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A Escolarização das Práticas Teatrais

O fazer artístico no teatro apresenta certas peculiaridades inerentes somente a essa forma artística. Trata-se do trabalho do ator em cena e da relação com a plateia. Esse fazer constitui os elementos presentes na formação do ator que em diferentes teorias apresentam perspectivas diversas e até opostas. Na escola, as orientações presentes nos manuais curriculares não descartam a dimensão do fazer teatral e muitas sugestões de trabalho com o teatro em sala de aula são atividades desenvolvidas também nas práticas de formação de atores, tais como as improvisações e os jogos teatrais (BRASIL, 1998), já discutido neste estudo. No entanto, ao entrar nos espaços e tempos escolares, o teatro sofre modificações que se refletem nas práticas realizadas pelas professoras em sala de aula. Além disso, tanto os PCN quanto os Referenciais Curriculares Estaduais sugerem, além do fazer

teatral, a apreciação artística e a contextualização dos trabalhos apreciados. Assim, acredita-se que a análise das narrativas das professoras sobre os trabalhos que desenvolvem na escola com o teatro possa trazer contribuições significativas, quanto às táticas criadas por elas ao lidar com os múltiplos desafios que se colocam nesse contexto. Em outras palavras, saber ser professora de arte na escola, sem possuir formação inicial na área específica. Nesse sentido, conforme se pode observar na descrição de Ana sobre seus trabalhos com teatro em sala de aula, suas práticas se assemelham ao método dramático (play way), (COURTNEY, 1980). Nessa perspectiva a dramatização é utilizada como método para se ensinar conteúdos alheios ao teatro:

“... porque tem um texto criado, ai você vai desenvolver aquele texto com cada um dos alunos, atribuindo personalidade para ele, acho que não tem muito mistério não [...] eu já gostava, eu trabalhava em sala de aula artes e levava o português, eu fazia dramatizações através dos verbos, adjetivos, substantivos, através da arte. Eu lembro que eu pegava uma cortina assim de TNT, eu fazia um texto, eu ia atrás da cortina e aí começava a aula:

hoje a nossa aula é sobre sujeito, sobre adjetivo, sobre substantivo [...] aí eu chamava a atenção, eu fazia grupos e tudo [...]”. (Ana) (Grifos meus)

Já na narrativa de Dora dois momentos são relatados e trazem aspectos relevantes para a análise; o primeiro aspecto diz respeito ao trabalho com o teatro a partir da dramaturgia. Dora não propõe a princípio que os alunos representem um texto adaptado de um gênero narrativo; ela propõe que os alunos escolham uma obra escrita para o teatro: [...] teatro do Brasil, teatro de Portugal, teatro no Acre [...]. O critério de escolha é a localização geográfica. Embora ela não descreva com detalhes o que seria “apresentar a obra”, infere-se, a partir da segunda parte do depoimento, que essa apresentação seria a representação da peça. Num segundo momento, o outro aspecto relevante diz respeito à compreensão do teatro não só como arte do ator, mas agregam-se outros elementos que podem ser traduzidos a partir das palavras de Dora, tais como: cenografia – [...] ajudando no cenário, dando opiniões de como deve ser como não deve ser [...], cenotécnica – [...] você pode ser aquela pessoa que vai operar o som [...] e dramaturgia - [...] se não tivesse alguém que ajudasse na história, eles iam fazer o que lá na frente? Além disso, percebe-se que a forma como Dora compreende a leitura da obra realizada pelos alunos e alunas assemelha-se a uma tradução, ou seja, os(as) alunos(as) se apropriam da

obra e a traduzem, a partir do seu contexto, de suas possibilidades, do que compreenderam, por meio da apresentação da obra/peça.

