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POR UMA EPISTEMOLOGIA DE REFERÊNCIA PARA O ENCONTRO DA LOUCURA COM O TRABALHO NA ECONOMIA SOLIDÁRIA

CAPÍTULO II – O DISPOSITIVO INTERCESSOR NO ENCONTRO DA LOUCURA COM O TRABALHO NA ECONOMIA SOLIDÁRIA

2.3 POR UMA EPISTEMOLOGIA DE REFERÊNCIA PARA O ENCONTRO DA LOUCURA COM O TRABALHO NA ECONOMIA SOLIDÁRIA

No encontro entre os movimentos sociais do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial e da Economia Solidária que propõem a construção de um projeto de sociedade justa, ética, solidária e não-excludente, tenciona-se pensar o mundo do trabalho coletivo, solidário e autogestionário como campo de luta política de emancipação dos sujeitos da experiência da loucura. Mesmo na condição de secularmente exilados pelo saber e poder científicos da contratualidade social e dos processos de produção e reprodução da vida no cotidiano da sociedade, esses participaram do projeto capitalista de sociedade porque o trabalho esteve presente desde o início da história da loucura como um instrumento de

inclusão perversa (SAWAIA, 2006) destes sujeitos.

Nesse contexto, a postura epistemológica que norteia o presente trabalho tem como mote as contradições existentes no projeto capitalista de sociedade forjado nos últimos séculos no campo da economia, do direito, da religião, da ciência e da mídia. Contradições essas que repercutem nas entranhas da vida cotidiana, nas práticas sociais, nas práticas profissionais, nas relações de poder, nas práticas de produção do conhecimento, nas relações

de produção e reprodução da vida no mundo do trabalho, enfim, em todas as esferas do humano.

Santos (2005, p. 27-28) contribui com a análise das contradições da economia capitalista quando descreve três de suas características negativas, que são:

1. O capitalismo, de acordo com a teoria de Marx, que produz

desigualdades de recursos econômicos e de poder provocadas pela separação entre capital e trabalho e a apropriação privada dos bens públicos entre as classes sociais dentro de um mesmo país e entre os países no sistema mundial.

2. As formas de sociabilidade empobrecidas, baseadas no benefício

pessoal em lugar da solidariedade, produzidas pela concorrência acirrada no mercado capitalista com a redução da sociabilidade ao intercâmbio e ao benefício pessoal. Tal questão está no centro da alienação em Marx e inspira críticas e propostas contemporâneas como no campo das economias populares que procuram ampliar as esferas em que o intercâmbio se baseia na reciprocidade e não somente nos ganhos monetários.

3. O fato da exploração insustentável dos recursos naturais, em escala

globalizada pela produção e consumo capitalistas, colocar em perigo a vida na Terra pelo esgotamento dos recursos naturais dela provenientes.

É nas brechas provocadas pelas contradições existentes nos campos da produção e reprodução da vida pelo trabalho encarnadas no projeto capitalista de sociedade que são constituídos movimentos libertários e contra-hegemônicos a esse projeto. Dentre eles, os que se relacionam à temática que nos inquieta e nos move a conhecer, atuar e produzir conhecimento através do Dispositivo Intercessor. Para isso, é preciso discutir a epistemologia que o fundamenta.

No Dispositivo Intercessor como intercessão-pesquisa (DI/DIMPC), temos o conceito de práxis como estruturante de sua concepção como operador na realidade social e na produção de conhecimento. Sendo assim, a Filosofia da Práxis em Marx nos é de fundamental importância tanto na práxis de intercessão no campo como na práxis universitária, para além dele. Reafirma-se, assim, a dimensão ontológica da centralidade do ser humano e do seu trabalho como práxis, não como mercadoria, e a noção de subjetividade como produção.

Nessa direção, tomamos como referência o Materialismo Histórico em Marx (1997), Bottomore (2008) e Vasquez (2007); as Epistemologias do Sul em Santos (2000, 2001, 2010)

e Santos e Menezes (2010); a Epistemologia da Complexidade em Morin (2000, 2001a, 2001b, 2004); e a Esquizoanálise em Guattari (1990) e Guattari e Rolnik (1996).

