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3 A POSIÇÃO CONSTRUTIVISTA DE ERNST VON GLASERSFELD: UMA

3.3 Epistemologia Construtivista: Mudança no Conceito de Conhecimento e sua

Nessa retrospectiva de alguns aspectos da história da filosofia ocidental ou, mais especificamente, sobre aqueles que envolvem as raízes do construtivismo, pusemos em evidência uma das principais características do construtivismo: ser uma posição cética em epistemologia. De modo especial, essa característica implica a compreensão de que, por meio do conhecimento racional, não temos acesso a uma realidade que existe independente do sujeito. Isso faz que resulte sem sentido a afirmação da epistemologia tradicional de que o

conhecimento “verdadeiro” é aquele que corresponde a uma “representação”, isto é, constitui

uma imagem de uma realidade que existe objetivamente. Tal fato provoca uma mudança na forma de interpretar a relação entre conhecimento e realidade. A realidade deixa, então, de ser entendida como existindo objetivamente e passa a dizer respeito àquela a que, do ponto de vista do construtivismo radical, efetivamente, temos acesso: a realidade experiencial.

É preciso mencionar, entretanto, que, diante da crítica negativa dos céticos, tornou-se indispensável demonstrar o valor do conhecimento racional perdido a partir dela. Assim, sendo impossível assegurar um conhecimento verdadeiro como representação verdadeira de um mundo que existe objetivamente, fez-se necessário algo que não implicasse

“representação”. Essa necessidade foi suprida com a Teoria da Evolução de Darwin, mediante

a utilização do conceito de adaptação, que permitiu substituir a ideia de “representação” pela

ideia de “encaixe” (VON GLASERSFELD, 1996a, 2005).

3.3.1 Um conceito fundamental: adaptação

É em torno do conceito de adaptação que é construído o segundo princípio do construtivismo radical. Sua importância pode ser expressa pelo alerta de von Glasersfeld

(1989a, p. 1) de que “to accept only the first principle is considered trivial Constructivism by

those who accept both, because that principle has been known since Socrates and, without the

aqui, que a ideia do conhecimento como construção do sujeito é bastante antiga. Todavia, a aceitação desse princípio ainda não conduz a uma ruptura com a epistemologia tradicional, que somente se faz possível com a compreensão da cognição como instrumento de adaptação. Dizer que a função da cognição é a adaptação é dizer que ela não produz uma imagem

“verdadeira” do mundo real, mas que sua função é melhorar o gerenciamento do organismo.

O conceito de adaptação, é importante destacar, origina-se da biologia e indica “um relacionamento específico entre organismos vivos, ou espécies, e seu ambiente (VON GLASERSFELD, 1998, p. 20). A adaptação, no sentido darwiniano, é acidental, ou seja, não é algo que o organismo obtém por si mesmo. Constitui num estado, e não numa atividade, que

pode ser resumida da seguinte forma: “tudo que o tem possibilidades de sobreviver num determinado ambiente ‘tem adaptação’ com respeito a ele” (VON GLASERSFELD, 1996a, p.

78). Von Glasersfeld (1980, 1996a, 2005) chama atenção, porém, para um equívoco no entendimento desse conceito, proveniente da própria maneira como Darwin, às vezes, o

utilizou: “sobrevivência do que mais se adapta”, que foi entendido como “sobrevivência do mais apto”. Por isso, deixa claro que adaptação significa apenas a capacidade de

sobrevivência em face as condições e restrições do ambiente. Se os organismos sobrevivem é

porque são viáveis, pois apresentam uma relação de “encaixe” em determinadas circunstâncias. Deste modo, “tanto na teoria da evolução como no construtivismo, ‘adaptar- se’ não significa mais do que ter passado através de quaisquer constrangimentos que possa ter existido” (VON GLASERSFELD, 1995a, p. 88).

Lembremos, no entanto, que, com Vico e Kant, temos os primeiros modelos de como os sujeitos constroem ativamente o conhecimento racional e, consequentemente, de como constroem seu mundo experiencial. Mas ambos ainda recorrem à ontologia. Para von Glasersfeld (1989a), isso ocorre porque nem Vico e nem Kant tiveram acesso ao conceito de adaptação que, do seu ponto de vista, permite prescindir de uma ontologia. O conceito de adaptação permite, consequentemente, diferençar o construtivismo do idealismo ao possibilitar que se evite o pressuposto kantiano das categorias a priori.

Justamente por ter tido acesso ao conceito de adaptação, diferentemente de Vico e Kant, Piaget “[...] via a cognição como um instrumento de adaptação, como uma ferramenta

para nos ajustar ao mundo de nossa experiência” (VON GLASERSFELD, 1995a, p. 40). No

entanto, é preciso destacar que

[...] Piaget foi o primeiro a ver que adaptação no domínio cognitivo/conceptual não era a mesma coisa que adaptação fisiológica dos organismos biológicos. Ele compreendeu que, ao nível da cognição, não era uma simples questão de sobrevivência ou extinção, mas sim de equilíbrio conceptual. É, pois, importante ter

em mente que quando ele fala dessa ‘forma mais elevada de adaptação’, os mecanismos que ele procura são mentais e não biológicos, como sucede o uso vulgar do termo (VON GLASERSFELD, 1995a, p. 103).

