Como mencionado anteriormente, o problema central relacionado aos pro- dutos caixa diz respeito a encontrar condições sob as quais o produto caixa enumerável de espaços topológicos preserva a paracompacidade. Assumindo a Hipótese do Contínuo, temos uma condição necessária e suficiente para a paracompacidade de produtos caixa enumeráveis de espaços compactos re- gulares envolvendo o grau de Lindelöf (definição 1.2.16). Tal condição será apresentada no teorema 3.2.2. Em seguida, através do exemplo 3.2.3, mos- traremos que o resultado do teorema 3.2.2 não é apenas consequência da Hipótese do Contínuo, e sim uma equivalência do mesmo.
Vamos precisar do seguinte lema por Kunen [Kun78]:
Lema 3.2.1. Seja X um espaço paracompacto regular e B uma base de X. Então qualquer cobertura aberta U de X possui um refinamento V tal que:
1. cada V ∈ V pode ser escrito na forma V = T
n∈ωBn, onde para cada
n ∈ ω temos Bn∈ B e Bn ⊃ Bn+1;
2. ∀W ∈ V, |{V ∈ V : W ∩ V 6= ∅}| ≤ c.
Demonstração. Seja U uma cobertura aberta do espaço paracompacto X, com uma base B. Vamos construir uma sequência de coberturas abertas Vn
de X satisfazendo, para cada n ∈ ω, as seguintes propriedades: I Vn+1 é um refinamento aberto localmente finito de Vn
II Dado Vn+1∈ Vn+1, Vn+1 intersecciona no máximo uma quantidade finita
de elementos de Vn
III ∀Vn+1 ∈ Vn+1, ∃B ∈ B, ∃Vn∈ Vn, Vn+1⊂ B ⊂ B ⊂ Vn
Começamos usando a paracompacidade de X para construir V0 um refi-
namento aberto localmente finito de U . Fixamos então n ∈ ω e supomos que Vn foi construída satisfazendo as propriedades desejadas. Para cada x ∈ X,
escolho Vx tal que x ∈ Vx ∈ Vn. Como X é regular, posso escolher Bx ∈ B
Ox vizinhança aberta de x que intersecciona somente finitos elementos de
Vn. Definimos então a cobertura On = {Ox∩ Bx : x ∈ X}. A partir de
On usamos a paracompacidade de X para criar Vn+1 um refinamento aberto
localmente finito. Temos então que Vn+1 satisfaz as propriedades desejadas.
Terminada a construção das coberturas Vn, definimos :
V = ( \ n∈ω Vn : ∀n ∈ ω, Vn ∈ Vn e Vn⊃ Vn+1 )
Para cada elemento T
n∈ωVn ∈ V, definimos Bn ∈ B para cada n ∈ ω
como o elemento de B no item III. Temos queT
n∈ωVn =T Bn, e portanto V
satisfaz a condição 1 do enunciado do lema. O item II garante que V satisfaz o item 2.
Para mostrar que V cobre todo X, vamos usar um pouco de combinatória. Fixado p ∈ X, vamos construir a seguinte árvore: dado n ∈ ω, um vértice da árvore no nível n é um aberto Vn ∈ Vn tal que p ∈ Vn e para qualquer
nó Vn+1 no nível n + 1 adjacente a Vn existe um aberto Bn ∈ B tal que
Vn+1 ⊂ Bn ⊂ Bn ⊂ Vn. Tal árvore é infinita pois, graça à condição III,
dado qualquer n ∈ ω e um Vn ∈ Vn tal que p ∈ Vn, existe uma sequência
finita (Vi)i<n tal que (Vi)i≤k é um sub-ramo da árvore. Além disso, cada
vértice da árvore possui finitas ramificações, pois as coberturas em questão são localmente finitas. Assim, pelo Lema de König (Teorema 1.1.10), temos que tal árvore possui um ramo infinito, e a intersecção dos abertos de tal ramo vai ser um elemento de V que contém p, como gostaríamos.
Agora temos as ferramentas necessárias para provar o principal teorema desta seção:
Teorema 3.2.2. Supondo a Hipótese do Contínuo (CH), se para cada i ∈ ω, Xi é um espaço topológico compacto Hausdorff, entãoi∈ωXi é paracompacto
se e somente se L(i∈ωXi) ≤ c.
