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A escola enquanto espaço inevitável de atravessamento das identidades de gênero

O espaço escolar é considerado como privilegiado no processo de construção do sujeito, uma vez que se torna obrigatório a partir de uma determinada idade, tornando-se um local comum para muitas crianças desde cedo. Utilizando-se do conceito de educação definido

por Meyer (2004, p. 20), o qual “envolve o conjunto de processos pelos quais aprendemos a nos tornar e a nos reconhecer como sujeitos de uma cultura”, notamos que, além de formar intelectualmente, os ambientes escolares ultrapassam o ensino de conceitos relacionados a conteúdos de determinada disciplina, contribuindo para a construção do sujeito, e de uma visão do mundo em que este está inserido. Para ela, “a escola, mais do que transmitir conhecimento, é um espaço que prioriza a formação de identidades socialmente aceitas, por isso é uma instituição tão politicamente disputada” (MEYER, 2004, p. 29).

Esta concepção é compartilhada por Louro, que identifica nas regras estabelecidas pela escola uma contribuição para a formação de um modelo de identidade, pois é:

Na escola, pela afirmação ou pelo silenciamento, nos espaços reconhecidos e públicos ou nos cantos escondidos e privados, é exercida uma pedagogia da sexualidade, legitimando determinadas identidades e práticas sexuais, reprimindo e marginalizando outras. (LOURO, 2000, p. 21).

Em relação aos aspectos identitários de gênero e o espaço escolar, um estudo pertencente à Vianna e Finco (2009), intitulado “Meninas e meninos na Educação infantil: uma questão de gênero e poder”, aponta para a necessidade de se perguntar como os mecanismos de regulamentação dos corpos de meninos e meninas se manifestam no meio ambiente escolar, de modo a normatizar, regular, e controlar os comportamentos, posturas, verdades e saberes das crianças.

Nessa perspectiva, não é difícil perceber, e até recordar, o quanto o papel político que a escola desempenha favorece o sexismo, desde uma equidade linguística desequilibrada até interações em aulas que relacionam os comportamentos ao gênero, que tratam única e exclusivamente de práticas sexuais heterossexuais. Com base nos estudos realizados por Moreno, em escolas de Portugal sobre os meios pelos quais se aprende a ser menina nas instituições de ensino, a autora cita diversas práticas que contribuem para a manutenção e o reforço das construções desiguais frente às relações de gênero. As expectativas que se tem de meninos e meninas, os conteúdos programáticos das disciplinas que relatam uma história construída por homens, em que a mulher ocupa um espaço meramente secundário, e até mesmo a linguagem utilizada neste espaço fortalecem este padrão de comportamento. Especificamente quanto à linguagem, a autora aponta que:

A balança da equidade linguística desequilibra-se assombrosamente no momento em que, por razões de economia, é preciso utilizar uma forma comum para referir-se a indivíduos de ambos os sexos. A menina pequena vê, então, dissipar-se no espelho da linguagem a imagem recém-adquirida de sua identidade sexolinguística, que deve disfarçar sob alguns nomes, os quais não lhe dizem respeito. E é na escola que, em função do número, a individualidade se perde dentro do grupo de alunos [e alunas] onde se reforçará até a exaustão a ideia de que o idioma não lhe pertence. (MORENO, 1999, p. 37).

Tais questões fazem parte de um cenário bastante amplo de significantes e significados semelhantes entre o local de estudo da pesquisadora citada acima e o desta pesquisa. Outra evidência apontada neste estudo refere-se ao quanto os instrumentos utilizados pela escola refletem e ultrapassam os seus muros. Entretanto, este cenário é o meio, e também o resultado, onde se dará a construção e formação do sujeito, que, por sua vez, é um processo que engloba uma série de fatores não necessariamente previsíveis. O currículo e as práticas docentes e pedagógicas, longe de estarem isentas ou neutralizadas de incitar padrões, é também uma ferramenta de coerção e incitação de normas e papéis atribuídos a meninos e meninas, mesmo que não os apresente explicitamente. Livros didáticos, relações pedagógicas, a organização dos alunos em filas, chamadas (no caso de pessoas transexuais e seus nomes de registro) e brincadeiras e piadas “aparentemente” inofensivas, constroem – por vezes – cenários violentos.

