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Eu até que nem gostava De sair da minha casa Mas quando eu menos esperava Parece que criei asa Errando de porto em porto Sou ave de migração Mala de mão, peso morto Sou quilombola ou balão Não sei se sou o inimigo Ou do inimigo me escondo Não sei se fujo ou persigo Por esse enredo, enredo, redondo Chico Buarque e Augusto Boal (1978)

São diversos os posicionamentos ocupados pelo professor no exercício de sua profissão. Fontana (2000, p. 105) descreve cada professor como “um feixe de muitas condições e papéis sociais, memória de sentidos diversos”. Diferentes também são as situações e desafios impostos a este profissional que, especialmente na Educação Infantil, tem duas funções determinadas: educar e cuidar.

As turmas numerosas e a presença de um só professor por turma, características de nosso sistema público de ensino, são fatores que impõem desafios ao trabalho pedagógico e, certamente, dificultam ações conforme constam dos Referenciais. Os professores que conhecemos neste estudo, ocuparam vários posicionamentos em seus encontros com as crianças. Palavras de acolhimento, castigos, tentativas de reconciliação, ameaças, carinho, julgamentos e sentenças compõem o universo simbólico que emergiu na turma pesquisada.

Trecho 1

Paulo queixou-se para Lia dizendo que Raul havia lhe batido. Lia os chamou e seguiu com o diálogo: “Pode bater no colega?”. Raul: “nãããão”. Lia: então pede desculpa e dá um beijinho nele. Raul, então, abriu os bracinhos e deu um beijo estalado em Paulo. Lia: “vai fazer isso mais, Raul?”. Ele balançou a cabeça efusivamente que não. Lia: “muito bem!”. Esta cena é muito recorrente, deve acontecer, no mínimo três vezes por dia, envolvendo o Raul.

A professora concilia, busca esclarecer os acontecimentos, questionar as causas e por fim na situação com um pedido de desculpas, para tudo terminar “em paz”.

Trecho 2

Diana se direcionou a Lia: “tia, o Raul me empurrou”, e daí prosseguiu o diálogo. Lia: Raul, você empurrou ela?”; Raul: não; Lia: não mente; Raul com a mão na boca balançou a cabeça afirmativamente; Lia, então, o chamou e disse para ele pedir desculpas e falar que não ia fazer isso mais. Raul fez o que Lia mandou. Imediatamente depois, Diana o empurrou e ele foi revidar mas viu que Lia o olhou naquele momento e, por isso, disse: “tia, ela me empurrou”. Lia disse para Diana pedir desculpa, ela pediu. Em seguida, Raul a cutucou com um lápis e ela chorou muito. Lia os chamou e os colocou entre suas pernas, pedindo que contassem tudo o que aconteceu. Diante do que falaram, pediu que Raul se desculpasse e dissesse que não faria isso mais e desse um beijo onde machucou. Ele fez tudo o que ela pediu e Lia disse: “não pode fazer isso... Você sabia que o lápis tem essa ponta fina e se furar machuca, sai sangue, fura, tem que dar ponto, dar injeção, anestesia, você sabia?, Raul ficou com uma expressão bastante assustada e permaneceu calado.

Aparentemente com a mesma intenção de preservar o bom relacionamento em sua sala de aula, Lia transita aqui por lugares diferentes e contraditórios. Primeiro chama a dupla para o esclarecimento e, como boa juíza, ouve as duas partes. Todavia, duvida de Raul e o acusa de mentir, mas não faz o mesmo com Diana. Em seguida, como observadora atenta, vê o que se passa entre os meninos e no intuito de buscar conciliação e por fim a qualquer tipo de agressão, Lia volta a trazer elementos ameaçadores para a conversa, para educar, instruir, assustar, esclarecer?

A integridade física das crianças foi outro ponto de preocupação demonstrada pelo professor Erasmo, que relatou a seguinte situação:

Trecho 3

Contou sobre um episódio vivenciado com Raul, quando ele pegou um pedaço de madeira e Erasmo foi tirar de sua mão, segurando forte em seu braço. O menino ficou dizendo “você machucou o meu braço” e Erasmo relatou ter ficado muito preocupado, incomodado pelo fato do menino ter se machucado mesmo e isso “dar um rolo”, mas que só o segurou porque viu que a situação poderia causar danos para a própria criança e para seus colegas e que o fez para proteger as crianças.

