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A escravidão por dívida como imobilização do trabalhador rural goiano e maranhense

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3 TRABALHO ESCRAVO NO MARANHÃO CONTEMPORÂNEO

4 ALGUMAS CONVERGÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS DA ESCRAVIDÃO CONTEMPORÂNEA NOS ESTADOS DE GOIÁS E MARANHÃO

4.1 A escravidão por dívida como imobilização do trabalhador rural goiano e maranhense

Aê meu pai quilombo, eu também sou quilombola. A minha luta é todo dia, toda hora.495

Quem tem muita precisão, sobrevive da esperança.496

As epígrafes acima evidenciam, infelizmente, o mesmo fenômeno social: a marginalização histórica dos segmentos populares nos dois estados investigados nesta pesquisa. Elas também sintetizam a extrema contradição econômica e social que acomete os trabalhadores goianos e maranhenses. Assim, apesar das especificidades econômicas e sociais dos dois estados, eles estão em intersecção no trabalho escravo. Tanto os dados estatísticos da Comissão Pastoral da Terra (CPT) quantos os do ministério do Trabalho e Emprego (MTE) apontam os dois como grandes exploradores de escravos contemporâneos. Entretanto, no cenário nacional, Goiás aparece como um dos estados que mais recebe mão de obra maranhense, enquanto o Maranhão é o campeão nacional de “exportação” de escravos para outras regiões do Brasil. Daí, percebe-se que mesmo os dois estados apresentando realidades sociais, econômicas e históricas particulares eles vêm utilizando, sistematicamente, o trabalho escravo contemporâneo como forma de acumulação ampliada de capitais. E tanto um quanto outro utilizam, principalmente, a dívida como essência da subjugação de trabalhadores escravizados.

Tanto o abono pago no momento do aliciamento quanto a dívida contraída no barracão da fazenda constituem o elemento central da imobilização do peão. A escravidão por dívida foi registrada nos seringais da Amazônia, nas plantações de café em São Paulo, na lavoura de cana-de-açúcar no Nordeste, nos empreendimentos agropecuários da Amazônia Legal e, atualmente, no agronegócio. Nem mesmo as rupturas históricas do final do século XIX e primeiras décadas do século XX, evidenciadas na mudança das formas de governo e de Estado, fim da escravidão negra e revolução urbana, não foram capazes de quebrar as velhas práticas trabalhistas no campo.

 

495 “Canto toado por grupo quilombola durante Seminário promovido pelas pastorais Sociais do Campo, intitulado

Os Territórios das Comunidades Tradicionais e o Estado Brasileiro, do qual a autora desse artigo participou, entre os dias 25 e 28 de 2013 em Luziânia- GO”. SILVA, Cristiane Passos Melo e. Da formação ancestral ao espiritismo pela América: a história dos quilombolas na América Latina e os conflitos no Brasil. In. COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no Campo Brasil 2013. Goiânia: CPT Nacional, 2014. p. 123.

496 Maria da Piedade, Codó, novembro de 2006. In. MOURA, Flávia de Almeida. Escravos da precisão:

economia familiar e estratégias de sobrevivência de trabalhadores rurais em Codó (MA). 2006. 121p. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal de Maranhão, São Luís, 2006. p. 105.

Como exposto alhures, o estado de Goiás criou a Lei nº 11/1892 que aprisionou o trabalhador rural ao grande proprietário rural imobilizando-o, inclusive, com o apoio das instituições públicas goianas. Isso retardou por décadas a autonomia trabalhista do peão, subordinado aos caprichos e desmandos dos senhores de terras de Goiás. Entrementes, no Maranhão não foi criada nenhuma peça jurídica que imobilizasse legalmente o trabalhador rural, mas este ficou até a primeira metade do século XX preso aos coronéis do interior, inexoravelmente, por força das relações consuetudinárias e pela imensa necessidade de cultivar a terra na propriedade dos grandes senhores. E como visto no terceiro capítulo, no final da década de 1960 com a aprovação da Lei Sarney de Terras, foi inaugurada uma nova modalidade de cativeiro rural para o trabalhador maranhense. Em todas as regiões do Brasil, sempre esteve presente um fantasma real que corrói a liberdade e dignidade do trabalhador: a escravidão contemporânea. Dessa forma, ao longo da história e sempre que as elites rurais goianas e maranhenses necessitaram e desejaram, a escravidão foi resgatada sob as mais diferentes justificativas sociais, econômicas e morais.

De acordo com os dados estatísticos da CPT, os casos de trabalho escravo nos últimos dez anos (2005-2014) envolvendo os estados de Goiás e Maranhão contabilizaram 7.723 trabalhadores nas denúncias de um quantitativo geral de 51.772 e 5.213 trabalhadores libertos de um quantitativo de 33.124. Nesse sentido, o gráfico abaixo oferece uma visão panorâmica da escravidão contemporânea nos dois estados pesquisados.

