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A análise dos livros infantis caracteriza-se como uma estratégia de evidenciar como os elementos textuais desta pedagogia cultural são mobilizados no processo de construção da narrativa, veiculando discursos acerca das identidades femininas através das suas representações. Ciente da inexistência de neutralidade diante das escolhas, utilizamos como ferramentas de análise uma articulação de parte dos elementos fornecidos pela teoria semiótica e a análise do discurso. Mesmo reconhecendo suas diferenças quanto ao modo de conceber o processo de interpretação textual, a opção se deu em função de potencializar e enriquecer este processo (PIASSI, 2013).

A escolha pelo trabalho com textos e seus contextos toma como pressuposto o fato de que, nas palavras de Hall, a cultura se dá através das suas textualidades, sendo papel intrínseco dos estudos culturais “analisar certos aspectos da natureza constitutiva e política da

própria representação, das suas complexidades dos efeitos da linguagem, da textualidade como local de vida e morte” (HALL, 2003, p. 212). É nesta perspectiva que o autor aponta as contribuições das descobertas e aproximações teóricas de trabalhos estruturalistas, pós- estruturalistas e semiótica, demonstrando:

[...] a importância crucial da linguagem e da metáfora linguística para qualquer estudo da cultura; a expansão da noção de texto e textualidade, que como fonte de significado, quer como aquilo que escapa e adia o significado; o reconhecimento da heterogeneidade e da multiplicidade dos significados, do esforço envolvido no encerramento arbitrário da semiose infinita para além do significado; o reconhecimento da textualidade e do poder cultural da própria representação, como local de poder e regulamentação; do simbólico como fonte de identidade (HALL, 2003, p. 211).

Sendo assim, o autor compreende que, para pensar a cultura, faz-se necessário o trabalho com textos em suas múltiplas linguagens e significações, considerando seu deslocamento e fontes de poder. Por isto, observamos as linguagens, apresentadas conjuntamente por imagens e texto escrito, em busca de melhor demonstrar como ocorre a construção das protagonistas ao longo do enredo.

O processo de inferência de uma mensagem pressupõe o entendimento, ao menos parcial, do código usado, por ambas as partes, para que se obtenha a comunicação, independente da linguagem ou meio utilizado, texto, imagem, música, filme, fala, obra artística etc. Porém, por vezes, não é suficiente, dados os diferentes níveis de complexidade que um texto pode apresentar. Tão importante quanto se apropriar do código e dos diferentes gêneros textuais, é conhecer o contexto sócio-histórico-cultural no qual estes produtos e os receptores estão inseridos, uma vez que os fatores extratextuais podem influenciar na compreensão que determinado público possui de uma mensagem, embora não seja determinante.

Identificamos o livro sob duas perspectivas complementares, como um texto “considerado como um todo coerente e dotado de sentido, direcionando nosso olhar para determinadas questões” (PIASSI, 2013, p. 94), capaz de nos permitir identificar estruturas e elementos que darão sentido à narrativa; assim como, “um objeto de comunicação, que se estabelece entre destinador e destinatário” (BARROS, 2007, p. 7), que está inserido em um determinado contexto cultural e, portanto, veicula ideologicamente seus discursos. Estas formas de perceber o livro foram tomadas a partir de estudos referentes ao texto, a partir de interpretações que consideram as influências sociais em maior ou menor grau, focando ora nas estruturas internas, ora nas externas. Deste modo, faz-se necessário apresentar como as ferramentas metodológicas nos auxiliaram na percepção e interpretação dos livros

selecionados. Apenas com o intuito de melhor apresentá-las, optamos por explicar os elementos de cada uma, pontuando suas contribuições. Entretanto, no momento de análise, não seguiremos a ordem dos elementos conforme elencados abaixo, visto que o processo de análise ocorre de maneira conjunta.