Como vemos em Bottomore (1988, p. 292-293), a noção de práxis é discutida por Marx, nos Manuscritos econômicos filosóficos e nas Teses sobre Feuerbach, como a atividade humana livre, universal, criativa e auto-criativa, por meio da qual o homem cria (faz, produz) e transforma (conforma) dialeticamente seu mundo humano e histórico e a si mesmo; é, portanto, uma atividade específica do homem que o torna basicamente diferente de todos os outros seres.

A práxis é uma categoria central para Marx, sendo somente a partir dela que a atividade humana, sua história e o conhecimento ganham sentido e, por conseguinte, a própria filosofia de Marx se torna uma filosofia da transformação do mundo. Nesse sentido, o Homem pode ser considerado o ser da práxis e o Marxismo a filosofia da práxis (VÁSQUEZ, 2007, p. 170).

A práxis seria, então, a concepção na qual o trabalho perde sua dimensão de alienação por ser, também, autoprodutor do ser humano, produzindo sentidos e subjetividades que, por sua vez, podem produzir transformações no próprio trabalho, no ser humano, no conhecimento, na sociedade.

Aqui nos é possível abrir um parêntese para se pensar o trabalho como produtor de subjetividade a partir do pensamento de Marx, que é a referência de Guattari para pensar a subjetividade como produção no registro social. Mesmo não tratando abertamente sobre esse tema, Marx nos oferece uma brecha para considerações, quando estabelece uma correlação entre a materialidade dos meios de produção e do produto dela advindo e a subjetividade no modo do trabalhador expressar sua vida e viver.

O modo pelo qual os homens produzem seus meios de subsistência depende, antes de tudo, da natureza dos meios que eles encontram e têm de produzir. Este modo de produção não deve ser considerado, simplesmente, como a reprodução da existência física dos indivíduos. Trata-se, antes, de uma forma definida de atividade destes indivíduos, uma forma definida de expressarem suas vidas, um definido modo de vida deles. Assim como os indivíduos expressam suas vidas, assim eles são. E o que eles são, portanto, coincide com sua produção, tanto com o que produzem quanto m o como produzem (MARX, 1977,p. 113).

Nessa direção, é preciso fazer aqui uma diferenciação entre trabalho e emprego a partir da proposição epistemológica de que “trabalho não é emprego”, discutida por Suaya (2010, p. 37), ao distinguir trabalho de obra e de ação e ao desagregar o conceito de trabalho dos conceitos de que fazer, emprego, ocupação e labor. Para isso, a autora propõe a recuperação

da experiência como uma instância valorizada e valiosa tanto para o sujeito quanto para a comunidade da qual participa. Nesta, a palavra e o relato, assim como também nos propõe Benjamin (1993), restituem a autoridade que permite a transmissão geracional da experiência, construindo o sentido histórico que produz o laço social, sendo o trabalho um dos eixos importantes de produção de experiência, de sentido histórico e de laço social.

O trabalho é uma ação humana de transformação da natureza que emerge das necessidades de sobrevivência material e subjetiva do ser humano, retroagindo sobre o próprio homem trabalhador, constituindo-o e transformando-o; assim como transforma também suas ferramentas e seu conhecimento sobre formas de produção e de reprodução da vida, produzindo também história, cultura, arte, mitos, formas de ser e de viver. Portanto, é uma prática material, social e subjetiva com uma dimensão ontológica definidora da própria condição humana.

O emprego é o trabalho institucionalizado como mercadoria na relação patrão↔empregado construída a partir da ascensão do capitalismo desde a revolução industrial no século XVIII. Essa é a forma institucionalizada de se trabalhar consolidada como hegemônica durante o século XX, desconfigurada como possibilidade concreta de manutenção da sobrevivência material e subjetiva a partir das crises econômicas, sociais e políticas que aconteceram, nas últimas décadas desse mesmo século, no contexto do capitalismo neoliberal e da globalização econômica.

Nesse sentido, não nos interessa discutir ou refletir sobre o trabalho alienado no formato do emprego e do trabalho precarizado, mesmo sabendo que esse é uma produção histórica que permeia nossas relações cotidianas e nossas contratualidades sociais. Nosso interesse se refere às práticas sociais, políticas, éticas e estéticas dos EESs constituídos pelos sujeitos da experiência da loucura como tentativa de construção de outros territórios existenciais e de produção de modos de subjetivação que contraponham o estigma historicamente estabelecido em relação à loucura como doença mental (alienação) e ao sujeito da loucura como incapaz para o trabalho (impossibilitado de se auto-produzir como um ser da

práxis).

