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4.6 – “Escolarização” do Cotidiano no Telecurso 2000.

Segundo a Base Estrutural do TELECURSO 2000 (FRM):

A metodologia do Telecurso 2000 utiliza os conhecimentos que o aluno já possui, ou seja, conhecimentos adquiridos no seu dia-a-dia, no “cotidiano”, para incorporar novos e também habilidades que podem ser imediatamente transferidos para o contexto da vida social e da sua formação pessoal. Nesse sentido, torna-se possível desenvolver os conteúdos do programa do curso, bem como as habilidades básicas, as questões de cidadania e a capacidade empreendedora de cada um.

Nessa concepção, o Telecurso 2000 tem como prioridade reconhecer e integrar os conhecimentos do dia-a-dia dos indivíduos, ou seja, do “cotidiano” dentro da sua metodologia utilizada tanto nas fitas quanto nas apostilas do telecurso. Também, nos objetivos específicos do Telecurso 2000, tem-se como outra prioridade, sistematizar e aprofundar os conteúdos construídos em estudos anteriores e no curso das experiências profissionais e de vida. Nessa concepção, o telecurso procura viabilizar não só os conhecimentos escolares, mas também, os conhecimentos contituídos no “cotidiano”. Será que essa concepção metodológica realmente está presente na articulação desses saberes?

Assim, questionamos:

• Quais são as possíveis relações entre os conhecimentos matemáticos do cotidiano e os escolares?

• Será que essas relações acontecem de fato nas tele-aulas de Matemática? Nas tele-aulas de matemática, pode-se perceber que os personagens são colocados frente a dificuldades matemáticas do dia-a-dia. Para isso, o cenário utilizado para a filmagem das cenas são sempre lugares comuns, ou seja, espaços que se assemelham aos do cotidiano das pessoas, entre eles: escritórios, oficinas mecânicas, lojas de tecido, indústrias, ateliê de costura, canteiros de obras, etc.

Essas dificuldades são resolvidas sempre por personagens que, como vimos anteriormente, representam os sujeitos que tiveram acesso ao conhecimento escolar. Esses sujeitos/personagens que conseguem resolver essas dúvidas matemáticas acabam distanciando-se socialmente dos outros, ocupando assim uma posição hierárquica de prestígio, de respeito, de sujeito inteligente, de conhecedor da matemática e, por que não dizer de “donos” dos saberes.

Neste momento, esses personagens passam a simbolizar a figura do “professor”. Ao reconhecer essa semelhança entre personagem/professor fui cercado por novos questionamentos, como: nós, enquanto professores, não acabamos assumindo uma representação em sala de aula bem próxima à demonstrada nas tele-aulas? Não nos portamos como donos da verdade? Não nos colocamos como conhecedores da matemática escolar? Não nos distanciamos dos nossos alunos pela posição hierárquica do poder adquirido com esses conhecimentos?

Refletindo ainda mais sobre as tele-aulas de matemática, podemos perceber que os personagens das costureiras, dos agricultores, entre outros, por não terem adquirido os conhecimentos escolares, passam a assumir um papel de aprendizes, de sujeitos inseguros, desconfiados, sempre dependentes de um “aval” de um outro indivíduo que saiba mais que ele, para socorrê-los nas suas dificuldades. Logo, esses personagens passam a simbolizar a figura do “aluno”. Em outras palavras, se os personagens, que tiveram acesso à escola e ao seu conhecimento, simbolizam a figura do “professor” e, os que não tiveram acesso a ela, representam o “aluno”, temos nessas tele-aulas, temos, nesse processo, a encenação da relação professor/aluno tal qual ocorre nas escolas.

Relacionando tal reflexão com a idéia do cotidiano, podemos notar que nas tele- aulas há uma representação contínua da relação do professor/aluno, só que desta vez essa ação ocorre fora do ambiente escolar, mais precisamente nos espaços do cotidiano das pessoas. Uma vez que temos o deslocamento desses personagens para os espaços sociais comuns, espera-se que, também, possa haver uma aproximação maior dos dois saberes (saber escolar e não-escolar), já que isso irá ocorrer fora do domínio da escola, onde o saber escolar é soberano nessas relações.

Segundo a Fundação Roberto Marinho – FRM, o Telecurso 2000 tem prioridade em reconhecer e integrar os conhecimentos do cotidiano dos indivíduos dentro da sua

metodologia utilizada tanto nas fitas quanto nas apostilas utilizadas. Todavia, essa metodologia acaba não fazendo cumprir os seus objetivos, já que na hora da resolução dos problemas, é a matemática escolar que aparece para resolver as dificuldades do dia-a-dia das personagens.

No contexto das tele-aulas, o conhecimento cotidiano que as pessoas, adquirem no seu dia-a-dia, não é incorporado aos seus novos conhecimentos (escolares), assim, nessa relação, o saber do cotidiano é desvalorizado e esquecido. Desse modo, o que ocorre é uma “escolarização” do cotidiano, uma vez que, o saber cotidiano não é chamado para resolver as dúvidas propostas nem para estimular o desenvolvimento do raciocínio matemático escolar.

Podemos entender que seria possível estabelecer relações entre os conhecimentos matemáticos do cotidiano e os escolares se os primeiros fossem utilizados como um conhecimento relevante, os quais os alunos jovens e adultos já têm na sua prática, adquiridos no seu dia-a-dia, para incorporá-los aos seus novos conhecimentos escolares. Esses conhecimentos do cotidiano representam as suas raízes culturais, sua casa, sua comunidade, suas experiências profissionais e de vida.

