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No Brasil, as mulheres demoraram a ser reconhecidas como autoras ou escritoras. O primeiro passo foi para serem leitoras. No dicionário de Antônio Moraes e Silva, em 1813, só existe a palavra escritor, singular e masculino, considerando autor de alguma obra escrita.162

A historiadora Tania Bessone ressalta, no trecho destacado acima, o tardio reconhecimento das mulheres como escritoras. Conforme abordado no capítulo anterior para

160DARNTON, Robert; ROCHE, Daniel. Revolução Impressa: A imprensa na França 177-1800. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996. P. 340.

161Sobre a relação entre a escrita e as autoras, ver mais em: CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: UnB, 1999.

162FERREIRA, Tânia Maria Bessone da Cruz. As leitoras no Rio de Janeiro do século XIX: a difusão da literatura.

as mulheres caberia, em um primeiro momento – e após certas reinvindicações – a leitura dos periódicos, mas não a colaboração e escrita no mesmo. Entretanto, apesar dessa colocação as mulheres começaram a escrever.163 Esse capítulo foi sendo desenvolvido nesse sentido, entender a escrita das mulheres que compuseram parte dos artigos do periódico e elaboraram algumas séries de publicações ao longo dos anos em que Marmota foi editada. De acordo com Monica Jinzengi, os escritos feitos por mulheres foram vistos durante um tempo como de menor qualidade e reservados a uma escrita privada, a exemplo da troca de cartas. Mas, para além das epístolas, essas mulheres encontraram espaço na imprensa feminina, que vinha crescendo ao longo do século XIX.164

As escritoras foram se formando nesse movimento de leitoras, haja vista que o hábito da leitura resultaria em escritos posteriormente publicados. Beatriz Francisca de Assis Brandão165, mulher oitocentista que colaborou por muitos anos na Marmota, destacou, em uma de suas poesias publicadas no periódico, as leituras às escondidas que fazia dos pais:

Eu tinha conseguido a grande dita

De encontrar um Camões, e um Bernardes Que em um cesto jaziam esquecidos Entre velhos, e inúteis alfarrábios, Pude escondê-los, e em segredo os lia. Que ilustração! Que fonte de ciência! Li, reli, decorei, compus idílios!166

Nesse trecho Brandão afirmou suas leituras e sua posterior composição. O certo é que Beatriz Brandão não estava sozinha na jornada de ser uma mulher escritora oitocentista, a leitura da Marmota nos possibilitou conhecer e reconhecer outras sujeitas que compunham o conteúdo desse periódico e que utilizavam da escrita como divertimento, objeção a concepções postas socialmente ou como forma de sustento.

Os assuntos abordados por essas escritoras eram variados e ocupavam espaços distintos do periódico, conforme destacado em um trecho do capítulo anterior. Entretanto, raras vezes os escritos produzidos por mulheres encontravam-se na primeira página do jornal; e era nessa

163Norma Telles trata dessa questão no artigo, já citado no capítulo 1: TELLES, Norma. Escritoras, escritas, escrituras. In: DEL PRIORE, Mary (Org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2009. p. 401-442.

164JINZENGI, Monica Yumi. Leituras e escritas femininas no século XIX. Cadernos Pagu, Campinas, n. 38, jan-jun, 2012.

165Adiante abordaremos mais profundamente essa escritora, mas para saber mais, ver em: PEREIRA, Claudia Gomes. Beatriz Brandão: mulher e escritora no Brasil do século XIX. São Paulo: Scortecci, 2005. PEREIRA, Claudia Gomes Dias Costa. Contestado Fruto: a poesia esquecida de Beatriz Brandão (1779-1868). Belo Horizonte: UFMG; FALE, 2009.

primeira parte que estavam os artigos – definidos segundo a concepção do redator – mais importantes e que atrairiam compradores.

Tais escritos iam desde poesias, passando por folhetins, até artigos reivindicando participação política. Separadamente, as questões mais interpeladas eram: amor, educação e matrimônio; pontos que abordaremos ao longo deste capítulo. Entretanto, também trataremos de artigos críticos quanto as mulheres públicas e a participação das mulheres na política que, apesar de não serem frequentes, são fundamentais para a perspectiva social que buscamos trazer.

Conforme destacado pelo historiador Robert Darnton, quando tratamos de compreender alguma situação e/ou escrito é necessário entender o texto pelo contexto.167 Nesse sentido, percebemos que alguns desses escritos compunham-se a partir de discussões que estavam acontecendo na Corte em meados do século XIX e que acabavam por também serem desenvolvidas na imprensa. Rodrigo Cardoso, em sua tese, destacou a agência histórica da imprensa oitocentista:

Ao se analisar a imprensa, faz-se necessário enfocá-la não apenas enquanto veículo de ideias refletidas de uma realidade socioeconômica definida, mas enquanto agente histórico produtor e disseminador de textos que, ao mesmo tempo influenciavam e eram influenciadas pelo contexto. 168

Nesse sentido percebemos a Marmota como partícipe de questões abrangentes ao universo das mulheres e postas na sociedade da década de 1850, alguns pontos iam além de tal universo feminino e relacionavam-se com a prosperidade de um país que estava em construção. Ademais, acrescentemos a afirmação feita por Barbosa Lima de que “os povos tem a imprensa que merecem”169, essa frase ressalta a dimensão que o contexto social, cultural e político tem diante da construção da imprensa, tendo em vista que ela se desenvolve a partir de condições colocadas pelo povo, daquilo que o ‘povo merece’.

No mais, identificamos ao longo da análise, uma certa pluralidade de pensamentos a respeito da condição feminina no século XIX; colocados de forma diferente – principalmente se nos atentarmos na autoria masculina ou feminina. Isso se deu, pois, “a imprensa foi usada como fio condutor de valores sociais que deveriam ser apreendidos pelos seus leitores. Ao mesmo tempo foi também por meio dela que muitos padrões sociais puderam ser questionados

167DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

168CARDOSO, Rodrigo Soares de Araújo. Caminhos na produção da notícia: a imprensa diária no Rio de Janeiro (1875-1891). Rio de Janeiro: UERJ, 2015. P. 11.

e até mesmo rompidos.”170 Nesse sentido, uma série de discursos e opiniões podem ser encontradas na Marmota pois os colaboradores(as) e escritoras(es) eram diversos e discordavam em certas questões.171

A composição desse capítulo foi pensada de forma a analisar os escritos a partir dos temas discorridos e então compreender as mulheres que estavam por trás de tais publicações. Foram muitos sujeitos e assuntos interpelados durante a circulação do periódico, assim como as estratégias utilizadas por essas mulheres a fim de melhor se colocarem na Marmota, nesse seguimento apresentamos algumas dessas questões a seguir.