Quadro 1 - Trabalho Escravo ANO UF GO Trabalhadores na Denúncia. GO Trabalhadores Resgatados. MA Trabalhadores na Denúncia. MA Trabalhadores Resgatados 2005 404 404 680 484 2006 277 154 445 284 2007 704 658 732 378 2008 867 867 885 99 2009 329 328 486 161 2010 435 435 282 119 2011 541 299 259 101 2012 148 138 166 87 2013 63 61 271 38 2014 64 60 135 58 TOTAL 3 882 3 404 4 341 1 809

Fonte: Centro de Documentação Dom Tomás Balduino497.

No contexto brasileiro, Goiás e Maranhão foram responsáveis por 15,88% dos trabalhadores nas denúncias e 15, 73% dos trabalhadores libertos, ao longo dos últimos dez anos. Pelo exposto, observa-se que os números absolutos tanto de um estado quanto do outro não apresentam grandes disparidades e que neles a escravidão contemporânea encontrou terra fértil para crescer e se desenvolver de forma plena. Entretanto, as estatísticas da CPT apontam uma drástica diferença na composição da escravidão goiana e maranhense, ou seja, enquanto o Maranhão apresenta um grande percentual de 25,5% de trabalhadores resgatados por unidade

federativa de referência, Goiás apresenta apenas 5%498. Dessa forma, no ranking brasileiro de

trabalhadores resgatados nessa categoria, Goiás aparece em 8º lugar no ranking e o Maranhão é o campeão. Destarte, mesmo o Maranhão sendo o recordista na categoria “exportação” de trabalhadores para a escravidão e Goiás entre os estados que menos exportam trabalhadores escravos, o uso sistemático da escravidão por dívida é uma característica marcante dos dois.

 

497 Os dados coligidos foram extraídos dos Cadernos de Conflitos do Campo Brasil, da CPT Nacional, dos anos

de 2005 a 2014.

498 COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. SÍNTESE ESTATISTICA em 31/12/2013 (atualização final 27/03/14)

A presença do trabalho escravo em todos os setores da economia rural goiana e maranhense é mais comum do que se pensa, pois os dois estados já estiveram ligados

umbilicalmente. No século XIX, parte do sul do Maranhão499como os atuais municípios de

Carolina e Balsas pertenciam ao estado de Goiás. Além disso, todo o norte goiano, atual estado de Tocantins, fazia fronteira com o Maranhão. Pode-se assim conjecturar que inúmeras sensibilidades econômicas, sociais e culturais se formaram ao longo de séculos influenciando mutuamente os dois estados. Logo, no imenso sertão goiano e maranhense, as relações de trabalho se plasmaram mutuamente, uma direcionando a outra reciprocamente. Trabalhadores rurais e grandes proprietários estavam existencialmente unidos pela terra, mas visceralmente distantes pelo regime de propriedade criado no Brasil pelas Lei de Terras, em 1850.

No isolamento geográfico do imenso sertão goiano e maranhense, no século passado, pode-se supor que o grande fazendeiro não era apenas senhor de terras, mas também de pessoas que viviam não as regras do direito público, mas do direito privado. Daí, afirmar que a imobilização do trabalhador rural através da dívida é pratica longeva, sendo narrada no começo do século XX pelo escritor goiano Hugo de Carvalho Ramos, na obra Tropas e

Boiadas500. Nesse sentido, a historiadora maranhense Maria do Socorro Cabral501no seu livro

Caminhos do Gado: Conquista e Ocupação do Sul do Maranhão, resultado de sua pesquisa de doutoramento em História na Universidade de São Paulo (USP), defende a tese de ocupação do sul do Maranhão a partir da frente sertaneja, de caráter não oficial e de ocupação espontânea a partir do avanço da pecuária pelo interior do Maranhão. Assim de acordo com Socorro Cabral, os criadores de gado dos estados da Bahia e Pernambuco que procuravam melhores pastagens para o gado chegaram ao município maranhense de Pastos Bons, depois ao sul maranhense e ao extremo-norte goiano no final do século XVIII.

Nesse contexto, Antônio Francisco, em 1811, inaugurou a navegação do rio Grajaú com fins comerciais, partindo do porto da Chapada (atual cidade de Grajaú) até São Luís. Dessa forma, a navegabilidade do rio Grajaú foi responsável pela integração de dois mundos diametralmente opostos: o sul e o norte maranhense; o elo de ligação entre duas sociedades

 

499 CABRAL, Maria do Socorro Coelho. Caminhos do gado: conquista e ocupação do Sul do Maranhão. São

Luís: EDUFMA, 2008.

