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1. A visão filosófica e histórica do trabalho

1.3 Escola e Sistema: uma relação suspeita

Diante do desafio de vasculhar a complexa realidade político-econômico-social e da ousadia que implica adentrar neste campo de contradições, as reflexões pontuadas no item anterior tentam, apesar da miopia impregnada em nossa formação, retratar o ângulo de visão do sistema capitalista em relação às classes a ele subordinadas. Outrossim, na factibilidade e legitimação de suas interpretações, a reconceituação da identidade dos sujeitos se imprime como

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marca inquestionável da sociedade capitalista neoliberal, que tirou da escola o trabalho material.9 O que fazer então? Contentar-se com o discurso do determinismo? Dizer sim às propostas de uma sociedade que estimula a competitividade e o individualismo?

Caminhar no sentido contrário não é tarefa simples. Ademais, para mudar a bússola da história e não se prostrar diante da ambição do sistema capitalista, é preciso duvidar dos conceitos apreendidos, aceitar a ignorância produzida em nós, assumir a nossa incapacidade de luta e tentar, de algum modo, reagir. É, conforme já abordamos anteriormente, preciso reconhecer o espírito engenhoso do capitalismo, a sua ardilosa e perversa forma de convencer e de excluir e compreender a sua inteligência diabólica que, por estarmos cegos, se alimenta da extração do humano em nós.

No nível existencial humano, a característica mais alarmante da nova economia talvez seja o fato de ela ser fundamentalmente moldada e determinada por máquinas. O chamado “mercado global”, a rigor, não é um mercado de forma alguma, mas uma rede de máquinas programadas para agir segundo um único valor – ganhar dinheiro por ganhar dinheiro – à exclusão de todas as outras. (CAPRA, 2002, p. 152).

Como uma onda cíclica, institucionaliza tudo e todos. Ao institucionalizar idéias, projetos, pessoas, o capitalismo libera força de trabalho e, por conseguinte, vê aumentar a sua lucratividade.

Dentro de um sistema político e econômico que se transforma conforme a ocasião e a necessidade, a escola capitalista sobrevive e ganha nova conotação. É fundamental no

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atendimento às necessidades do mercado e na desregulamentação do Estado. Aos olhos da classe dominante, continua instrumento de poder e força. Aos olhos da classe trabalhadora, possibilidade de trabalho e remota possibilidade de sonho de uma sociedade melhor.

Hoje, a realidade da escola, apesar das inúmeras contradições existenciais, apresenta um quadro bastante diferente do anterior. Se antes a grande contradição se assentava na construção do conhecimento entre aluno-proprietário e aluno-trabalhador (classes sociais antagônicas com expectativas e experiências diferenciadas), no contexto presente esta relação é composta por alunos-trabalhadores, alunos-subempregados e alunos-desempregados. Quer dizer, temos hoje uma escola pública vazia de proprietários que se debandaram para a escola privada e tomada de alunos filhos de trabalhadores, ainda que à margem da realidade do trabalho. Com relação à escola privada, podemos dizer que esta já nasceu com objetivos definidos e agora, mais do que nunca, alcança o seu apogeu com a transformação do conhecimento em mercadoria de valor.

A discussão das contradições e dos objetivos da escola pública, que visava preparar alguns sujeitos para o comando e outros para trabalho, ganha hoje outras dimensões. Cada vez mais distanciada da realidade, a escola apela para a competitividade e provoca, ao nosso ver, a sua maior contradição, a da sua finalidade. O sujeito que espera formar não tem mais o perfil de comandante. É um trabalhador e como tal deve se “adequar” às necessidades sociais. Deve, portanto, este sujeito, ser capaz de atuar na natureza e no mundo do trabalho com competências e habilidades pré-definidas por um projeto social de educação avesso e estranho à realidade. Habilidades e competências que o mercado desejar e ditar. Mercado que regula a sociedade e, por conseguinte, determina a vida da escola e define a vida do trabalhador.

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Embora a malvadez neoliberal assim preceitue, Freire (1997), ao contrário, nos lembra que é preciso reconhecer que somos seres condicionados, mas não determinados. Que é preciso reconhecer que a história é tempo de possibilidades e não de determininismos e que o futuro apesar de problemático, não é inexorável.

Contudo, na realidade objetiva do tempo presente, os objetivos da educação parecem seguir na primeira direção. A ordem única é que todos devem estar mais bem preparados para o mercado de trabalho. Podemos dizer que um dos problemas reside na não discussão desta ordem que camufla suas verdadeiras intenções.

O fato é que a possibilidade de melhoria profissional não é algo que se aplica a todos. Ela se encaixa aos mesmos que já gozam de algumas condições privilegiadas e que fazem parte de uma minoria que está preparada para dar continuidade ao projeto sócio-econômico-político que aí está. Importante dizer que, inescrupulosamente, direitos humanos à parte, os “trabalhadores beneficiários”, desse sistema, trabalhadores entendidos aqui como aqueles que conseguiram estabelecer uma certa condição social que garante, mesmo que provisoriamente e com qualidade duvidosa, os direitos básicos, por exemplo, educação, moradia, saúde, lazer, etc., vêm galgando historicamente os degraus da grande escada formada por outros trabalhadores – homens desqualificados profissionalmente, outros desempregados e os demais, marginalizados no submundo da sociedade capitalista. Ou seja, desenvolvem-se as castas dentro de um universo que, embora já esteja previamente definido, produz outras subcastas, reduzindo ainda mais as condições de mudança. Contradição esta, que alimenta as misérias humanas e, em especial, a ganância e o poder.