Não ocorre a possibilidade da relação entre os saberes nas tele-aulas de matemática, pois somente o conhecimento escolar é usado para resolver as dificuldades das personagens. Portanto, excluindo o cenário da tele-aula (que caracteriza o cotidiano dos sujeitos) e os personagens (que se relacionam em suas práticas sociais), não se observa nenhuma proximidade entre o conhecimento cotidiano e o escolar nessa tele-aula.

O fato de não se estabelecer nas tele-aulas uma relação mais próxima entre os saberes do cotidiano e o escolar está relacionado aos fatores presentes na nossa sociedade que estabelece hierarquias de poderes e saberes. O acúmulo de um conhecimento por determinada pessoa poderá representar uma condição de poder sobre o outro. Isso, conseqüentemente será responsável pelo distanciamento e nivelamento dos sujeitos, ou seja, o sujeito portador do maior conhecimento ocupará uma posição mais alta na sociedade do que o outro que não a possui.

A escola, por ser uma continuidade da sociedade, acaba repetindo esse jogo de hierarquias ao legitimar apenas os seus saberes, distanciando ainda mais o professor do aluno. Assim, a escola não valoriza os saberes que os alunos jovens e adultos trazem de suas experiências de vida.

Assim, educar implica acolher o outro e apresentar-lhe a nossa cultura. Isso não significa nem anular a cultura do outro nem impor ao outro a nossa cultura, como se ela fosse à cultura, como se fosse a melhor, mais desenvolvida e mais evoluída forma de cultura. (VEIGA-NETO, 2006, p. 118).

Nessa relação entre os saberes, escolar e não-escolar, reconhecer que existe um outro conhecimento constituído fora da escola estaria tirando a legitimação do “poder” absoluto do conhecimento escolar, ou seja, o acadêmico. No contexto social, isso representaria dividir o poder dos grupos dominantes com os dominados. Como vivemos numa sociedade onde o poder capitalista impera sobre os homens, isso se torna difícil de ser praticado, pois a lei da “mais valia” ainda está muito forte na nossa sociedade.

Outro fator importante que devemos considerar é que, por trás do projeto do Telecurso 2000, estão grupos financeiros muito fortes da nossa sociedade (FRM, FIESP, SENAI/SP e SESI), que representam os sujeitos dominantes, ou seja, que detêm o poder. Esses grupos procuram realizar suas funções sociais para o desenvolvimento da educação desses jovens e adultos. São ações sociais positivas para a educação e qualificação profissional dos indivíduos, porém por trás dessas ações temos uma visão capitalista do mercado de trabalho, onde o investimento na educação e qualificação desses alunos resultará na melhoria e aumento de produção e, no aumento dos lucros desses empresários.

Mas, nesse contexto, o interesse principal continua sendo voltado ao mercado de trabalho e aos interesses capitalistas. Dessa maneira, a preocupação com o indivíduo/cidadão permanece em segundo plano, e isso, continuará beneficiando a concepção de elemento dominado pelo poder e pelos interesses desses grupos.

Segundo a Fundação Roberto Marinho – FRM, o Telecurso 2000 , tem como objetivos específicos de 1º e 2º graus possibilitar ao tele-aluno a construção de conceitos fundamentais para relacionar dados, fatos e conceitos das diferentes disciplinas do Núcleo comum do 1º e 2º graus, utilizando tais conhecimentos como instrumento de reflexão crítica da realidade.

Também, deve possibilitar que ele aproprie-se do conhecimento socialmente construído correspondente às necessidades de progressão pessoal e profissional, ampliando a capacidade de compreender e apreender novos conteúdos; sistematizar e aprofundar os conteúdos construídos em estudos anteriores e no curso das experiências profissionais e de vida; construir novos conceitos, cada vez mais complexos, com ênfase nos mais significativos para a formação geral do trabalhador e cidadão; desenvolver a observação e a capacidade de

descobrir novos conceitos, estabelecendo as relações entre estes e a articulação entre as idéias fundamentais; desenvolver a capacidade de generalizar, de raciocinar, de abstrair, de transferir conceitos e conhecimentos.

Na análise das tele-aulas de matemática não se percebe a presença desses objetivos, pois os personagens não apropriam-se dos conhecimentos socialmente construídos, não aprofundam-se nos conteúdos desenvolvidos em estudos anteriores e no curso das experiências profissionais e de vida. A relação de proximidade entre o conhecimento da vida cotidiana com a escolar não acontece. Sua história de vida e seus conhecimentos desenvolvidos através dela, não são reconhecidos. Assim, são desvalorizadas as raízes desses sujeitos e negamos sua trajetória, suas experiências e sua cultura.

Como poderemos esperar que esses alunos tenham condições de desenvolver a observação e a capacidade de descobrir novos conceitos, de raciocinar e de terem uma reflexão crítica da realidade, se seus conhecimentos de vida não foram respeitados? Como citamos anteriormente, o que se pode perceber é uma repetição dos conceitos ideológicos tradicionais de submissão ao sistema e ao controle do indivíduo. Esses indivíduos serão prováveis repetidores de apenas um conhecimento, o escolar.

Nós devemos recordar que esse aluno/cidadão/profissional está sendo criado sob os parâmetros dos objetivos do Sistema Capitalista onde a prioridade maior é capacitar e habilitar esse profissional para o ingresso no mercado de trabalho, no mínimo de tempo possível.