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4 DISCUTINDO A TRAJETÓRIA ESCOLAR E OCUPACIONAL DAS

4.2 PRETERIDAS NO TRABALHO? TRAJETÓRIAS DAS MULHERES NEGRAS

4.2.3 Escolas e trabalho entre os mais jovens

As mulheres chefes de família mais jovens se encontram entre 20 a 39 anos de idade e constituem o menor grupo, com apenas cinco mulheres, cuja representatividade é em parte explicável, já que, em geral as mulheres chefes de família jovens, não são necessariamente chefes da casa, uma vez que moram, comumente, com pais ou parentes, sendo a estes referida a responsabilidade da casa tanto pelos membros quanto pelos próprios pais, sendo mais difícil encontrar mulheres jovens chefes de família assumindo também a chefia da casa, como é o caso das cinco citadas. Ainda assim, encontramos neste grupo um caso de chefia partilhada entre duas irmãs (embora eu tenha conseguido entrevistar apenas uma delas), que moram numa casa cedida pela mãe, acompanhadas de suas respectivas famílias - filhos e, em determinado momento, os dois companheiros.

A trajetória escolar dessas cinco mulheres, ao contrário do que poderia se supor se tratando de mulheres mais jovens, não foi até aqui marcada pelo acesso a um patamar mais alto de escolaridade. Nenhuma das cinco, até o momento da entrevista, tinha chegado a concluir o ensino fundamental, embora duas delas estivessem estudando e duas outras nutrindo a possibilidade de voltar à escola.

Para algumas, a interrupção dos estudos se deu muito cedo, ainda na infância, quando diante da necessidade posta pela família de enfrentar o trabalho, as condições necessárias para o desenvolvimento na escola foram gradativamente suprimidas. É o caso de Altamira, 37 anos

que não fora criada pelos seus pais biológicos, e atribui a isso parte das dificuldades que encontrou. Altamira, que no período da entrevista estava estudando, conta que só conseguiu estudar até a quinta série, e apesar de gostar muito de estudar, a dificuldade de conciliar trabalho e estudo e as consecutivas mudanças de local de trabalho, acabaram afastando-a das salas de aula.

“Sempre fui muito inteligente (...) eu nem estudava pra passar. Meu estudo era assim: eu tava lavando os pratos na casa dos brancos, botava o papel ali, dava uma olhada nele todo, aí eu pegava um pedaço de papel cobria a resposta e fazia a pergunta e respondia pela cabeça, que eu já tinha lido (...) às vezes até fazia teste relâmpago lá, e eu só tirava dez, as meninas diziam Mira bagunça, brinca, num estuda e só tira dez.”

(Altamira, 37 anos, catadora de material reciclável).

Assim como ela, também Márcia, de 33 anos teve a parca oportunidade de estudo interrompida pelo imperativo do trabalho precoce:

“Eu vim estudar tarde, porque eu tive uma infância terrível. Eu culpo minha mãe e no mesmo tempo não culpo. Por que não culpo? Porque ela não tinha condições de criar a gente. Eu vivia na casa de meu tio, mas meu tio não tinha aquela função, porque hoje... oi, vou contar uma história assim: meu menino veio ter registro com sete anos, então não ia deixar meu filho até sete anos sem estudar, com quatro anos de idade botei meu filho na escola, sem documento nenhum, fui lá conversei com a diretora, ela disse que não podia, chorei, ali sabe? Deus abençoou e ela abriu a porta, ela disse: olhe Márcia, ele vai ficar estudando, pra não ficar analfabeto e nem na rua subindo e descendo. Meu filho estudou até seis anos sem documento, quando ele fez sete anos aí o pai falou pra mim: ói, vou dar um presente a Mateus. Quer dizer, já era obrigação dele mesmo, né? Mas ele disse que era um presente, eu calei minha boca e aceitei, né? Ele foi e registrou o menino, aí sim, a partir desse momento que eu botei meu filho na escola como cidadão, eu achava que meu tio deveria fazer o mesmo comigo, e eu tinha registro, tinha tudo, qual é dele? Me levou pra morar com ele: não minha comadre, me dê o registro de Márcia que eu vou matricular ela na escola. Não. Fiquei até doze anos sem estudar. Nunca fui na escola, quando eu fui pra escola já foi nessa idade aí, com doze anos, com quatorze anos eu tive que sair, tive que trabalhar porque eu não tinha quem me desse pra me vestir, nem me calçar, então tive que ir pra a casa dos brancos cedo. Então aprendi bem pouquíssimo, leio bem arrastado, não sou analfabeta de tudo, porque graças a Deus sei assinar meu nome, e assino bonito, viu? Mas esse ano, em nome do Senhor Jesus Cristo, eu vou voltar a estudar.”