Demonstração. Uma lado da equivalência na realidade não necessita da hi- pótese do contínuo. Suponha i∈ωXi paracompacto. Suponha i∈ωXi pa-
i∈ωXi, aplicamos o lema 3.2.1 para obter o refinamento aberto U0. Seja
Z =Q
i∈ωXi com o produto de Tychonoff. Note que os elementos de U 0 são
fechados Gδ em Z, e portanto se encaixam nas hipóteses do teorema 1.2.22.
Assim, temos que |U0| ≤ c. Como todo refinamento caracteriza trivialmente uma subcobertura, temos que L(i∈ωXi) ≤ c, como queríamos
Para provar a recíproca precisaremos da hipótese do contínuo. Suponha L(i∈ωXi) ≤ c. Note que L(i∈ωXi) = L(∇i∈ωXi), pois como a projeção
q : i∈ωXi −→ ∇i∈ωXi é contínua e aberta, a cada cobertura aberta de
i∈ωXi podemos associar uma cobertura aberta de ∇i∈ωXi e vice-versa. As-
sumindo a hipótese do contínuo, temos L(∇i∈ωXi) ≤ ℵ1. Pelo lema 3.1.4,
temos que ∇i∈ωXié um Pℵ1-espaço. Concluímos então, pelo lema 1.2.28, que
∇i∈ωXi é paracompacto e portantoi∈ωXi também o é, pelo Nabla Lemma
(teorema 3.1.5).
A consequência de CH dada pelo teorema anterior é na realidade uma equivalência, como mostra o seguinte exemplo.
Exemplo 3.2.3. Existe um espaço compacto X tal que w(X) = ℵ2 e ωX
não é normal.
A construção deste exemplo será independente da hipótese do contínuo. Para mostrar que esse exemplo garante que a Hipótese do Contínuo é equiva- lente ao teorema 3.2.2, construímos o espaço descrito no exemplo e supomos a negação da hipótese do contínuo (isto é, supomos válido ℵ2 ≤ c).
Temos assim:
L( ωX) ≤ w( ω) ≤ w(X)ℵ0 = ℵ
2ℵ0 ≤ cℵ0 = 2ℵ0
ℵ0
= 2ℵo×ℵ0 = 2ℵ0 = c
Assim, temos que X e ωX se encaixam nas hipóteses do teorema 3.2.2. Todavia, ωX é Haussdorf, mas não é normal. Portanto ωX não é pa- racompacto, testemunhando a necessidade da Hipótese do Contínuo para o resultado do teorema.
Para construir esse exemplo, precisaremos de mais alguns conceitos: Definição 3.2.4. Dado um espaço topológico X, denotamos por Xδ o espaço
gerada por todos os conjuntos Gδ de X. Chamamos Xδ de Gδ-modificação
de X, ou topologia Gδ de X.
Lema 3.2.5. Dado um espaço topológico Hausdorff X, temos que Xδ é ho-
meomorfo a um subespaço fechado de ωX. Da mesma forma, Xδ também
é homeomorfo a um subespaço fechado de ∇ωX
Demonstração. Defino a função ϕ : Xδ −→ ∇ωX dada por ϕ(x) = q(x) (b _b como na definição 2.2.6). É fácil ver que ϕ é injetora, pois dados x, y ∈ Xδ
distintos, bx ey são diferentes em todas as coordenadas.b
Consideremos a restrição de ϕ ao seu domínio (ou seja,
ϕ : Xδ −→ ϕ(Xδ) ⊂ ∇ωX ). Assim, temos ϕ bijetora.
Vamos mostrar que ϕ é contínua. Note que ϕ nada mais é do que a composição da funçãob· : X → ωX com a projeção q : ωX → ∇ωX. Como por definição temos q contínua, então basta provar que_ : X →b ωX é contínua. Seja A = q(Q
i∈ωAi), onde para todo i ∈ ω temos Ai ⊂ X aberto.
Note que a imagem inversa de A por x 7→x éb T
i∈ωAi, o qual é um conjunto
Gδ em X e, portanto, é aberto em Xδ.
Agora vamos mostrar que ϕ é uma função aberta. Seja V um aberto em Xδ. Podemos supor V um aberto básico escrever V =
T
n∈ωVn, com Vn
aberto em X para cada n ∈ ω. Definimos então cVn = (Vn) ω
para cada n ∈ ω. Note que cVn é aberto em ωX, logo q
c Vn
é aberto em ∇ωX. Como ∇ωX é um P-espaço, temos queT
n∈ωq
c Vn
é aberto em ∇ωX. Note que ϕ(V ) = T n∈ωq c Vn
∩ ϕ(Xδ), logo ϕ é de fato um homeomorfismo.