Para Marx, existem diferentes concepções de práxis. A práxis produtiva como a atividade prática, material e transformadora que o homem estabelece – mediante seu trabalho – com a natureza. A práxis artística, em que o trabalho humano transforma a matéria e nela imprime uma determinada forma sem uma conexão direta com uma necessidade prático- utilitária, e antes por uma necessidade geral de expressão e comunicação. A práxis

mais especificamente, de comprovação das hipóteses dos cientistas, estando o experimento a serviço da teoria não pode ser considerada como práxis. Já o experimento artístico ou educativo onde os resultados da atividade prática são aplicados na esfera adequada da realidade, contribuindo com a arte e educação como práxis correspondente, pode ser considerada como práxis. A práxis política, na qual o homem é seu sujeito e seu objeto, atuando sobre si mesmo em busca de sua transformação como ser social, ou seja, mudando suas relações econômicas, políticas e sociais, culminando na práxis revolucionária (VÁSQUEZ, 2007, p. 226-230).

Além disso, o autor discute a questão da atividade teórica em si não ser uma forma de

práxis. Isso se deve ao fato de que esta, mesmo estando em relação com a prática onde

encontra seu fundamento, fins e critério de verdade, não possui os traços privativos da práxis porque se distingue dessa prática em seus objetos, fins, meios e resultados, por ter como fim imediato a elaboração e transformação no campo das ideias e não de transformação da realidade, que permanece intacta.

Ainda que a ‘prática’ teórica transforme percepções, representações ou conceitos, e crie o tipo peculiar de produtos que são hipóteses, teorias, leis, etc., em nenhum desses casos se transforma a realidade. (...) falta nela a transformação objetiva de uma matéria através do sujeito, cujos resultados subsistem independentemente de sua atividade (...) enquanto a atividade teórica em si não modifica o mundo – ainda que mudem nossas ideias sobre ele – não nos parece legítimo falar de práxis teórica (VÁSQUEZ, 2007, p. 232).

O autor, a partir da tese XI de Marx sobre Feuerbach, discute a possibilidade de uma filosofia vinculada conscientemente à prática, tanto como modo de interpretação do mundo como instrumento teórico de transformação da realidade, poder ser considerada como práxis porque, enquanto interpretação científica do mundo, corresponde a necessidades práticas humanas quando expressa uma prática existente que pode vir a se tornar guia de uma práxis revolucionária. Sua conclusão é a de que “a atividade filosófica – desligada da prática ou vinculada conscientemente a ela –, como mera interpretação ou como instrumento teórico de sua transformação (...) é sempre uma atividade intelectual, teórica” (VÁSQUEZ, 2007, p. 236). Por isso, não pode ser considerada como práxis.

É nesse sentido que se pode falar sobre o Dispositivo Intercessor não como práxis teórica, mas sim como práxis no campo que a divisão social do trabalho define como campo de produção de teoria. Melhor dizendo, não é um método, mas sim um modo de inserção na

práxis tanto de produção material (fazer),junto aos sujeitos no campo de intercessão, quanto de produção de conhecimento (saber) como um guia para a ação de outros intercessores. O

intercessor na práxis de intercessão (DI) não pretende operar a priori, tendo em vista que o seu operar é dado no contexto; o DIMPC como práxis universitária de produção de conhecimento sobre a relação do intercessor com os sujeitos no campo de intercessão é a análise do processo de produção do saber na práxis, é um modo de permitir fazer.

As proposições aqui apresentadas situam-se no campo da transitoriedade por se tratar de tentativas de elaboração de algo novo em processo de construção e, portanto, sem a pretensão de se configurar como definidor do que se pode compreender sobre o Dispositivo Intercessor.

Pelas questões relacionadas às dimensões da práxis, tomamos a Filosofia da Práxis que é o Materialismo Histórico, como a referência epistemológica para se operar no campo da relação entre loucura e trabalho coletivo e autogestionário através do Dispositivo Intercessor como intercessão-pesquisa (DI e DIMPC), podendo ou não contribuir com os processos de transformação da realidade social junto aos sujeitos do campo de intercessão e junto a outros possíveis intercessores. Dessa maneira, consciente de sua condição de função, de acontecimento, de produtor de saber em intensão e em extensão ao se relacionar com a práxis

produtiva dos sujeitos no campo da intercessão, o intercessor encarnado tenciona transitar

dialeticamente da teoria à prática e vice-versa.