Dessa forma, Luz (et al, 2009) salienta que a eliminação dos preconceitos, e a compreensão de novos conceitos, sejam estes racial, de gênero ou de classe, passam por uma reestruturação das práticas do ambiente escolar, uma vez que este é um espaço privilegiado que exerce uma importante função no processo de formação integral do sujeito, incluindo a compreensão e os valores voltados às diversas questões de ordem social. Para a autora, “O papel da escola deve ser o de promover uma reconstrução de conceitos, e uma desconstrução de preconceitos” (LUZ et al, 2009, p. 144), e para isso precisa se afastar ao máximo do seu papel conservador e reacionário.

Assumindo este objetivo, a maneira possível identificada nesta pesquisa para abordar tais temáticas com os alunos se deu através da proposta de intervenções didáticas desenvolvidas com o auxílio do livro infantil enquanto recurso lúdico investigativo, uma vez que a presença deste material é cada vez mais frequente na maioria das escolas, devido a programas de incentivo à leitura. O próximo capítulo conterá informações mais específicas acerca do livro infantil, bem como os motivos pelos quais se optou por utilizá-lo como objeto e análise nesta pesquisa. Embora esta pesquisa não pretenda definir ou quantificar em que medida os elementos, percebidos nas histórias infantis, refletem diretamente na percepção das identidades aqui mencionadas – menina e mãe –, reconhecemos uma necessidade de problematizar alguns dos papéis nelas presentes. Sendo assim, foram elaboradas propostas didáticas com o intuito de problematizar padrões estereotipados de gênero de forma a contribuir para o processo de desconstrução de conceitos tradicionais e conservadores relativos à identidade feminina.

2 LIVROS INFANTIS À LUZ DOS ESTUDOS CULTURAIS NO ESPAÇO ESCOLAR

O livro infantil configura-se como um recurso muito utilizado com a finalidade de entreter e educar, mesmo antes de as crianças serem alfabetizadas, fazendo-se presente em diversos ambientes. É aceito tradicionalmente por alguns ao passo que é alvo de crítica e questionamento para outros, caracterizando-se como um elemento instigante de exploração e análise. Possui significativa relevância para a ampliação e amadurecimento do imaginário e criatividade infantil, assim como ferramenta para desenvolver capacidades e habilidades ligadas à alfabetização e o letramento. Colocados os apontamentos, tentaremos neste segundo capítulo compreender o que se entende por literatura infantil, a fim de perceber, sob a perspectiva dos Estudos Culturais, aspectos relevantes que perpassam o seu alcance cultural, dada a sua finalidade social.

Sem o intuito de querer delimitar o que é – ou não – literatura infantil, esta pesquisa pretende refletir sobre as circunstâncias que envolvem a produção, o uso e a sua valorização. Por acreditar ser necessário um acompanhamento cronológico de alguns fatos, será apresentando o contexto sócio-histórico desde seu surgimento até a atualidade. Para isso, alguns aspectos pontuais são destacados por serem considerados essenciais à reflexão, porém não mais importantes que outros, eventualmente não citados.

Dadas as contribuições dos Estudos Culturais para pensarmos a constituição das identidades em uma perspectiva pós-estruturalista, admite-se nesta pesquisa que o uso do livro infantil é uma prática pedagógica cultural e tem o potencial de auxiliar neste processo, devido à sua importância simbólica de construção de significados para um público em formação inicial. Considerando tal concepção, faz-se necessário caracterizarmos quais elementos presentes nos livros podem contribuir para o processo de identização, destacando o valorizado espaço que este ocupa no ambiente escolar.