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SEMIÓTICA DO ENCANTAMENTO

No documento UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ (páginas 171-200)

DE ESTRUTURAS E SINGULARIDADES

SEMIÓTICA DO ENCANTAMENTO

O Que é Ver?

A cultura do simulacro provoca vertigem e seu jogo de embuste não oculta, mas ressalta o mistério. Imagens reverberando em imagens, a cultura do simulacro não permite que raciocínios formais domestiquem o mundo da experiência. O Outro não fica reduzido a conceitos nem o mundo reduzido a esquemas. O mistério não desliza para a metafísica nem a magia para o ocultismo. Doravante haverá um regime semiótico para ver o universo africano que inspira a ação dos afrodescendentes na realização de uma educação em sintonia com seus próprios valores. Ver, entretanto, não é tarefa das mais simples. Como metáfora da cultura grega, a visão é sinônimo de razão. O sol que o filósofo encontra ao sair da caverna de Platão é a luz da razão. Ver, neste caso, é contemplar a verdade do mundo. A “verdade do mundo”, porém, não é tão evidente. A cultura do simulacro produz vertigem exatamente quando rompe com o paradigma ocidental (clássico, medieval e moderno) e propõe o Paradigma Exu, onde o jogo entre sombras e luzes é uma constante sem verdades. Não posso seguir meu argumento se não operar inversões de postura diante da produção do conhecimento. Por isso procuro responder à pergunta “o que é vêr?” de modo tradicional, recorrendo, primeiro, a um cientista para depois inverter o lugar da produção do conhecimento da academia (ciência) para a poesia, buscando não criar um maniqueísmo entre ciência e poesia, mas situando-me na encruzilhada entre elas104.

A cultura se constitui no modo de apreensão do real, e o real constitui-se como singularidade (plano de transcendência105). Ora, o modo pelo qual eu apreendo o real depende da percepção que tenho da singularidade (plano de imanência). Depende, sobremaneira, do observador que observa e não do que é observado. Os objetos do mundo não são independentes do observador; “não precisamos de um mundo de objetos para

104 Há aqui um duplo movimento de inversão: 1) Produz-se conhecimento desde a poesia, não considerando a ciência como única referência; 2) Recorre-se a um cientista “alternativo” e a um poeta “clássico”. 105 A singularidade é uma transcendência na medida em que ela nunca repete a si mesma, mas é a mesma em todo lugar. Aqui, o plano de imanência está relacionado à ação (contingência), e o plano de transcendência está relacionado aos conceitos.

fazer explicações científicas”, dirá Maturana (2002, p. 82). Até porque, segundo o autor, os objetos são frutos da linguagem106.

Impõe-se um problema clássico da epistemologia, tantas vezes refletido pela filosofia do conhecimento, a saber: o que é conhecer? Correlata a esta pergunta estão as indagações pelo que é a realidade107?, o que é a percepção? Bem, defino a realidade como singularidade e a cultura como um feixe de singularidades articulado a sentidos. Mas, o problema se mantém: o que é ver? O que é perceber? Isto é, como eu posso ter contato com aquilo que é uma singularidade ou um feixe de singularidades articuladas a sentidos? Maturana vai insistir na interdependência entre o observador e o observado. Por isso, “o fenômeno conotado pela palavra perceber não é a captação de traços de um mundo exterior” (2002, p.80). O cientista é taxativo ao afirmar que “quando um observador sustenta que um organismo exibe percepção, o que esse observador vê é um organismo que constitui um mundo de ações mediante relações senso-motoras congruentes com as perturbações do meio no qual o observador o distingue conservando sua adaptação” (Maturana, 2002, p.80). É analisando o sistema nervoso108 que o biólogo vai reforçar que “o fenômeno a que chamamos percepção consiste na constituição de um mundo de ações” (Idem). Assim, a ação de perceber está correlacionada à ação de ver, e a ação de ver é um mecanismo do sistema nervoso: “ver é uma maneira particular de operar como um sistema neuronal fechado, que é componente de um organismo em um domínio de acoplamento estrutural do organismo” (Maturana, 2002, p. 78). Resta-me, então, entender o que o chileno entende por “acoplamento estrutural”.

Todo sistema determinado por sua estrutura existe em um meio, ou seja, surge em um meio ao ser distinguido ou trazido à mão pela operação de

106 “Os objetos surgem somente na história recursiva de coordenações de conduta de coordenações de condutas ontogênicas que é a linguagem” (Maturana, 2002, p. 101).

107 De acordo com Muniz Sodré (1988a, p. 49): “O real é (...) aquilo que, resistindo a toda caracterização absoluta, se apresenta como estritamente singular, como único”. O real não é nem uma mônada existencial, imutável e estática, nem uma relatividade sígnica absoluta. Ele é uma singularidade. Como tal não se repete a si mesmo, não se torna refém dos significados atribuídos por um indivíduo ou grupo de indivíduos, mas também não se furta da relação concreta do grupo ou indivíduo que o experimenta. A cultura, neste ínterim, passa a ser pensada como jogo da sedução do real. O conceito de cultura, para ele, valerá “como a metáfora de jogos ou de dispositivos de relacionamento com o sentido e o real” (Sodré, 1988a, p. 51).

108 “Um sistema nervoso é um sistema organizado como uma rede fechada de elementos neuronais interagentes (incluindo entre eles receptores e afetores), que em suas interações geram relações de atividade de tal maneira que qualquer mudança na relação de atividade que se produza entre alguns elementos da rede conduz a mudanças nas relações de atividade que se produzem em outros elementos da rede” (Maturana, 2002, p. 88).

distinção do observador. Essa condição de existência é também, necessariamente, uma condição de complementaridade estrutural entre o sistema e o meio no qual as interações do sistema são apenas perturbações. Se a complementaridade estrutural se perde, se ocorrer uma única interação destrutiva, o sistema se desintegra e deixa de existir. Essa complementaridade estrutural necessária entre o sistema determinado por sua estrutura e o meio – que eu qualifico de

acoplamento estrutural – é uma condição de existência para todo

sistema. (Maturana, 2002, p.86).

O acoplamento estrutural seria então uma superfície receptora – que permite ao organismo receber as influências do meio que interage com o sistema nervoso do observador –, e uma superfície de ação – quando a estrutura sistêmica do observador modifica o meio com o qual se relaciona. O acoplamento estrutural então se comporta como uma rede de interações entre a estrutura e o meio. Assim, ver e perceber seriam operações sensoriais do sistema nervoso que se dão graças ao acoplamento estrutural que faz interagir o meio às estruturas, isto é, o observado e o observador. Com efeito,

ver seria operar em um domínio de correlações senso-efetoras no qual as células sensoriais do organismo envolvidas nas interações estruturais ortogonais ao domínio de estados do sistema nervoso seriam, no meio, células fotossensíveis, e no qual as diferentes dimensões perceptivas (tais como forma, matiz ou movimento) seriam maneiras e circunstâncias diferentes de gerar tais correlações senso-efetoras, enquanto o organismo permanece em acoplamento estrutural no domínio de existência das células sensoriais envolvidas.

(...)

percepção conotaria a instância relacional que desencadeia um comportamento adequado como uma relação senso-efetora particular em um organismo operando em um acoplamento estrutural em um hiato sináptico particular. (Maturana, 2002, p. 102).

Maturana está preocupado em demonstrar que ver é a ação de um sistema biológico. Tal sistema interage com o meio denominando os objetos relacionados a ele a partir da linguagem.

O mundo cognitivo que vivemos, através da percepção, se assemelha a isso: produzimos um mundo de distinções através de mudanças de estado que experimentamos enquanto conservamos nosso acoplamento estrutural com os diferentes meios nos quais estamos imersos ao longo de nossas vidas, e, então, usando nossas mudanças de estado como distinções recorrentes em um domínio de coordenações de coordenações de condutas consensuais (linguagem), produzimos um mundo de objetos como coordenações de ações com as quais descrevemos nossas coordenações de ações. Infelizmente, esquecemos que os objetos que surgem dessa maneira são coordenações de ações consensuais, e, ludibriados pela efetividade de nossa experiência em coordenar nossas condutas na linguagem, damos aos objetos uma proeminência externa e os validamos em nossas descrições como se eles tivessem uma existência independente de nós como observadores. Como poderíamos coincidir em nossas coordenações de ações, nos dizem, se não houvesse um mundo externo objetivo? Minha resposta é: coincidimos em nossas coordenações de ações, e todo o nosso viver assim o mostra, na medida em que vivemos juntos o suficiente para coordenar nossas ações em um mundo que surge com nossas coordenações de ações. (Maturana, 2002, p. 103).

Dessa forma, o autor acredita solucionar o problema da relação entre objeto e observador, conhecimento e ciência, natureza e cultura. Ora, tratando a pergunta o que é

ver? a partir de uma abordagem biológica e, desde aí, deslindando argumentos que dialogam com a antropologia, o cientista espera ter dirimido as dúvidas que pairam sobre a relação entre o que é o mundo e como ele é percebido. Utilizando-se do conceito de

acoplamento estrutural, condiciona a existência à percepção da existência – afirmação com a qual concordo -, estipulando que as relações perceptivas são relações senso- efetoras, o que é o caso, inclusive, da linguagem. Assim, linguagem e objeto não se divorciam. No limite, só há mundo porque há uma estrutura sensorial capaz de perceber o mundo. Não se trata de dizer que a linguagem é o demiurgo do mundo. Nem que o mundo existe independentemente do observador. Há uma relação estrutural de interdependência dos fenômenos de percepção e dos fenômenos percebidos, dos receptores e dos afetores. Maturana sustenta que é impossível fazer ciência objetiva se não considerar a subjetividade do observador, visto que é sua percepção que constrói os objetos fora dele. Por isso, no decorrer dessa tese, escrevo em primeira pessoa e parto de minhas experiências na Tempo Livre e na Capoeira Angola. Mas se ele estabelece essa

máxima da pesquisa científica, não consegue adentrar no sentido que é produzido a esses objetos e nos sentidos que se volvem à própria linguagem. Maturana, apesar de não dicotomizar objetivo de subjetivo, observador de observado, não consegue adentrar no reino dos sentidos. Sua descrição científica ainda está no campo da representação. Por minha vez, quero adentrar no campo do encantamento, onde os sentidos são produzidos e mesmo a forma de percepção do mundo é regida por uma semiótica do encantamento. E, se para responder à pergunta o que é ver caminhei, até aqui, com o cientista, agora, efetuando um truque de inversão, seguirei com o poeta, pois do mesmo modo como recorri à magia e ao mito para definir filosofia, recorro à poesia para entender o que é ver, sobretudo quando ver é um ato de sensibilidade que coaduna realidade e fantasia, já que o encantamento é uma “fantasia” que engendra realidades.

Na poesia o dito não é tão importante como na ciência. A poesia ultrapassa o dito pela forma. Ultrapassa a forma pelo sentimento que desperta, que afeta, que mobiliza. A poesia, neste sentido, é uma ação – tal qual a Filosofia do Colibri109. São ações de encantamento do mundo e de si, que transbordam do veículo que as ampara (linguagem) para esparramar-se pelo chão profundo do segredo, do mistério, do pré-existente, transformando a vertigem que decorre deste transbordamento em poesia que sintetiza uma intensidade de experiência.

É o que a poesia de Fernando Pessoa ensina.

Ah, tudo é símbolo e analogia! O vento que passa, a noite que esfria São outra coisa que a noite e o vento – Sombras de vida e de pensamento. Tudo o que vemos é outra coisa. A maré vasta, a maré ansiosa, É o eco de outra maré que está Onde é real o mundo que há. Tudo o que temos é esquecimento. A noite fria, o passar o vento,

São sombras de mãos, cujos gestos são A ilusão madre desta ilusão

(Fragmento VI de O Mistério do Mundo, de Fernando Pessoa, 1983, p. 52).

109 Sobre a Filosofia do Colibri vide p. tal.

Há um mundo real, mas a ilusão impede a visão da realidade. “Tudo é símbolo e analogia”, que, no entanto, comportam-se como “sombras de vida e pensamento”. Tudo é fluídico e nada fica. Nem a “maré vasta” nem a “maré ansiosa”, mas há uma “maré que está onde é real o mundo que há”, da qual a maré que vemos é apenas um “eco”. Como chegar ao mundo que há se “tudo o que temos é esquecimento”? Como tocar o real se o gesto de nossas mãos são apenas “a ilusão madre desta ilusão”. Talvez tenhamos que “ver” de outro modo e, de algum modo, perguntar por “outro modo que ser”110.

Somente com um mestre posso seguir esse caminho. Assim evoco Alberto Caeiro, Mestre entre os heterônimos de Fernando Pessoa, comentado por José Gil – mestre dos tempos de agora.

José Gil (1999) irá justamente indagar: “O que é ver?” e, a partir desta pergunta, desvelará a ontologia da diferença de Alberto Caeiro. Será exatamente a ontologia da diferença que levará o poeta a “ultrapassar todos os obstáculos do pensamento tradicional da separação” (Gil, 1999, p. 16). Daí que o princípio primeiro da filosofia de Caeiro seja: “é preciso simplesmente ver. Ou ainda: basta ver” (Gil, 1999, p. 17). Acontece, no entanto, que ver não é uma atividade natural no ser artificial que o homem se tornou. É preciso, então, desaprender do aprendido para aprender a desaprender. Ver, neste caso, requer certo esforço. Diria mesmo, uma ciência. De acordo com Gil (1999, p.17), Caeiro “é o único ser humano capaz de ver naturalmente, sem esforço”. Há aqui uma valorização do estado da infância e do olhar infantil sobre o mundo. É assim que o mestre vê. Vê ingenuamente as coisas; vê o frescor das coisas, elas mesmas, sem significação. Há também a consideração de que a visão de Caeiro surge após longo processo civilizatório, ou seja, ela é fruto dos tempos, muito embora o Mestre não tenha muito gosto pelas letras e erudição, mas sua poesia resulta desse processo civilizacional de maneira espontânea, sem esforço nem pesquisa. Afinal, para Caeiro basta ver. Esta é a ciência que confere força à sua poesia. Isso é o que faz dela revolucionária e crítica.

A idéia é aquela de ‘ver’ desprovido de qualquer pensamento ou emoção. É ver só com os sentidos. Ver as coisas como elas são. Nada mais. Ver como quem está livre de afecção. Ver simplesmente. Apenas ver, e ver simplesmente é ver as coisas sem significação; é enxergá-las livres da cultura e das civilizações que revestiram as coisas de

significados. Como dizia Caeiro: “As coisas não têm significação, tem existência” (Caeiro apud Gil, 1999, p.23).

Opõe-se aqui existência à significação, natural a artificial, conhecimento à realidade. Caeiro afasta-se das representações. Ele rechaça a ligação dos significados às coisas. O que Caeiro faz é pretensioso. É desconstruir as premissas culturais de nossa civilização, isto é, de nossa cultura. Ver é, dessa forma, um modo de destruição, uma fragmentação dos conjuntos significantes111. A meta aqui é exatamente desagregar os sentidos constituídos. Isso é aprender a desaprender. É preciso desaprender dos sentidos instituídos que embaçam nossa visão sobre as coisas. É preciso limpar o campo da visão para que possamos ver as coisas no seu frescor.

Compreendi que as coisas são reais e todas diferentes umas das outras, Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento;

Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas iguais (Caeiro apud Gil, 1999, p. 24).

Ver é enxergar a singularidade das coisas. As coisas são diferenciadas umas das outras. Umas das outras vivem separadas. Fragmentadas se encontram. “Existir é ser diferente”, sentencia Gil (1999, p. 24), e o que não é diferente simplesmente não existe. A cada sentença simples de Caeiro multiplicam-se problemas complexos. Como é possível ver as coisas em sua singularidade sem significá-las? Não é exatamente a significação que possibilita a diferenciação das coisas? E mais, se há uma singularidade absoluta, o que equivale a uma diferenciação absoluta, como seria possível distinguir as diferenças entre as coisas que são absolutamente distintas umas das outras? E mais ainda: como eu poderia não me relacionar com aquilo que vejo se sou eu aquele que vê? E, neste caso, como abolir a representação, mesmo neste caso tão particular e, aparentemente, insolúvel?

Caeiro não se questiona. Não faz perguntas. Não é essa a maneira de penetrar na ciência do ver. Ele, de novo, longe da complexidade das questões, inaugura mais uma sentença, uma vez mais simples e, de todo modo, sempre genial. “Ser real é haver outras coisas reais, porque não se pode ser real sozinho; e como ser real é ser uma coisa que não é essas outras coisas, é ser diferente delas” (Caeiro apud Gil, 1999, p. 24).