Note também que ϕ(Xδ) é fechado em ∇ωX. Seja bX = {x : x ∈ X} e fixeb p ∈ ( ωX) \ bX. Existem n, m ∈ ω tais que pn6= pm. Como X é Hausdorff,
existem abertos disjuntos U, V tais que pn ∈ U e pm ∈ V . Considere então a
caixa aberta W =Q
i∈ωWi definida por
Wi = U se i = n V se i = m X caso contrário .
em ωX. Assim, temos que ϕ(X) = qXb
é fechado, pois q é uma função fechada.
Por fim, para mostrar o mesmo resultado relativo a ωX, vamos cons- truir um homeomorfismo ψ : ∇ωX → ψ(X) ⊂ ωX. Para cada Z ∈ ∇ωX, ψ escolhe um representante da classe Z, com a restrição de que se existe b
x ∈ bX tal que bx ∈ Z, então definimos ψ(Z) = bx. A função ψ com tal restrição está bem definida pois como vimos na construção de ϕ, existe no máximo um bx ∈ bX tal quex ∈ Z. Como as classes são disjuntas, temos queb ψ é injetora, logo bijetora. Note também que a inversa de ψ nada mais é do que q. Como q é contínua e aberta, temos que ψ é um homeomorfismo. Definimos então o homeomorfismo entre Xδ e um subespaço de ωX como
a composição ψ ◦ ϕ. Note que ψ ◦ ϕ(X) = bX, o qual já vimos é fechado em ωX, completando a demonstração.
Demonstração do exemplo 3.2.3. Definimos X = Qω2
[0, 1] equipado com a topologia produto usual (produto de Tychonoff). Temos que X é compacto, e como [0, 1] possui base enumerável, temos que w(X) = ℵ2. Pelo lema 3.2.5,
temos que Xδ é homeomorfo a um subespaço fechado de ωX. Como a
normalidade é preservada por subespaços fechados, basta provar que Xδ não
é normal.
Como [0, 1]δ é discreto, segue que Xδ e (Qω2[0, 1]δ)δ tem a mesma topo-
logia.
Considere Z subespaço de [0, 1]δ tal que |Z| = ℵ1. Definimos Y =
Qω2
Z. Como Yδ é subespaço fechado de Xδ, reduzimos novamente o problema a
provar que Yδ não é normal. Para tanto, vamos construir dois conjuntos
fechados que não satisfazem a condição de normalidade:
Primeiramente, indexamos Z = {zα : α ∈ ω1}. Note que todo y ∈ Y é
uma função y : ω2 −→ Z, e Z é equipotente a ω1. Pelo princípio da casa dos
pombos, existe um ordinal α ∈ ω1 tal que |y−1(zα)| > 1. Assim, podemos
α = 0, e da mesma forma construímos C(1). Em outras palavras, C(0) =y ∈ Y : ∀α ∈ ω1, y−1(zα) > 1 ⇒ α = 0 C(1) =y ∈ Y : ∀α ∈ ω1, y−1(zα) > 1 ⇒ α = 1
Note que as funções constantes z0 e z1 pertencem a C(0) e C(1) respec-
tivamente, logo C(0), C(1) 6= ∅. Também é fácil ver que C(0) ∩ C(1) = ∅, pois se existisse p ∈ C(0) ∩ C(1), teríamos que p é uma função injetora. Temos ainda que esses conjuntos são fechados: dado y ∈ Y \ C(0), temos β1, β2 ∈ ω2 distintos tais que β1, β2 6= 0 e y(β1) = y(β2). Considere o aberto
V =Q λ∈ω2Vλ dado por: Vλ = {y(β1)} se λ = β1 {y(β1)} se λ = β2 Z caso contrário .
O conjunto V testemunha que C(0) é fechado, e da mesma forma temos C(1) também o é.
Suponhamos que exista um aberto G tal que C(0) ⊂ G ⊂ G ⊂ Yδ\ C(1).
Para chegar ao absurdo, utilizaremos uma base U de Yδ tal que para todo
U =Q
λ∈ω2 ∈ U e todo λ ∈ ω2 temos
• Uλ 6= Z ⇒ |Uλ| = 1;
• |spt(U )| = ℵ0 e ω1∩ spt(U ) é um ordinal infinito.