“[...] teatro do Brasil, teatro de Portugal, teatro no Acre, essa

parte assim, claro que não é algo profundo porque eles vão ver isso mais tarde, né, bem mais profundamente, eu dou só uma noção, mas eu pedi pra eles três obras, dividi a turma em três grandes grupos e cada grupo teria que apresentar uma obra [...]

e aí eu notei que alguns alunos já ficaram meio ariscos [...] porque eles são tímidos [...] aí eu coloquei pra eles: vocês podem participar de várias formas [...] vocês podem participar ajudando no roteiro,

vocês podem participar ajudando no cenário, dando opiniões de como deve ser como não deve ser, você pode ser aquela pessoa que vai operar o som, você não necessariamente precisa ser o ator, porque o teatro não envolve só o ator e a atriz, a gente vê que o teatro tem vários outros elementos que você pode trabalhar, então você pode trabalhar no teatro sem estar à frente dele [...] aí eu notei que eles foram relaxando [...] Porque eles vão ler a obra e vão maquiar a obra e transformar numa coisa mais acessível a eles, menor e mais acessível, que eles possam colocar a ideia original de uma forma bem rápida, e mais fácil pra eles, da maneira mais fácil pra eles [...] mas quando eu pensei

nisso eu já pensei naqueles tímidos [...] olha, você pode fazer várias outras coisas sem estar no palco, não é que quem vai estar no palco vai ter uma nota maior do que quem ajudou no cenário [...] não é

assim [...] porque se não tivesse o cenário não tinha tanta graça o ator e a atriz lá na frente... se não tivesse alguém que ajudasse na história, eles iam fazer o que lá na frente? (Dora) (Grifos meus)

Outro aspecto encontrado durante as análises das narrativas docentes remete às disputas de legitimação no campo da arte que podem ser transpostas para o cotidiano escolar. O campo da arte é palco de disputas que envolvem discursos sobre a crítica de arte e dentre outras coisas a determinação do que é ou não reconhecido como obra de arte. Em geral, a arte reconhecida é a da cultura dominante, o discurso do bom gosto é o gosto de um determinado grupo social que historicamente produziu discursos autorizados e naturalizados pela sociedade sobre a arte. O que é reconhecido como belo não é refutado no campo por aqueles que não pertencem ao grupo social dominante, mas não é percebido por esse grupo que essas relações são relações de poder, de um poder simbólico engendrado no campo. O discurso do grupo dominante sobre a arte é tido como algo natural pelo grupo, é naturalizado como o discurso verdadeiro. O campo poderá ser constituído tanto por um grupo de especialistas, críticos, pesquisadores de arte como quanto por um grupo de artistas. O que importa é que a autoridade dos sujeitos que

pertencem ao campo seja reconhecida por seus pares, como aqueles que possuem o saber sobre determinada área, e, portanto, a verdade sobre ela.

No caso de Márcia, a escola delega a ela a função de professora de arte, mas não reconhece sua autoridade de especialista na área, pois não possui formação específica em arte. Tal atitude é revelada por meio da afirmação de Márcia, ao perceber a desconsideração da escola no que tange a suas sugestões, assim como a pouca importância dada ao componente curricular arte e ao teatro.

“[...] No Y, eu estou trabalhando como professora de arte, lá também é meu primeiro ano no Ensino Médio, minha primeira experiência, fiz uma sondagem, eles não gostam de teatro, a

maioria não gosta de teatro, eles colocam isso no próprio trabalho [...] dificuldade [...] mas lá [...] depois que o trabalho se concretizou eles perceberam como é legal fazer teatro, brincar, fazer o jogo

dramático. Na escola de ensino fundamental eles gostam, eu acho

que de todas as linguagens teatro é o preferido no ensino fundamental porque todos querem fazer teatro. Então eu percebo

assim, eu sempre falo na escola se a gente colocasse dois bimestres o teatro, os alunos iam amar, porque é muito fragmentado, primeiro bimestre é uma linguagem, o segundo bimestre, terceiro, quarto, quinto, outra [...] Eu só acho uma pena que a escola [...] ela não amplia [...] ela não dá mais espaço pra que isso aconteça [...] agora esse espaço que eu digo é sensibilidade pra causa [...]”. (Márcia) (Grifos meus)

