ela não mencionava qualquer fato relacionado a alguma religião. Inclusive, as menções bíblicas são utilizadas com um caráter metafórico entre passado e presente. Iannace postula: “A

Bíblia, quer o Velho ou o Novo testamento, constantemente referida. Presente em momentos de “revelação” das personagens faz-se muitas vezes parodiada.” (IANNACE, 2001: 22) Diferente da literatura de Joyce que demonstra toda normatização que a igreja impera na vida de seus fiéis. Neste aspecto religioso entre os termos catarse e epifania podemos verificar que na literatura de Lispector a epifania encontra-se menos explícita: “Meu Deus, até que ponto vou na miséria da necessidade: eu trocaria uma eternidade de depois da morte pela eternidade enquanto estou viva. (LISPECTOR, 2004:194 – Aprendendo a viver).

Em Lispector verificamos que sua arte, a qual é uma expressão de seu ser, busca construção de sentidos, almeja respostas. E, já que constituir um sentido existencial real parece ser seu desafio de cada dia, Clarice cria para elucidar-se. Sua arte reflete como uma tentativa de compreender o que ainda não lhe está claro. Há uma necessidade permanente em Lispector de alcançar a iluminação, o entendimento perante as coisas, as pessoas e a si própria. Uma sublimação através da clarificação. Uma epifania por meio de objetos catárticos.

2 - O INTRÍNSICO VÍNCULO DA ARTE NA VIDA DE CLARICE