Iniciamos explicando o instrumento que auxilia especificamente a ‘olhar para dentro’ do texto, usando a semiótica. Preocupada com as estruturas internas do texto, a semiótica considera os diversos níveis interdependentes de profundidade no processo de análise, indo do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto (PIETROFORTE, 2007; BARROS, 2008; PIASSI, 2012). Esta teoria tem como fundamento uma das teorias semióticas, a francesa ou greimasiana, assim denominada devido a A. J. Greimas, quem a desenvolveu, juntamente com o grupo de investigações semiolinguísticas (PIETROFORTE, 2007; BARROS, 2008). De acordo com esta tese, a análise de um texto consiste na busca da compreensão por meio de um percurso gerativo de sentido, que possui três níveis: fundamental, narrativo e discursivo (PIETROFORTE, 2007; BARROS, 2008). Não é necessário que uma análise siga respectivamente os três níveis, porém é importante que sejam minimamente delineados informações de cada um deles, para que sejam estabelecidas as inter-relações entre os diferentes níveis. Na tentativa de explicar esses níveis, utilizaremos como exemplo de narrativa, a clássica história da Chapeuzinho Vermelho, buscando tornar mais claros os diversos elementos que estruturam os níveis citados. Baseados nos estudos de Pietroforte (2007), tomamos o termo narrativa como o conjunto de texto verbal e não verbal, que, segundo Fiorin (2008), pode ser analisada pelo percurso gerativo de sentido.

O nível fundamental ocupa-se em observar a oposição ou as oposições semânticas estabelecidas através da rede de relações presentes no texto (PIETROFORTE, 2007; BARROS, 2008). Estas dão sentido ao conjunto de elementos mais geral e são definidas baseadas em termos que apresentam traços em comum, sobre os quais, uma diferença as opõe, contrariando-se. Nesse nível também encontramos as categorias fundamentais, as quais são características de cada narrativa, podendo sofrer alteração de valores quando encontradas em outras histórias. Denominam-se como eufóricas as categorias que são entendidas no texto como positivas, e disfóricas as negativas (PIETROFORTE, 2007). Como exemplo das oposições semânticas na narrativa da Chapeuzinho Vermelho, temos a cultura opondo-se à natureza, possuindo respectivamente valores positivo e negativo. Percebemos isto na medida em que as ações praticadas pela menina, que neste caso representam a cultura, através dos símbolos casa e proteção, são caracterizadas positivamente, sendo compensadas no final, enquanto o lobo mau é associado à natureza, através da imagem da floresta, como um perigo

sendo punido por suas ações.

O segundo nível refere-se aos elementos estritamente narrativos como sujeito, objeto, antissujeito, entre outros, os quais são apresentados no decorrer das transformações de estados do sujeito (PIETROFORTE, 2007; BARROS, 2008). Nesta etapa, as oposições semânticas do nível fundamental são tomadas como valores por um sujeito, que realizará ações manipuladas para atingir o objetivo. Segundo Fiorin (2008), parte-se do princípio de que só pode fazer alguma coisa o sujeito que possui os pré-requisitos; para tanto, são necessários os enunciados

de estado e de fazer. O enunciado de estado se dá pela conjunção e disjunção, conforme a

situação do sujeito em relação ao objeto de valor: a conjunção é quando o sujeito possui o objeto desejado, e a disjunção quando o sujeito não o possui (BARROS, 2008). Cabe observar que não possui uma sequência fixa, ou seja, o sujeito pode começar a narrativa em ‘posse’ do seu objeto de valor (conjunção) e terminá-la sem (disjunção), assim como o contrário também ocorre. Na história de exemplo, o sujeito Chapeuzinho está em busca do reconhecimento, ou seja, inicia em disjunção com o objeto de valor, e termina em conjunção.

No enunciado do fazer é apresentada a transformação de um estado para outro, que ocorre em diferentes estágios: manipulação, competência, performance e sanção, de acordo com Pietroforte (2007) e Barros (2008). Essas estruturas se caracterizam da seguinte forma:

manipulação: quando alguém ou algo manipula o sujeito para o estado do fazer através da

modalização – provocação, sedução tentação ou intimidação; competência: o momento em que o sujeito é dotado de instrumentos modais – saber ou poder, querer ou dever – para realizar a ação; performance: a concretização do fato, e consequentemente a transformação de estado; e a sanção, que consiste no reconhecimento da mudança. Ressaltamosr que a manipulação pode ocorrer de quatro maneiras distintas: na tentação, o manipulador oferece um prêmio para o sujeito; na intimidação, são feitas ameaças; a sedução consiste em fazer elogios; e a provocação é realizada com a tentativa de desafiar moralmente (PIETROFORTE, 2008; PIASSI, 2012). Retomando o exemplo, identificamos como manipulador a mãe de Chapeuzinho, que por meio da sedução faz com que a filha realize a ação, ir à casa da vovó, oferecendo como prêmio o reconhecimento de sua maturidade, conforme demonstrado pela fala de que por ser grande ela já pode realizar esta tarefa sozinha. Por fim, a menina realiza sua performance passando do estado de segurança para não-segurança, ao entrar no caminho errado. Ao final, retorna ao estado de segurança e, enfim, consegue alcançar o reconhecimento da família, recebendo uma sanção positiva.