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A este custo simbolicamente aqui representado, vamos repetindo a ordem que não é nova: ‘é preciso estudar meu filho, se quiser ser alguém’. Assim diziam nossos pais ontem e assim dizem algumas formas de comunicação hoje, fazendo alusão ao progresso cada vez mais individual e à presença da escola como sendo uma das responsáveis pelo êxito social.

Diante do ideário de que o trabalho dignifica o homem e de que o estudo “qualificado” é condição para o mundo do trabalho foi se imprimindo na sociedade, de um modo geral, a consciência de que é preciso ampliar os quadros da escola formal. De que é dever da comunidade como um todo colaborar para a universalização da escola e, com isso, transfere, equivocadamente a todos, a ilusão de que a escola pode equacionar parte desses problemas. Segundo Arroyo (2000) o capitalismo tem sido esperto em garantir um mínimo de educação escolar básica para as classes trabalhadoras, continuando a reprimir o direito à educação.

Assim, apoiando-se mais na quantidade do que na qualidade, os princípios educacionais pensados pela atual sociedade foram mudando a vocação das instituições de ensino, hoje traduzida em formar para atender ao mercado de trabalho. Diante desta e das novas imposições que se intensificaram nos últimos tempos é possível dizer que essa idéia não é nova. O novo está na constatação das conseqüências que dela decorrem. Quer dizer, se antes para ter acesso ao mundo do conhecimento só havia espaço para poucos, hoje, de acordo com os dados do INEP/MEC - 2003/2004, quando se busca a universalização do ensino com 97% das crianças brasileiras na escola, a situação não é diferente. O que difere, entretanto, é o fato de que a sobrevivência tornou-se refém do trabalho assalariado e da educação formal e isso, a bem da verdade, não garante a qualidade desta sobrevivência, mesmo porque hoje não há trabalho nem

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para aqueles que podem pagar pelo conhecimento, tampouco, a questão da quantidade de pessoas na escola, mudou o quadro sócio-educacional do país.

Nas palavras de Sanfelicce10 a escola formal segura as pessoas para que não se encaminhem para o mercado de trabalho. Ou seja, na promoção de exclusões de toda ordem, mascara as suas intenções e não prepara o sujeito para o mundo do trabalho. Nesta direção e nos rumos a que se destinam a escola, o trabalho e o trabalhador, podemos perceber claramente que a sociedade neoliberal retoma os princípios do darwinismo social, traduzido aqui pela exclusão natural, na qual os mais fortes prevalecem, e isso, por conseqüência, nos faz refletir sobre a necessidade de uma nova conceituação de educação. Por outras palavras, traduzir esta necessidade implica compreender que a realidade, na qual estamos imersos, ecoa que, quanto mais educados estamos, mais pobres ficamos, contradizendo assim a lógica de que, por meio dos estudos, é possível um dia chegar ao cume e inverter o jogo do poder, o jogo do patrão.

Concordamos com Enguita (1989) quando diz que a escola cresceu separada do mundo do trabalho e que a mesma é pensada por uma pequena parcela da sociedade que dita os caminhos a serem seguidos, sem, contudo, se importar com o que pensa a grande maioria sobre esta sociedade. Mas, o que pensa a grande maioria de brasileiros alijados do mundo do conhecimento? É possível afirmar que é essa uma preocupação comum? Tem noção do que seja a sociedade? Tem definido o que quer para si e para os demais? Tem clareza de seus sonhos? Invertendo a questão de que toda sociedade, para encaminhamento de seus interesses, pensa para si um tipo de escola, perguntamos: a escola, enquanto aparelho ideológico composto por sujeitos sociais

10 Exposição em banca de dissertação de mestrado na Faculdade de Educação da UNICAMP em 20 novembro de

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distintos (dirigentes, coordenadores, professores, inspetores, alunos, familiares), tem clareza sobre qual sociedade quer? Pensando que estes sujeitos, imersos no mundo da escola são igualmente trabalhadores alienados, esta e outras questões continuam em aberto. A esse respeito, Cortella (1998, p. 16), enfatiza:

O universo vivencial da classe trabalhadora é extremamente rico em termos culturais, mas precário em termos de conhecimentos mais elaborados, que são propriedade quase exclusiva das elites sociais que dificultam ao máximo o acesso da classe trabalhadora a esta forma de conhecimento eficaz.

Pelo fato de continuarem abertas estas questões e se misturarem a outras que surgem, a escola torna-se local privilegiado de debate e, por isso, e mesmo de forma equivocada, os seus trabalhadores podem, a partir da idéia que têm de sociedade, desenvolver uma nova teoria pedagógica, capaz de reorientar os rumos dessa sociedade. Em busca de uma educação emancipadora, podem ousar nas ações e na crença da sua concretização. Pensar a escola como local de debate sobre a prática da realidade social nos abre a esperança do acesso à luta pelo conhecimento. Neste sentido, a esperança, enquanto característica humana, ganha maior visibilidade, cor e sentido no coletivo. Ganha força de realização.

Arroyo (2000, p.146) nos lembra que os vínculos entre educação, liberdade, autonomia, emancipação são mais antigos que os vínculos entre educação e mercado, portanto, se o conhecimento é condição de libertação11 é preciso aprender a liberdade para ensinar a liberdade e, nesse caso, a transgressão à ordem, parece ser a saída.

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Urge aprender que na relação trabalho-educação está a possibilidade de humanização do homem, pois sem este estar humanizado, trabalho e educação perdem o sentido. Na parte a seguir, estaremos apresentando a trajetória da Didática enquanto prática pedagógica e organização do ensino no Brasil.