Nesse sentido, são intensas as contradições e os conflitos existentes nos espaços da escola que atravessam as trajetórias dessas professoras e marcam suas práticas pedagógicas. Os processos de incentivo à autonomia da escola presentes nos discurso das políticas públicas muitas vezes trazem em seu seio contradições que se refletem nas percepções das professoras sobre o limite de seu próprio trabalho, pois:

Quando se analisa a autogestão da escola, com a descentralização financeira, administrativa e curricular, há que se observar que projetos conservadores, acusados de se alinharem com as políticas neoliberais do Estado, apresentam aspectos contraditórios. Ao mesmo tempo em que defendem o processo de descentralização, desenvolvem políticas centralizadoras, como a imposição de currículos nacionais e de sistemas nacionais de avaliação que limitam a real autonomia das escolas. (SANTOS, 2004, p.1149)

No relato de Sandra e Clara, revelam-se os inúmeros desafios de lidar com o teatro na escola, Sandra também relata a concepção que os alunos possuem da arte, como sinônimo de artes visuais:

“[...] Eu faço uma pesquisa com eles, eu faço um levantamento prévio sobre o que eles querem aprender dentro daquela área, ai depois que a gente vai desenvolver os conteúdos, por exemplo: eu

fiz um levantamento prévio sobre o que é arte, eles não sabiam, diziam que arte era só a obra de arte de Leonardo da Vinci a Monalisa e as pinturas, né [...] aí o pessoal quer que a gente fique trabalhando teatrinho pro dia das mães, pro dia dos pais, se a gente for trabalhar só datas comemorativas, nós não vamos produzir e esses alunos vão sair daqui sem saber nada de novo [...]”. (Sandra)

[...] Eu procuro trazer o que vejo pra sala de aula [...] Na verdade [...]

teatro na escola a gente tem aquele tempo limitado [...] porque a gente tem que trabalhar as quatro modalidades em arte [...] e aí teatro acaba sendo o final [...] (Clara) (Grifos meus)

A arte é vista geralmente como específica de uma determinada forma artística, em detrimento de outras, no caso, o teatro, como observado na escola de Sandra. Em geral, esse fenômeno acontece principalmente no que se refere a práticas pedagógicas relacionadas com atividades de ilustração, recorte e colagem, decoração das escolas, apresentações em datas comemorativas, atividades que são caracterizadas como arte na escola e que assumem a posição de servir às outras disciplinas ou acontecimentos escolares. A escolarização da arte ainda não se estabeleceu de forma significativa nos espaços escolares. E se nesse campo curricular a arte ainda possui uma posição menos importante em relação aos outros componentes curriculares, a escolarização do teatro, muitas vezes, ocupa um espaço marginal em relação às artes visuais, já que se entende a arte na escola como sinônimo de artes visuais.

No entanto, algumas práticas se revelam diferenciadas, apesar das dificuldades encontradas na escola, como é o caso de Cacilda:

“[...] aí em 1998 eu fiz um trabalho com meus alunos sobre a história do Acre e aí a gente fez uma pesquisa, uma pesquisa sobre o Mapinguari, a mãe da mata, outros valores da cultura acreana, e com esse trabalho a gente conseguiu montar sete performances e aí com

esse trabalho em 1999 a gente participou da mostra de teatro pela Federação de Teatro do Acre, foi até no Cine Recreio – eu tenho o registro – e lá no Cine Recreio a gente fez a primeira mostra de teatro da escola e depois a gente não tinha nome do grupo de teatro naquela época; foi lá que surgiu o grupo também. De lá pra cá a gente vem desenvolvendo a mostra de teatro estudantil na escola”. (Cacilda)

Cacilda encontra brechas para desenvolver seu trabalho com teatro: são táticas que a professora cria produzindo experiências significativas e abrindo novas perspectivas para a presença do teatro no cotidiano escolar. Tais táticas se relacionam, direta e indiretamente, com a construção dos gostos e preferências que Cacilda constrói durante sua trajetória como artista-docente.