A ciência com a qual mais nos relacionamos é a Psicologia e, nela, os questionamentos à práxis experimental científica são construídos em função de sua própria natureza epistêmica – uma ciência do ser humano sobre si mesmo – o que a constitui como um universo plural e fragmentário que não pode e nem deve ser homogeneizado (DRAWIN, 1988, p. 236).

A produção de conhecimento em Psicologia, assim como em outras ciências, implica em o ser pesquisador interrogar-se a si mesmo como humano e essa ação não está conformada aos limites metodológicos e epistemológicos impostos pela ciência clássica. Para Drawin (1988), a neutralidade científica não é possível à Psicologia, assim como a outras ciências, por sua íntima vinculação à ética e à razão prática.

Para se entender melhor sua perspectiva, vejamos a seguinte afirmação:

[...] quando alguém teoriza em Psicologia [assim como nas demais ciências], está sempre, de alguma forma, se incluindo, assim como também os seus interlocutores, em sua própria teorização. Ou seja, quaisquer que sejam os seus recursos metodológicos, por maior que seja sua vigilância epistemológica, esse alguém que teoriza não pode evitar a sua autoimplicação, não pode impedir a vinculação, mais ou menos temática, de sua experiência com a teoria (DRAWIN, 1988, p. 50, grifo nosso).

Importante considerar que a Psicologia se insere em um espectro mais amplo de transformações no campo da Ciência em curso desde a segunda metade do século XX e ainda vigente no início do século XXI. Dessas contribuições, destacamos a Transição

Paradigmática em Boaventura de Sousa Santos (2000; 2006), as Epistemologias do Sul em

Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Menezes (2008; 2010) e a Teoria da

Complexidade em Morin (2000; 2004), que se configuram como referências na reflexão e

compreensão a respeito das crises e mudanças em curso na Sociedade e na Ciência.

A transição paradigmática, de acordo com Santos (2000), possui duas dimensões: a

societal e a epistemológica.

Na societal, acontece a concorrência (contradição-competição) entre o paradigma

capital-expansionista dominante, caracterizado pela sociedade patriarcal, pela produção

capitalista, pelo consumismo individualista e mercadorizado, pelas identidades-fortaleza, pela democracia autoritária e pelo desenvolvimento global excludente e o paradigma eco-

socialista emergente, caracterizado pela comunidade eco-feminista doméstica, pelas unidades

eco-socialistas de produção (produção cooperativa, produção autogestionária, pequena agricultura familiar etc.), pelo paradigma das necessidades humanas e do consumo solidarista, pelas identidades de fronteira, pela dimensão comunitária do espaço público e pelo paradigma do desenvolvimento democraticamente sustentável e da soberania reciprocamente permeável (SANTOS, 2000; 2010).

Consideramos que o encontro da loucura com o trabalho, no transcorrer da História, tem sido marcado pela concorrência entre esses paradigmas. Em especial, quando se pensa a respeito de como o trabalho esteve e continua organicamente interligado à produção das práticas de atenção dispensadas aos sujeitos da experiência da loucura desde o tratamento moral do final do século XVIII até as Reformas Psiquiátricas no século XX. Trataremos dessa questão mais adiante, quando analisarmos as relações de poder existentes na relação entre loucura e trabalho no transcorrer da História.

Na epistemológica, por sua vez, o autor considera que a crise do paradigma dominante que engendra as bases para a transição paradigmática na ciência no final do século XX é resultante do próprio avanço no conhecimento que a mesma propiciou. Recorrendo a um recorte teórico de Einstein a Prigogine, Santos (2000, p. 68-71) nos apresenta as bases da transição paradigmática a que se refere:

x O rombo que Albert Einstein provoca no paradigma da ciência moderna está relacionado à relatividade da simultaneidade. Ao buscar responder ao como é que o observador estabelece a ordem temporal de acontecimentos no espaço, ele concluiu

que a simultaneidade de acontecimentos distantes não pode ser verificada, pode tão-só ser definida. Essa teoria revolucionou as noções de espaço e tempo newtonianas, estas deixaram de ser absolutas por não haver simultaneidade universal.