Em situações como esta e em um momento histórico em que a agressão contra crianças, vindas da escola ou da família, é inadmissível, é compreensível que o professor se veja em uma situação delicada por, ao tentar proteger, cuidar, acabar fazendo o contrário ou sendo mal interpretado pela comunidade escolar e pelas próprias crianças. Além disto, este trecho faz-nos pensar também que nem sempre o professor tem clareza sobre as suas ações e intervenções, quais os seus deveres e obrigações para com aquela criança que está sob sua responsabilidade. Momentos semelhantes ao relatado no trecho 3 tornam patente o quanto é difícil para o educador infantil ser o tempo todo cuidador. Percebemos, não obstante, que lhe falta também ser cuidado e a manifestação deste incômodo diante de sua ação é, para nós, o seu pedido de ajuda.

Em nossas observações, Erasmo demonstrou grande preocupação em ser um bom cuidador, e foi. Tornou-se notável pela forma atenciosa com as crianças, pelo carinho que dedicava a elas e pela atenção que mantinha a fatores como higiene.

Trecho 4

Chegando no refeitório, Erasmo dirigiu-se às crianças “todo mundo vai lavar a mão pra ficar bem limpinha. Eu vou olhar a mãozinha de cada um para ver se ficou limpinha. Para lanchar a mão tem que tá limpinha”. As crianças voltaram mostrando as mãos para avaliação e ele realmente olhou uma por uma.

Outro importante trecho para reflexão, versa sobre a angústia com que o professor se depara quando precisa, ao ver uma criança chorando por não querer sair da sala, escolher entre acolhê-la ou manter-se firme na posição de educador que não pode atrapalhar seu “processo de adaptação”, de crescimento, de “amadurecimento”.

Trecho 5

Lia veio até a mim e disse: “Denise, se a criança fica comigo hoje, se eu abrir essa exceção, ela vai retroceder, então eu tenho que deixar, tenho que deixar”.

Ademais, presenciamos momentos em que foi possível ver o educador, aquele que, sendo mais experiente, tem condição de oferecer apoio e acompanhar as conquistas da criança, especialmente em situações que ainda são muito difíceis para ela.

Trecho 6

Amália distribuiu um quadrado de 8x8 cm para cada criança, pediu que dobrassem as pontinhas porque o quadrado estava triste por ser um quadrado. Todas as crianças precisaram de ajuda para realizar o que foi pedido. Raul, não conseguindo fazer, embolou seu papel. Lia foi até sua carteira para o ajudar.

Outro aspecto relevante podemos notar em uma fala marcante, e pelas crianças referendada, de que o professor tudo sabe, tudo vê e tudo controla.

Trecho 7

Raul tirou o tênis e começou a morder o pé, Laís ficou apurada com o que viu e o aconselhou: “ih... a tia vai ficá bem brava cocê!”, mas Lia não viu.

Esta ideia da onisciência do professor tem raízes históricas profundas e nos leva a refletir sobre a relação de ensino-aprendizagem que, como outras interações humanas, é articulada por uma complexa rede de outras relações e significações. Entretanto, diferenciando-se de outros encontros humanos, a relação pedagógica supõe que alguém ensina e que alguém aprenda, o que, para a Psicologia histórico-cultural, ocorre de forma dialética e dialógica.

Além disto, é consenso na comunidade científica que a aprendizagem, objetivo central da intituição escolar, ocorre por meio do afeto.

Trecho 8

Lia recebeu as crianças com “festa”, cada um que chegava recebia atenção especial, observações sobre o corte de cabelo, o penteado, o tênis. Todas as crianças que ganharam comentários reagiram com muito sorriso e carinhos para ela.

Estes contatos afetivos, carinhosos, mostraram ser para as crianças oportunidades de consolidar seu pertencimento ao contexto escolar, e sua existência, ou

ausência, acabam por constituir a imagem que os pequenos têm do professor e, consequentemente, as expectativas que terão sobre a escola.

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