500 RAMOS, Hugo de Carvalho. Tropas e boiadas. Goiânia: UFG, 1998.

501 CABRAL, Maria do Socorro Coelho. Caminhos do Gado: conquista e ocupação do Sul do Maranhão. São

Luís: EDUFMA, 2008. O livro oferece uma visão ampla do processo de ocupação do sul e sudoeste do Maranhão no século XIX, abordando, dentre outras questões, a espontaneidade dos grupos humanos que ocuparam o sertão maranhense e à formação de uma sociedade distinta daquela erguida no litoral, onde as Ordens Régias de Sua Majestade nem sempre eram seguidas.

distintas: a sertaneja, fora do projeto colonizador oficial marcada pela existência de gigantescas fazendas de gado; e a litorânea, onde predominava a monocultura, escravidão e latifúndio. Logo, as relações socioeconômicas estabelecidas pela via fluvial entre esses dois mundos

promoveram o encurtamento das fronteiras culturais, sociais e econômicas.502

O rio Grajaú tinha como agentes de integração das duas fronteiras maranhense os

vareiros503, cuja atividade consistia em empurrar canoas carregadas de mercadorias ao longo do

leito rio. Logo, as canoas que desciam o rio Grajaú rumo ao litoral maranhense, iam carregadas de peles de animais silvestres, couro espichado, malva e coco babaçu; e voltavam empilhadas de mercadorias, principalmente sal; este ir e vir de mercadorias era realizado, geralmente,

durante o período das secas, de maio a novembro.504

Como exposto em linhas anteriores, a principal mercadoria transportada de São Luís para o sul do Maranhão era o sal, alimento vital para o gado, comprado pelos criadores de gado maranhense, e também pelos fazendeiros do norte goiano. Antes de1920, o sal utilizado pelos fazendeiros do sul maranhense e norte goiano era adquirido na cidade de Belém, mas

devido a má qualidade do produto paraense, ele foi substituído pelo sal de São Luís505que possui

melhores propriedades minerais necessárias ao gado.

Assim, inúmeros tropeiros do Norte goiano, tendo a cidade de Porto Nacional (atual Tocantins) como principal entreposto da região, compravam sal em Grajaú e nas cidades circunvizinhas. Dessa forma, àquilo que Hugo de Carvalho Ramos, no começo do século XX, se referiu como “É escravo de sua dívida, que no sertão, constitui hoje em dia uma das curiosas

modalidades do antigo cativeiro [...]” 506foi praticado no imenso território que compõem o sul

do Maranhão e norte de Goiás (atual Tocantins). Nesse viés, a escravidão contemporânea

 

502 PACHÊCO FILHO, Alan Kardec Gomes. Varando mundos: navegação no Vale do rio Grajaú. Niterói- RJ,

2011. 266 f. Tese (Doutorado em História Social. Programa de Pós-Graduação em História), Universidade Federal Fluminense. 2011.

503 Categoria regional que se refere aos canoeiros que utilizam não o remo para deslocar a canoa, mas uma vara

fina e longa muito comum nos rios maranhenses.

504 PACHÊCO FILHO, 2011.

505 O alto teor de iodo contido no sal maranhense servia não só como imunizante, mas, também, como repelente.

Ele era potente na revitalização dos rebanhos e importante aliado na luta contra bernes e carrapatos. Da importância do sal cunhou-se a expressão: “ou o dá aos gados, ou perde o ferro. Gênero essencial à pecuária, o sal tinha um preço ínfimo no litoral e custava muito caro no sertão, onde foi sempre uma mercadoria nobre e servia até como medida de riqueza”. VIVEIROS, Jerônimo de. História do comércio do Maranhão: 1896-1934. São Luís: Associação Comercial do Maranhão, 1964. p. 200.

descrita por Hugo de Carvalho Ramos martirizou não só os camaradas goianos, mas os maranhenses do extremo-sul do estado.

Destarte, podemos conjecturar que, devido à proximidade geográfica e à intensa rede de sociabilidade construída na área de fronteira, a situação de escravidão descrita por Hugo de Carvalho Ramos, nas últimas décadas do século XIX, tenha se alastrado para além da fronteira goiana e, também, para as atuais regiões que fazem parte do sul do Maranhão. Nesse sentido, a professora Maria do Socorro Cabral ao trabalhar a ideia de ocupação do sul do Maranhão pela via sertaneja, evidencia o papel dos grandes proprietários de gado e de terras como pioneiros no desbravamento das terras virgens do sul do estado. Daí percebermos o imenso poder pessoal desses grandes proprietários e a rede de microrrelações construídas em volta da fazenda. Assim, trocas clientelistas, o apadrinhamento, a superexploração e trabalho escravo estavam, inexoravelmente, presentes no cotidiano dos trabalhadores rurais do norte goiano e sul maranhense.

Seguindo esse viés, grandes proprietários rurais goianos e maranhenses teciam a mesma estrutura social e econômica no imenso sertão brasileiro, levando à coisificação do trabalhador em benefício de si mesmos. Mesmo afastados dos grandes centros urbanos engendraram antigas e novas formas de produção, apropriação e subjugação da imensa população sertaneja nos confins do território brasileiro. Essa diversificada e complexa rede de exploração do trabalhador foi mais um elemento que garantiu a manutenção dos inúmeros privilégios das oligarquias rurais e a continuação da escravidão por dívida, beneficiando as classes abastadas em detrimento da miséria e superexploração brutal do trabalhador rural.

4.2 Modernização conservadora da agricultura brasileira e a escravidão por dívida em

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