(Márcia, 33 anos, diarista).

Além do trabalho precoce, a maternidade, precoce ou não, vai contribuir para a interrupção da vida escolar das outras três jovens chefes de família, marcando, inclusive, no caso delas, a própria entrada no mundo do trabalho. Mirela, hoje com 20 anos e três filhos, engravidou aos 14 anos, quando interrompeu os estudos que já estavam atrasados. Hoje, ao

tentar voltar aos estudos esbarra-se com a dificuldade de não ter quem cuide dos filhos, apesar de morar com um companheiro, pai de seus filhos:

“Parei porque engravidei da minha filha, eu cochilava muito na sala de aula e parei, até hoje me arrependo né? Poderia ter continuado indo. Por exemplo, esse ano mesmo tava querendo voltar a estudar, mas como eu não vou ter quem fique com eles de noite. Porque ele [o marido] fica em casa durante a noite, mas não olha, não vai querer olhar, então não vou poder porque não tenho quem fique com eles à noite, mas foi muito bom o tempo que eu estudei eu tenho vontade de voltar a estudar novamente.”

(Mirela, 20 anos, lava roupa de ganho, produz e vende lanche para encomenda e vende produtos de beleza).

Assim como havíamos comentado antes, a despeito da baixa escolaridade entre as mulheres maduras, aqui também os efeitos da defasagem na carreira escolar, associado aos outros fatores que dificultam a inserção da mulher negra no mercado de trabalho acabam criando um cenário complicado para as mulheres chefes de família: neste grupo, de maneira mais generalizada, a informalidade e o trabalho doméstico serão os únicos campos de atuação referidos pelas mulheres nas entrevistas.

Se por um lado há uma dificuldade de inserção de pessoas com mais de 40 anos no mercado de trabalho, dificuldade mencionada por algumas das mulheres da seção anterior que procuravam emprego, esta dificuldade ainda é ampliada no caso das mulheres dessa seção que, em geral, bastante jovens (três delas não passam de 26 anos), encontram, a priori, duas grandes restrições no mercado de trabalho formal: a dificuldade do primeiro emprego para jovens e a baixa qualificação que ainda agrava a questão, num universo restritivo e

discriminatório como ainda é o mercado de trabalho brasileiro.

O que percebemos, entretanto, com as falas das mulheres, é que as dificuldades embora existam, e se coloquem a todo tempo diante dos olhos, não as impedem que disponham de todas as armas que possuem para dar conta de “levar a vida”, a vida delas e a vida de seus filhos (às vezes até de um companheiro ou marido). Tanto entre as mais jovens quanto entre as mulheres dos outros grupos etários, vamos encontrar um discurso marcado pelo desejo de contar as dificuldades que já encontraram, em geral, não para parecerem pessoas que carecem, mas para se mostrarem como pessoas que merecem condições dignas diante da maneira pela qual procuram, através do trabalho - precário ou não - dar sentido às suas vidas e às vidas pelas quais em algum momento de sua trajetória, ela se responsabilizou.