De fato, para satisfazer a primeira condição, usamos que [0, 1]δ é discreto.
Para a segunda, usamos que Yδ é P-espaço. Com U em mãos, para cada
α ∈ ω1, vamos construir recursivamente um aberto Uα ∈ U , um ordinal
ηα< ω1, uma função bijetora ϕα : ηα −→ spt(Uα) e um ponto uα ∈ C(0) que
satisfaçam as condições: 1. ω1∩ spt(Uα) = ηα
3. β < α ⇒ ηβ < ηα 4. β < α ⇒ ϕβ = ϕαβ 5. uα∈ Uα ⊂ G 6. ∀λ ∈ ω2, uα(λ) = ( zγ se ∃β < α, ∃γ ∈ ηα, ϕβ(γ) = λ z0 caso contrário
Começamos construindo o caso α = 0. Definimos u0 como a constante
z0. Escolhemos U0 ∈ U tal que u0 ∈ U0. Fixamos η0 = ω1 ∩ spt(U0) como
no item 1. A segunda condição satisfeita pela base U garante que η0 seja
um ordinal e que exista uma bijeção ϕ0 : η0 −→ spt(U0), já que ambos os
conjuntos possuem cardinalidade ℵ0.
Agora seja ν ∈ ω1 tal que para todo α < ν já estejam construídos
Uα, ηα, ϕα e uα. Definimos então Sν = S α<νspt(Uα), θν = S α<νηα e ψν = S
α<νϕα. O item 4 garante que essa colagem é válida e que ψν : θ −→ Sν é
uma função bijetora. Definimos também:
uν(λ) =
(
zγ se ∃γ < θν, ψν(γ) = λ
z0 caso contrário
Note que como ψν é bijetora, temos que uν ∈ C(0). Temos então que uν
foi escolhido distinto dos uα anteriores, ou seja, uν 6∈ {uα : α < ν}. Usando
o fato de U ser base de Yδ, podemos escolher Uν ∈ U tal que uν ∈ Uν
e Sν ∪ (θν + ω) ⊂ spt(Uν). Tal inclusão é possível pois Sν ∪ (θν + ω) é
enumerável, já que tanto Sν quanto θν são uniões enumeráveis de conjuntos
enumeráveis. Assim, definimos ην = ω1 ∩ spt(Uν). Como spt(Uν) \ Sν é
enumerável, podemos extender ψν a uma função ϕν : ην −→ spt(Uν). Temos
então as sequências construídas satisfazendo os itens de 1 a 6. Com as sequências prontas, definimos S =S
α∈ω1spt(Uα) e Φ =
S
α∈ω1ϕα.
Os itens 2, 3 e 4 garantem que Φ é de fato uma função bijetora. Assim, podemos construir um ponto x ∈ Yδ dado por:
x(λ) = (
zγ se λ ∈ S e Φ(γ) = λ
O fato de Φ ser bijetora garante que x ∈ C(1). Pela nossa suposição, temos C(1) ∩ G = ∅, então existe V ∈ U tal que x ∈ V ⊂ Yδ \ G. Pela
construção de U , temos que S ∩ spt(V ) é um ordinal infinito enumerável, logo existe o menor ordinal α tal que S ∩ spt(V ) ⊂ ω1∩ spt(Uα). Pelos itens
1 e 2, temos que ω1 ⊂ S, e portanto S ∩ spt(V ) ⊂ spt(Uα).
Para chegar à contradição, vamos mostrar que Uα∩ V 6= ∅. Denotemos
V =Q λ∈ω2Vλ. Note que Uα∩ V = Y λ∈ω2 (Vλ∩ (Uα)λ)
Portanto, basta provar que para cada λ ∈ ω2 temos Vλ ∩ (Uα)λ 6= ∅. Se
λ 6∈ spt(Uα), temos (Uα)λ = Z, portanto ∅ 6= Vλ ⊂ (Uα)λ. Da mesma forma,
se λ 6∈ spt(V ), temos Vλ = Z, portanto ∅ 6= (Uα)λ ⊂ Vλ. Caso contrário,
temos λ ∈ spt(Uα) ∩ spt(V ). Neste caso, temos
Vλ = (Uα)λ = {x(λ)} = {uα(λ)}
Assim, em cada um dos casos, temos Vλ∩ (Uα)λ 6= ∅, como gostaríamos.