No terceiro nível temos a ação discursiva, produzida pela enunciação, a qual necessita da presença de um enunciador e enunciatário, tendo como produto, a partir da articulação

destes, o enunciado (PIETROFORTE, 2008). É nesta etapa que os valores narrativos dão sentido às oposições semânticas, tornando-se temas, os quais podem ser concretizados a partir de figuras na história. Os temas que aparecem na história de Chapeuzinho são mudança de fase da infância para a vida adulta, sexualidade, e obediência. Respectivamente, esses temas são apresentados na história por meio da perda da inocência da menina ao entrar em contato com os perigos da vida, do risco que ela corre e em que coloca a avó de serem “devoradas” pelo “lobo” ou homem – dada a sua decisão de mudar de caminho –, e da obediência como algo positivamente importante a ser seguido, principalmente pelo fato de não genuinamente ser uma menina a personagem principal.

Ao entendermos o discurso enquanto uma ação ideológica que enuncia algo a alguém, pressupõe-se que esta construção se dê a partir da articulação entre as posições de enunciador e enunciatário, ambos situados em um dado contexto. Nesta perspectiva, introduzimos a teoria, pensada inicialmente por Mikhail Bakhtin, denominada como Análise do Discurso, a qual, de acordo com a pesquisadora da área Eni Orlandi, configura-se como um estudo que considera a palavra em movimento, produzindo sentido e “concebendo a linguagem como mediação necessária entre homem e a realidade natural e social” (ORLANDI, 2001, p. 17).

Consequentemente, o discurso é aqui entendido como essencialmente ideológico, o qual utiliza da linguagem não apenas como forma de transmitir uma informação, mas como possuidor de um caráter interativo entre aquele que fala e aquele que “recebe” (ORLANDI, 2001; MAINGUENEAU, 2004). De acordo com a descrição de Maingueneau, para entendermos um texto, uma enunciação, é necessário nos atentarmos ao seu “discurso em que a fala é encenada” (MAINGUENEAU, 2005, p. 85). Para isso são definidas três cenas que compõem o cenário da enunciação e acordo com este Maingueneau (idem): a) cena

englobante: que caracteriza o tipo de discurso, ou seja, a finalidade para a qual este foi

produzido; b) cena genérica: que evidencia quem fala para quem, supondo um ethos, imagem que se deseja passar, e um pathos, imagem que o veiculador possui daquele a quem se destina a mensagem; e c) cenografia: é a busca pela compreensão dos signos da enunciação. Esta última será contemplada pela metodologia descrita acima, semiótica, por compreendermos sua especificidade em melhor observar a forma como a narrativa é construída e as estratégias utilizadas.

Quanto à cena genérica, na narrativa da Chapeuzinho, consideramos a existência de um ethos enquanto um adulto, representado pelo livro, que é portador da mensagem. Este busca ensinar às crianças, e principalmente à menina, o que deve ser feito, apresentando os perigos e as possíveis sanções em caso de descumprimento. Nesse sentido, o pathos pode ser

compreendido como alguém que está em fase de aprendizado, o qual, provavelmente irá se identificar com os fatos narrados. A cenografia é composta pela suposição de o livro ser usado em um contexto educacional, visto que está amplamente disponível em salas de aula, ao alcance de professores e alunos, assim como em outros ambientes, desde que se configure um adulto lendo para uma criança, ressaltando seu caráter educativo.

Consideramos que a análise das obras mencionadas seja necessária devido ao elevado potencial de identificação que possuem em relação aos alunos face às suas representações. Entretanto, não se pretende esgotar as possibilidades de análise e reflexão das obras aqui utilizadas, uma vez que adotamos apenas uma perspectiva de análise, tendo a finalidade de responder particularmente as questões desta pesquisa. Para tanto, recorremos às palavras da pesquisadora em relações de gênero, Daniela Auad (2006), quem aponta para a necessidade de utilizarmos “os óculos de gênero” como forma de percebermos o quanto os aspectos relacionados a este tema se fazem presentes em nosso meio.