x Werner Heisenberg, com o princípio da incerteza, e Niels Bohr contribuíram com a concepção de que um objeto não pode ser observado e nem medido sem a interferência do observador, havendo, portanto, uma interferência estrutural do sujeito no objeto observado. Com essa concepção coloca-se em questão a hipótese do determinismo mecanicista pela demonstração de que a totalidade do real não poder ser reduzida à soma das partes do objeto que é dividido para ser medido e observado. x Em Kurt Gödel, o rigor da matemática como veículo formal onde a medição é

expressa, é questionado pelo teorema da incompletude e os teoremas sobre a impossibilidade de, em certas circunstâncias, encontrar dentro de um dado sistema formal a prova de sua consistência.

x Em relação à microfísica, à química e à biologia, o autor cita as contribuições de Ilya Prigogine que contrapõe as noções da física clássica de matéria e natureza, resgatando conceitos aristotélicos como potencialidade e virtualidade. Nesse sentido, contrapõe a eternidade com a história; o determinismo com a imprevisibilidade; o mecanicismo com a interpretação, a espontaneidade e a auto-organização; a reversibilidade com a irreversibilidade e a evolução; a ordem com a desordem; a necessidade com a criatividade e o acidente.

Por ser societal e epistemológica, a transição paradigmática em curso constitui-se como um paradigma emergente denominado por Santos (2006) como conhecimento prudente

para uma vida decente.

Na emergência desse paradigma, o autor procura, nas próprias representações inacabadas e abertas da modernidade, os princípios para a superação desta. Dentre os

princípios de regulação que são os de mercado, de Estado e de comunidade, o considerado

mais inacabado é o de comunidade; dentre os princípios de emancipação que são as racionalidades moral-prática, cognitivo-instrumental, performativo-utilitária e estético- expressiva, a considerada mais inacabada e em aberto é a racionalidade estético-expressiva.

Como os princípios da comunidade e da racionalidade estético-expressiva são as representações mais inacabadas da modernidade, deve-se dar prioridade à análise de suas potencialidades epistemológicas que são: a participação e solidariedade; o prazer; a autoria; e o conhecimento retórico. Pretende-se, com isso, restabelecer as potencialidades

emancipatórias ignoradas pela modernidade. Não se trata de procurar um novo equilíbrio entre regulação e emancipação, mas de provocar um desequilíbrio dinâmico que penda para a emancipação em detrimento da regulação, concretizado pela cumplicidade epistemológica do princípio da comunidade e da racionalidade estético-expressiva (SANTOS, 2001, p. 78).

Nessa perspectiva, o autor propõe a transição paradigmática do conhecimento-

regulação para o conhecimento-emancipação, ou seja, do colonialismo para a solidariedade.

O primeiro progride do caos para a ordem, sendo a ordem a forma hegemônica de saber e o caos a forma hegemônica da ignorância. No segundo, a solidariedade é transformada na forma hegemônica de saber e o caos é aceito como forma de saber e não de ignorância, tendo em vista que existe ordem nos sistemas caóticos e caos nos sistemas ordenados.

Podemos perceber que Santos considera como conhecimento-regulação aquele produzido no âmbito da Universidade como instituição da Ciência clássica, esta sendo alvo de críticas por não se ocupar do conhecimento-emancipação produzido pelos ausentes e

emergentes da sociedade global. Mantém-se, assim, uma perspectiva colonialista na produção

do conhecimento, em detrimento da solidariedade como forma hegemônica de saber – tal perspectiva eliminou da reflexão epistemológica o contexto cultural e político da produção e reprodução do conhecimento.

Como crítica a essa perspectiva, Santos e Meneses (2010, p. 11) afirmam a não existência de epistemologias neutras e de neutralidade científica, assim como preconizam pensadores como Edgar Morin. Para os autores, a “reflexão epistemológica deve incidir, não nos conhecimentos em abstrato, mas nas práticas de conhecimento e nos seus impactos noutras práticas sociais”. Essa afirmação configura-se como um dos princípios norteadores do

Dispositivo Intercessor como Meio de Produção do Conhecimento (DIMPC).

A questão também aparece em uma entrevista concedida a Manuel Tavares, em dezembro de 20078, na qual Boaventura de Sousa Santos afirma que: