• Nenhum resultado encontrado

ESCRITOS DA NOITE

No documento UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ (páginas 95-151)

A Dança da Vida: Dançar a Vida63...

A dança-afro da última sexta-feira64 levou-me a uma síntese de vários dias.

Norval chegou uma hora atrasada. Aí colocou LadySmith Black Mambazo65 - coral

masculino sul-africano. Em círculo, iniciamos as atividades. Deitamo-nos em posição fetal, uterina. Fiquei assim um pouquinho mais de tempo que a maioria. Os movimentos foram expandindo-se.

Seguia LadySmith Black Mambazo. Depois outro som africano, mas que desconheço a origem. Fizemos a sequência de sempre. Dançamos pouco reggae e muito samba. Ainda não estou contente com meu gingado, mas vou melhorando. Tenho os quadris muito presos. Aliás, numa certa sexta-feira, logo no meu início das atividades da dança-afro, senti tanta dor nos quadris que a minha conclusão ao final foi simples: “Não sabia que eu tinha essa parte do quadril, agora a dor me mostrou que tenho”. Hoje ainda sinto dores pois todos os movimentos exigem quadris soltos, mas a dor é suportável. Aos poucos vou ganhando molejo, afinal, são 31 anos de rigidez do quadril e não será em um mês que isto se resolverá. Por outro lado não sonho em dançar como o “professor”. Cada um é cada um e tem seus próprios limites físicos. Os meus estão surgindo a cada atividade. Aliás, como já falei noutra ocasião, minha primeira lição foi descobrir como tenho muitos limites físicos! A lição é identificá-los para trabalhá-los depois, de maneira paulatina e equilibrada.

As coreografias sucedem-se, sempre com novos passos e inovações nos movimentos66.

Gostei muito quando fizemos o toque do afoxé embalados pelo som de Gilberto Gil cantando “Filhos de Gandhi67”. Senti Oxalá68 do meu lado. Do nosso lado. Hoje o pessoal estava com pique.

Animados. Dançamos até o suor cobrir nossos corpos. Apagaram-se as luzes. Música lenta,

63 “El cuerpo-mente-espíritu es la danza misma que se adhiere a la vida. Es la esperanza de no dejar escapar la armonía Del ser humano que se mueve al compás del cosmo. Sin Luna no hay movimiento, sin Sol no hay movimiento, sin Água no hay movimiento, sin Aire no hay movimiento... sin danza no hay vida y todo ello se conjuga en DANZAR LA VIDA, DANZAR LA HISTORIA, DANZAR LA MEMORIA” (García, 2004, p. 9).

64 15.08.2003.

65 Faixa 6 (“Izithembiso Zenkosi”) do CD-TESE/Parte I. In: Best of Lady Smith Black Mambazo. 66 Vide fotos 1,2,3 e 4.

67 Faixa 7 (“Filhos de Gandhi”) do CD-TESE/Parte I. In: O Melhor de Gilberto Gil.

68 Oxalá é o orixá que veste branco. Considerado rei entre os nagôs, Oxalá é reverenciado por sua sabedoria e por ser o mais velho entre os orixás.

ritmada por tambores. Formamos novo círculo e iniciamos as reflexões. Passa-se um bom tempo sem que ninguém fale. Então tomo a iniciativa, ainda repleto do momento de silêncio que irmanava a todos.

Digo que a dança-afro de hoje sintetizou meu dia, ou melhor, a experiência de vários dias. Contei que passei a tarde na Praia do Futuro, participando dos festejos do dia de Yemanjá69. Com

efeito, foi um dia especial. Fui até lá convidado por um Pai-pequeno de um terreiro de Candomblé aqui de Fortaleza e aproveitei para convidar uma amiga do doutorado. Estivemos sempre juntos. Por mais de um quilômetro o que se via, espalhado pela margem da praia, eram pequenos cercados demarcados com madeira, onde os filhos de santo dos terreiros de Umbanda se reuniam. Todos tinham Yemanjá. Em todos os cercados os atabaques (quase sempre tumbadoras) soavam, homens, mulheres, crianças e idosos se embalavam ao som dos tantans, bebiam, dançavam, fumavam, conversavam com os Deuses e os Deuses com o povo. A população era predominantemente afro-indígena. A marca da presença indígena num ritual afro-brasileiro chamou-me por demais a atenção. As novas gerações estavam em peso na festa. Tudo muito pacífico. Apesar da bebida e do aglomerado de pessoas não vi uma única manifestação de violência por parte dos umbandistas. O que vi foram cores. Muitas cores. Vi o império dos Caboclos70, o reino dos Pretos-velhos, os palácios das Pombas-gira, o principado dos Exus-

caveira. Todo mundo lá, vestido de preto e vermelho, não faltando o lilás de Nanã e muito vermelho-carmim de Yansã/Santa Bárbara. A alegria comandava a festa. O respeito debochado do povo-de-santo que, de maneira muito jocosa, mantém firmemente seus preceitos e seus princípios. Meu anfitrião conhece todo mundo. A todos beijava e abraçava. A toda hora nos contava histórias, fuxicos do Candomblé e da Umbanda. Aquele povo realizando uma grandiosa festa popular. Os rostos castigados pelo sol e pela vida dura que se leva, cabelos carapinhas e lisos, pretos e grossos, ornavam com olhos enrugados, quase sempre tristes e misteriosos, impondo certo respeito e temor. Seduzindo mais que assustando, comunicando-se no interior de seus segredos, comunicando mistérios no fulgor de sua festa. Risos de dentes estragados e voz rouca de cigarros, charutos e bebidas baratas. Cantigas de terreiro era a trilha sonora do dia de Yemanjá. Todo canto era um grito, de dor ou gozo, mas um grito. Ninguém afina ou imposta a voz. O canto é berrado. Quem canta é o Caboclo, o Preto-Velho. Voz rasgada. Veias grossas saltando do pescoço. Respiração ofegante. Corpos retesados, em transe, liberando na voz o que tendem a reprimir. Aqui canta-se com o corpo todo. O canto é uma vontade do corpo. O corpo uma vantagem da voz. E não importa os dentes podres, as faces castigadas pelo sol, os corpos franzinos ou imensos; todo canto aqui é sagrado. Não um sagrado delicado. Não! Aqui o sagrado

69 Yemanjá, orixá que habita a superfície do mar. Mãe de quase todos os orixás, é muito popular no Brasil, sendo celebrada no dia 02 de fevereiro na Bahia e no dia 16 de Agosto no Ceará.

é da carne deste povo. São pés descalços e mãos expressivas a orquestrar qualquer movimento. Tudo é exageradamente belo. Não basta um vestido vermelho. Há que ser o mais vermelho. Não basta ser um colar de enfeite. Tem de ser o colar! Não basta tirar som dos atabaques. As mãos sangrarão, mas os toques do meu terreiro hão de se sobrepor. Vi mãos em sangue de um menino- ogã, que a despeito de sua dor, não arrefeceu um só minuto. Vi meninas de 13 ou 15 anos na mesma posição, hirtas, paramentadas em suas vestes de Yemanjá. Olhos cerrados ou que se perdiam no horizonte, olhando tão longe ou tão aquém que ninguém poderia encontrar; meninas em transe na posição de louvação e oferenda horas a fio, resolutas, seguras, belíssimas, vestidas de azul e branco.

Havia terreiros totalmente trajados de índios, com arco, flexa e tudo. Um ritual que se contrapõe ao purismo nagô71. O que seriam atabaques era, na verdade, tumbadoras. Na maioria

dos casos eram tan-tans. Dois, um, raramente três. Inusitado para mim foi ver uma grande quantidade de mulheres tocando percussão. Conheci uma, inclusive, que ensinou a maioria dos ogãs de Fortaleza, conforme me confessou um alabê72. É uma cafusa que carrega em seu andar a

sabedoria e o brilho dos ancestrais. Um jeito faceiro e contido. Uma autoridade. Vi gente caindo no transe, rindo, piscando os olhos naturalmente e depois voltando pro transe. Reparei nos vestidos e panos-da-costa completamente distintos daqueles a que estou acostumado a ver nos ritos Ketu/Nagô. Não fiquei fazendo grandes comparações teológicas, apenas registrei diferenças das indumentárias e instrumentos musicais.

Grande festa para a “senhora cujos filhos são os peixes”. Yemanjá recebeu perfumes e flores: jasmins, margaridas, crisântemos. As oferendas foram muitas e variadas. Os tambores não paravam. Saía um terreiro, outro chegava. Milhares de pessoas na praia, entre umbandistas, turistas e curiosos.

Ao final, perto das 17h, vimos cenas de violência na praia. Eram os temíveis arrastões. Degradante tragédia. Jovens, em sua maioria homens, provavelmente das favelas ao redor da Praia do Futuro, atacam os turistas em bando. Vimos cerca de 10 jovens dando socos e ponta-pés numa garota estrangeira para roubar-lhe a bolsa. Lamentável. Chocante. Não vi ninguém da umbanda envolvido. Foi esta visita à Praia do Futuro um grande espetáculo popular: a festa de Yemanjá e a violência urbana. Pensei “o menino que tocava tambores com as mãos sangrando não se envolveria naquelas cenas de violência contra o corpo do outro. O sangue derramado na tradição é outro. É sangue de oferenda, de libação. O sangue da violência urbana é o sacrifício do humano.

71 No Brasil houve uma visibilização maior da cultura nagô, o que alguns intelectuais chamaram de nagocentrismo, que prima pela “pureza” de tradição africana e que confere maior legitimidade aos cultos realizados no candomblé em detrimento dos cultos realizados na umbanda. Vide Oliveira, 2001.

72 Alabê é o nome do cargo dos ogâs que são responsáveis por tocar os atabaques nos rituais religiosos do candomblé.

Sacrifício que mata e não alimenta os Deuses. Prenhe dessa festa popular foi que fiz uma síntese para o grupo da dança-afro.

Disse que hoje tive contato com grandes coisas. Tendo passado a tarde toda em companhia da mãe Yemanjá, vi quão grande são os orixás, o mar e o barulho do mar. Quão grande é o vento! A posição uterina me deu a dimensão da grandeza do útero. No útero não tem pensamento, mas já habita a vida. O aconchego do útero da mãe é como o aconchego do ventre- água de Yemanjá. Revivi, no mergulho no mar, a sensação avassaladora de ser ternamente acolhido pelo útero da mãe. Útero da Mãe África na voz do coral africano. O útero é a primeira experiência da vida. É pequeno. Primordial. Mas já tão grande! Imenso!!! É algo tão pequeno, mas que é universal para nossa espécie. É estrutural para a existência. Nenhuma filosofia pode ser criada se não a partir do útero.

Com a música “filhos de Gandhi” e os passos do afoxé, senti Oxalá perto de nós. Ele é esposo de Yemanjá. Orixá da criação é também o zelador dos oris73 humanos. Dia repleto de

criação! Oxalá, de certa forma, fecunda o útero. A dança, ritmada, previsível, é um prazer intenso. Aos ouvidos e ao corpo todo. Os movimentos dessa dança, por serem repetitivos, suaves e magestosos, são movimentos ritualísticos e me levam ao transe. Oxalá habitou o lugar.

Ao final, o silêncio. Pai de toda palavra, o silêncio é o que verdadeiramente unifica a experiência. O silêncio dá densidade aos seres. Os sons dão ritmo, alegria, movimento, graciosidade, lentidão, tristeza, melancolia, euforia, tesão... Mas o silêncio dá o peso do existir. Tudo o que existe parece existir antes no silêncio. O silêncio é a afirmação do ser. A singularidade é o silêncio das diferenças, é a cola da diversidade.

Tudo é grande: o mar, o som, o útero, o vento, Yemanjá/Oxalá e o silêncio. Síntese das coisas que formam e fabricam o universo. A cultura é grande e singular. O silêncio também. Oxalá, o mesmo. O som, ídem. É assim que as coisas são. Assim se formam. Inventam-se. São grandes, misteriosas, estruturais, singulares.

Houve o relato de uma antiga freqüentadora da “casa” que confessou não querer vir para a “afro”. Jocosamente, afirmou que tudo começou como ela não queria e terminou como ela não queria. Ou seja, quando iniciou a dança ela não estava a fim de fazer nada pois estava com o corpo de gripe. Depois considerou que já sabia tudo, que não tinha mais novidade para ela. Então, surpreendeu-se! Descobriu muitas novidades em si mesma. Curtiu. E no auge de sua euforia, Norval parou a atividade. Ela queria que continuasse. Enfim, terminou como não queria. Ela lembrou ainda da vida desiquilibrada que vivemos no sistema capitalista. Reparou que a maioria dos participantes reclamou de como chegaram alquebrados da semana. Saúde, trabalho, correria,

stress, mal-estar... Ela dizia que parecemos esquecer que temos um corpo e que o corpo tem um ritmo. Lembrou que o capitalismo faz de nossos corpos, máquinas. Mas eles não são máquinas. São corpos e precisam de atenção. Outra dançarina corroborando a fala dela, testemunhou que viveu uma semana difícil, stressante e que ao entrar em contato com a música e com a dança sentiu imediatamente os efeitos no seu corpo. Chegou desanimada. Saiu harmônica. Ela sempre testemunha de como a música repercute em seu corpo. Diz que cada instrumento mexe com uma parte ou um conjunto específico de seu corpo. Isso se verifica ao vê-la dançando. Outra disse não ter se sentido bem. Não se entregou. Sentiu mal-estar. Também falou no trabalho e como o seu corpo não estava bem. Mas não por causa do trabalho. Essa semana ela foi bem no trabalho e mal na dança. A tempo livre não é um espaço homogêneo.

A Dança da Vida: Dançar a Vida... Fotografias

As coreografias sucedem-se...

foto 1

foto 3

foto 4 Roda de Partilha

Teias-de-Aranha

Adoro teias-de-aranha! Seus desenhos e significados me encantam. Em todo lugar vejo seus vestígios. Enredo-me e vejo enredado nelas as artimanhas desse mundo. Seja como metáfora, signo ou gozo estético, as teias de aranha imprimem em mim toda sua força e mistério. Elas tomaram o mundo todo e muitas vezes na Tempo Livre eu me deparei com teias-de-aranha produzidas pelos aracnídeos que habitam a Casa, ou pela grande teia-de-aranha que dá forma ao teto da Oca Mãe. Sobretudo nos dias de dança-afro é que a visão/reflexão sobre elas me invadem, ou, propriamente dito, são nessas ocasiões que as teias-de-aranha da Tempo Livre me capturam. Aconteceu também na serra de encontrar teias-de-aranha e ficar como que hipnotizado por elas. Aconteceu no Parque Rio Branco, no dia em que treinávamos na segunda-feira, dia 25/08/03, ficar acompanhado das aranhas e suas teias e ouvir os atletas falando de um lado e, de outro jeito, “ouvir” o trabalho surdo das aranhas. Aconteceu no Caquende, em Cachoeira, na Bahia, quando de minha visita a Gayaku Luíza74. Antes da entrada no terreiro uma imensa teia-de-aranha cobria

toda a cerca de arame e fiquei lá, enredado nos fios do tempo com a tacelã de metáforas e arquiteta de labirintos.

Mas foi na Tempo Livre que pude não apenas experimentar o encanto das teias, mas de tornar público essa paixão e, ainda mais, compartilhar com os meus os muitos sentidos que elas foram desenhando em minha subjetividade. Acabo por entender que toda vez que vejo uma aranha tecendo sua teia apreendo que ela também tece minha subjetividade e o tecido do mundo. Uma simbiose dos sentidos que vai multiplicando metáforas e re-criando signos.

Dia 12/09/03, depois de mais uma seção de dança-afro, Norval Cruz conduziu o relaxamento e alguns ficaram tão entregues que dormiram. Eu fiquei no limiar entre o sono e a vigília. Houve um grande silêncio. Uma penumbra encobria toda a Oca Mãe. Meus olhos foram se abrindo muito vagarosamente. De barriga pra cima, minha cabeça estava exatamente debaixo do centro da grande Oca, lá onde vejo o núcleo da teia-de-aranha. Assim que minhas pupilas puderam enxergar algo, foram teias-de-aranha o que viram. Assim, demorei-me um pouco mais nessa visão. Essas visões sempre vêm acompanhadas de idéias, e, como não separo sentimento de pensamento, como está escrito nas linhas[teias] cravadas na minha mão, também não separo

74 Gayaku Luíza Franquilina da Rocha era uma yalorixá de 96 anos que dirige o Rumpaime Runtologi na cidade de Cachoeira - Recôncavo Baiano. Lamentavelmente, no processo final de escrita dessa tese, Gayaku faleceu no dia 20.06.05 na cidade de Cachoeira – BA. Como seu neto-de-santo, presto-lhe aqui uma singela homenagem.

imagem de conceito, daí imaginação e criatividade serem faces complementares da mesma unidade subjetiva.

Ainda me lembro que no final do relaxamento, com os olhos embaçados pela falta de luz e pelo estado de relax do corpo, deitado com as costas no chão pude, uma vez mais, vislumbrar a TEIA-DE-ARANHA75. Dessa vez visitou-me a seguinte idéia através da imagem. Todo círculo é

uma teia. A teia é um círculo e tem linhas que interligam e sustentam o círculo. Na teia-de-aranha isso é o visível. Nos outros círculos as teias são invisíveis. Invisíveis como as teias da cultura que sustentam e dão forma ao círculo do mundo. O mundo é um círculo, uma esfera. O que sustenta essa imensa esfera são as teias invisíveis e múltiplas da cultura. Fiquei pensando que a gente vê mais quando apertamos os olhos e vemos apenas o contorno do círculo. Mas quando abrimos os olhos podemos ver as teias ou fios que interligam o círculo, sendo que as teias erigem-se em todas as direções e de todos os caminhos. É uma teia assimétrica. Só o círculo é permanente, mas... distante.

No dia 03/10/03, em outra sessão de dança-afro, me ocorreu outra imagem: a da roda da bicicleta. Com os olhos apertadinhos fiquei olhando para o teto da grande Oca. E veio novos

insights sobre a teia-de-aranha. Pensei que os raios que estruturam a roda, na verdade, estão em constante movimento, como na roda de bicicleta. A roda é a estrutura. Os raios mantem a roda. Mas quando em velocidade os raios não aparecem, apenas o desenho da roda. Essa é uma imagem perfeita para a Forma Cultural. Ela é uma esfera dinâmica que possui várias teias ou raios que sustentam a estrutura (a roda). As teias (traços culturais idiossincráticos, culturas singulares) são também elas dinâmicas e se movimentam incessantemente em suas singularidades. Dependendo da velocidade e do ângulo que vemos a roda podemos ou não perceber a existência dos raios (teias). De maneira geral vemos apenas o movimento da roda. É o senso comum. E o senso comum, neste caso, é mais próximo da filosofia, pois vê o conjunto (o todo). Quem vê os raios (teias de cultura) são os especialistas, os “cientistas”, aquele que na complexa estrutura da roda dedica-se a observar os raios que a sustentam. Apenas que diferentemente da bicicleta, as teias (ou raios) da Forma Cultural são dinâmicas e giram por todas as direções e lugares.

Uma pesquisa depende da velocidade e da posição daquele que olha. O olhar jamais é estático. O olhar é dinâmico! O olhar é movimento! Pesquisar é saber dosar a velocidade com a posição de quem olha e estar ciente de que qualquer olhar é movimento. O olhar não só constrói movimento. Ele é movimento.

75 Foto 5.

Muitas vezes o registro da experiência da dança-afro, nas sextas, foi feito bem a posteriori, por isso algumas sensações e pensamentos diluíram-se entre o vivido e o registro. Foi o que aconteceu no dia vinte e quatro de outubro de 2003.

Pensei algo mais sobre as teias-de-aranha, mas já não me lembro exatamente o quê. As teias são ilusões, o desenho é ilusão, porque ilusão é pensar que tudo está parado. Tudo é movimento e qualquer desenho é cristalização do movimento. Os olhos estão acostumados a desenhos. Eles é que tecem a paisagem, mas a paisagem é pura ilusão. Tudo é fugidio, mas foge para o encontro. Podemos sentir o movimento. Não podemos vê-lo.

Como dizia Norval, ao final da dança: “A Terra dança. O rio dança. O vento dança. A árvore dança. Dançam os animais; a terra dança. Dançar a vida. A vida é dança!” E falava isso tudo com sua voz telúrica, enquanto só a penumbra estava em meus olhos e os sentimentos dominavam.

Nos primeiros dias em que andei pela Tempo Livre fiquei sempre bem acompanhado pela grande teia-de-aranha da Oca mãe. Em julho de 2003 predominaram as visões de transcendência e imanência a partir da imagem da teia-de-aranha. Percebi que quando acabavam as seções da dança-afro - sempre findadas em relaxamento - minha visão parecia ver menos, pois há nestas ocasiões apenas uma luz tênue na Oca, e como parecemos mergulhar no estado entre o sono e a vigília, ao abrir os olhos tudo ainda está coberto de sono e penumbra. Então me apercebi que para não irritar os olhos, sempre os abria mui vagarosamente e como que apertando a visão. E foi então que entendi que neste estado eu via mais. Parecia que longe das luzes e da distinção dos objetos, a penumbra leva a ver o que não está evidente quando as luzes são abundantes. Vê-se menos quantidade, mas enxerga-se o simples. E o simples é o essencial.

Sem distração para os olhos fixei-me no teto da Oca mãe. No centro da Oca uma luminária branca envolta num lustre amarelo. Depois tem os caibros que sustentam o telhado da oca, que se alastram do centro para a periferia. Eles seguem o sentido vertical. Depois, perpassando esses

No documento UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ (páginas 95-151)

Documentos relacionados