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Agora eu era o rei Era o bedel e era também juiz E pela minha lei A gente era obrigado a ser feliz Chico Buarque (1990)

A análise das notas de campo permitiu-nos identificar trechos que refletem uma imagem frequentemente enunciada pela professora da turma observada: a escola como um lugar feliz, livre de qualquer sofrimento, ou melhor, no qual nenhum sofrimento é permitido. Neste tópico estão em questão o ideal de escola difundido pelos professores e

sua dificuldade em lidar com os sentimentos da criança que contradizem este imaginário.

Trecho 1

“Nídia, por que tá chorando, meu bem? Tem alguma coisa triste na escola? Aqui acontece coisa ruim e triste?” As crianças responderam em uníssono: “nããão!” E ela prosseguiu dizendo: “aqui só tem coisa feliz, não é lugar de ficar triste”.

Trecho 2

“Nídia... os coleguinhas são legais, o tio Erasmo é legal. Por que chorar? Por que ficar triste?” Nídia diz que não quer ir na aula da educação física. Lia responde: “mas é legal, agora tem educação física, mais tarde tem biblioteca, tem que sair da sala, meu bem”. Nídia chorou mais. Lia: “Ah, mas, se chorar não tem jeito!”. Raul saiu de seu lugar, se aproximou de Lia e disse: “pô quê ela tá chorando?”. Lia: “porque ela não quer ir para a educação física”. Fala pra ela: ‘ô coleguinha, não chora, a escola é legal”. Ele repetiu: “coleguinha, não chora, a escola é legal” .

Trecho 3

Ao ver que César estava chorando novamente, Lia disse em voz alta: “o César tá chorando de novo... Nós vamos para um lugar feliz!!!”.

A escola e, mais especificamente, a professora sabem – ou deveriam saber – que o início da vida escolar é um momento de ruptura e, por esta razão, difícil para a criança e sua família. A entrada em um novo ambiente, com regras próprias e com muitas pessoas, adultos e outras crianças, implica um processo em que serão necessárias diferentes aprendizagens, que envolvem desde a circulação pelo novo espaço físico como a apropriação de regras que configuram a instituição educacional. Mesmo que a instituição proporcione aos pequenos momentos de prazer e alegria, sempre haverá aqueles em que estes irão se deparar com dificuldades nas questões da aprendizagem e das relações interpessoais, seja com colegas, com docentes ou com outros funcionários.

A alegria na escola é discutida e defendida por Snyders (1993) que pondera o quanto é difícil suportar a escola uma vez que ela é comparada a momentos em que o estudante pode agir conforme seu desejo, sem precisar prestar contas ou passar por

avaliações. Afirma, ainda, que há uma distância entre o escolar e o vivido fora da instituição e que esta irrealidade da escola pode fazer com que ela seja percebida como fantasiosa e desagradável.

Algumas crianças expressaram por meio de choro a dificuldade de estar na escola. Para todas, aquela era a primeira experiência com a professora Lia e aqueles colegas, para algumas era a primeira vez que saíam de casa e ficavam com “estranhos”. Nos momentos em que manifestavam insatisfação, medo ou angústia, a reação mais comum dos professores foi tentar interromper imediatamente o que estava acontecendo.

Mesmo quando pergunta “por que tá chorando, meu bem?” é perceptível a ansiedade da professora da turma em dar logo uma resposta, como “aqui só tem coisa

feliz, não é lugar de ficar triste” parecendo não suportar uma reação diferente de aceitação e resignação. Sobre isto, é importante dizer que durante o período da pesquisa a professora passou por vários conflitos com a coordenadora pedagógica, com as práticas que adotava e o que entendia que lhe era cobrado e com os desafios daquela turma, em especial, os desafios impostos pelo aluno Raul. Para ela, portanto, a escola também estava sendo um lugar muito difícil e extremamente desafiador, como mostra o trecho a seguir:

Trecho 4

Laís disse “e agora ir embora, tia!” Lia bateu palmas e respondeu sorrindo: “isso! Tá chegando a hora boa, hein moçada?”.

Para a docente, a “hora boa” era a hora de ir embora da escola. Provavelmente, seu descontentamento pessoal com questões profissionais a levou a considerar o tempo fora da escola mais interessante do que aquele ali dentro. Esta contradição esteve presente no discurso e ações da professora ao longo das visitas de observação e faz-nos refletir sobre a complexidade dos encontros humanos e no quanto a professora, ao

mostrar-se desatenta ao que sentem as crianças, ensina-as a lidar com os sentimentos, seus e dos outros, desta mesma forma.

Lidar com esta desatenção e com a censura à expressão de determinados sentimentos com crianças tão pequenas e, via de regra, extremamente espontâneas e expressivas, pode acarretar vários complicadores às relações que se estabelecem, uma vez que, o adulto não percebe ou ignora propositalmente uma emoção importante, bem como não se permite vivenciar as suas, e a criança, por outro lado, não encontrando ressonância no ambiente, pode frustrar-se e optar, em oportunidades futuras, pelo silêncio e distanciamento das pessoas.

Outra reflexão importante a ser feita é sobre a visão romantizada que, geralmente, pais e professores têm acerca da Educação Infantil. A infância e as instituições destinadas a esse momento são vistas com grande dose de idealização, como se a escola fosse somente um lugar lindo, agradável, acolhedor e a infância, inevitavelmente, feliz. Ao encontro destas afirmações citamos Abramovich (1983), que discute O mito da infância feliz e reúne textos sobre infâncias infelizes e descortina diversas possibilidades em narrativas, poesias e contos da vida de crianças reais e inventadas.

R. Rocha (1983, p. 105 e 106) parafraseia o poema Meus oito anos do romântico poeta brasileiro Casimiro de Abreu e intitula sua versão como “Ai que saudades...”, em que apresenta versos que sustentam nossas reflexões.

Ai que saudade que eu tenho Da aurora da minha vida Da minha infância querida Que os anos não trazem mais... Me sentia rejeitada,

Tão feia, desajeitada, Tão frágil, tola impotente, Apesar dos laranjais (. . .)

Naqueles tempos ditosos Não podia abrir a boca, E a professora era louca, Só queria era gritar. Senta direito, menina! Ou se não, tem sabatina! Que letra mais horrorosa! E pare de conversar!

Presenciamos, destarte, a grande dificuldade dos adultos em suportar a demanda afetiva que as crianças depositavam neles. Por outro lado, é notório também que a felicidade parecia ser entendida ali como uma constante, algo estável e permanente – ou se é feliz ou não se é feliz – e não como um sentimento, uma emoção mais ou menos duradoura, algo circunstancial relacionado ao momento vivenciado, às pessoas com quem lidamos e aos sentidos que atribuímos às nossas experiências.

Nesta direção, vale ressaltar que as possibilidades educacionais proporcionadas pela instituição escolar passam pelas oportunidades concretas que as crianças podem ter para experienciar os diferentes sentimentos constituintes da condição humana.

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