Isso significa que a função da cognição, na perspectiva piagetiana, é organizar o mundo que ela própria constrói: o mundo da nossa experiência. A organização, na perspectiva piagetiana, é sempre o resultado de uma interação necessária entre inteligência consciente e ambiente, em que a interação caracteriza-se como adaptação.

Portanto, com o conceito de adaptação, o construtivismo se põe fora da tradição epistemológica, mudando sua forma de interpretar a relação entre conhecimento e realidade, ou melhor, interpretando de forma radicalmente diferente essa relação. De acordo com o construtivismo radical, o conhecimento tem função adaptativa porque a relação entre conhecimento e realidade constitui em adaptação no sentido funcional. Por isso, em vez de

considerar que o conhecimento “corresponde” à realidade, compreende que o conhecimento

adapta-se ao mundo da experiência do sujeito cognoscente. Temos, então, uma mudança no

conceito de conhecimento, que agora significa o “[...] mapeamento das ações e operações

conceituais que provaram ser viáveis na experiência do sujeito conhecedor” (VON GLASERSFELD, 1998, p. 20).

3.3.2 Viabilidade toma o lugar da “verdade”

Como não pretende ser uma teoria tradicional do conhecimento, o construtivismo radical dispensa a noção tradicional de verdade. Para tanto, desenvolveu as ideias que constituem o seu núcleo a partir da história da epistemologia, da filosofia das ciências, da cibernética, das ciências cognitivas, da psicologia do desenvolvimento etc. Nessas áreas do conhecimento encontra os elementos que deram origem a um modo não convencional de pensar, uma vez que possibilita a reconstrução de alguns conceitos fundamentais, entre eles o de conhecimento, que deixa de refletir uma "realidade" ontológica para dizer respeito exclusivamente à ordenação e à organização de um mundo constituído pela nossa experiência. Nesse sentido, um dos pontos centrais do construtivismo radical compreende

exatamente a substituição do conceito de “verdade” pelo conceito de “viabilidade”, uma vez que a “verdade”, no âmbito do construtivismo, jamais poderá ser reivindicada para o

conhecimento que a razão humana produz. Assim, o conceito de viabilidade toma o lugar do conceito de verdade da filosofia tradicional, implicando uma mudança radical no conceito de

“viabilidade”, o construtivismo radical torna-se abertamente instrumental, sendo essa uma das

suas características mais importantes, pois, como afirma von Glasersfeld (1995a), não tem a pretensão de ser nem verdadeiro nem falso, como as conjecturas metafísicas; quer apenas ser um instrumento conceitual que só terá seu valor aferido mediante utilização.

O conhecimento torna-se viável quando atinge as finalidades que foram estabelecidas

para ele. Portanto, “viabilidade” diz respeito à capacidade do conhecimento de, no âmbito da

experiência, nos capacitar a fazer certas predições ou a fazer com que certos fenômenos ocorram ou mesmo impedir que ocorram. Von Glasersfeld (1994) deixa claro que, uma estrutura cognitiva ao alcançar seu propósito, faz apenas aquilo que se esperava dela, significando simplesmente que conhecemos um caminho viável para um propósito estabelecido em circunstâncias específicas do nosso mundo experiencial. Todavia, isso nada diz sobre outros possíveis caminhos ou sobre o alcance do nosso propósito de conectar-nos a uma realidade objetiva. Então, “adaptação”, ou “viabilidade”, como ele prefere, diz respeito à capacidade do conhecimento, não da realidade.

O termo “viabilidade”, é preciso que se evidencie novamente, é preferencialmente

utilizado por von Glasersfeld (1980, 1989b, 2005), em substituição ao termo adaptação, porque evita, na sua opinião, certos mal entendidos provocados pelo seu uso inadequado. Para ele, quando usado como verbo – esta ou aquela espécie se adaptou a tal ambiente –, o termo

“adaptação” pode dar-nos a impressão de ser uma atividade evolutiva desencadeada pelo

próprio organismo que se modifica para se adaptar ao ambiente. Como já foi dito anteriormente, na teoria da evolução, a modificação de genes é sempre acidental e, por conseguinte, são essas modificações acidentais que produzem as variações que a seleção

natural opera. Desta forma, a natureza não seleciona o “mais apto”, apenas permite viver

aqueles que possuem as características necessárias para lidar com seu ambiente, ou seja, que são viáveis, deixando morrer aqueles que não são.

No âmbito da cognição, “adaptação” ou “viabilidade” diz respeito à realização e à

manutenção do equilíbrio interno do sujeito. Sendo assim, o conhecimento tem por função eliminar as perturbações, e buscar manter o equilíbrio, que é “[...] un estado en el cual las estructuras cognitivas de um agente epistémico han arrojado, y continúan haciéndolo,

resultados esperados, sin provocar conflictos conceptuales o contradicciones” (VON