111 Cfe. Gil, 1999, p. 23.

Apesar de genial, a sentença do Mestre não nos deixa em paz. Como, afinal, é possível manter e não manter uma relação com uma coisa? Então, José Gil (1999, p.25), valendo-se da ontologia da diferença de Caeiro, esquematiza:

1. O único “dizível” de um ser (ou de um ente) na sua singularidade, ou na sua diferença, é a sua existência (ou a sua realidade, ou ainda, o seu ser). 2. O que religa os seres (ou os entes) uns aos outros, é uma não-relação: é a

existência.

3. O ser diz-se num só sentido de todos os entes: é. Ser é simplesmente ser. Caeiro inaugura uma univocidade não metafísica, aderente apenas à imanência das coisas. “Basta existir para se ser completo”. “O único sentido íntimo das cousas/ É elas não terem sentido íntimo nenhum”. “As coisas não têm significação: têm existência/ As coisas são o único sentido oculto das cousas” (Caeiro apud Gil, 1999, p. 25) são sentenças que expressam a univocidade da ciência do ver do Mestre Alberto Caeiro.

O Mestre evita a significação porque ela sempre se remete a outras significações, criando um movimento que chamo de trapaça do interpretante, ou seja, o fato de um signo sempre se remeter a outro infinitamente, numa cadeia incessante de significados112. Caeiro livra-se da trapaça do interpretante ao vislumbrar a univocidade das coisas. E a univocidade das coisas escapa da linguagem, pois ao dizer sobre as coisas a linguagem já mediatiza significações. Ao dizer sobre as coisas a linguagem já interpõe uma cadeia de significados entre os signos linguísticos e a coisa. Aí, o mínimo que se tem é um duplo e daí em diante, uma multiplicidade de cognatos da coisa e não a coisa mesma. Por isso que ao invés de dizer, Caeiro escolhe o “ver”.

Divorciar sentido de visão é um recurso para se ter acesso às coisas sem a mediação dos signos. E então, livre das representações – que pretende sempre uma totalidade, seria possível estabelecer um conjunto de coisas que satisfariam à visão, não pela totalidade, mas pela completude da visão. A existência, como vimos, é uma não- relação, e esta não-relação é o que abriga o conjunto das coisas. As coisas existem sempre parcialmente. Cada uma é cada uma. Mas não há aqui uma ruptura. Há aqui, pelo

112 “Surge um novo aspecto da trapaça, a trapaça do sacerdote: a interpretação estende-se ao infinito, e nada jamais encontra para interpretar que já não seja uma interpretação. Assim, o significado não pára de fornecer novamente significante, de recarregá-lo ou produzi-lo. A forma vem sempre do significante. O significado último é então o próprio significante em sua redundância ou seu ‘excedente’. É totalmente inútil pretender ultrapassar a interpretação, e mesmo a comunicação, pela produção de significante, já que é a comunicação da interpretação que serve sempre para reproduzir e para produzir significante”. (Deleuze; Guatarri, 1995, p. 65).

contrário, uma sensação de completude. Ver é sensação de completude! (“Basta existir para se ser completo”, dizia Caeiro).

Os policiais da psique provavelmente denunciariam em Alberto Caeiro uma falta – o desejo como falta, ou uma identificação com o objeto, ou uma fusão do sujeito que vê com a coisa observada. Mas não há em Caeiro nenhuma dessas reduções. Aliás, Caeiro reduz sua filosofia ao ato de ver, e simplesmente ver. Faz parar a cadeia neurótica do desejo, seja como gozo, seja como falta. Quebra ao meio a estrutura da identificação psicanalítica, pois já não há um eu projetado e uma coisa falaciosa. O que há é a coisa. Eu também sou uma coisa.

O amor de Caeiro pelas coisas não significa fusão, e menos ainda projecção ou identificação. Pelo contrário, ele afirma um primeiro princípio de diferenciação no interior mesmo do sujeito; porque sou em mim algo diferente de mim, amo a pedra diferente de mim. Pois sou eu-mesmo sempre no exterior de mim, eu que aspiro à exterioridade absoluta. (Gil, 1999, p. 28). Essa pura exterioridade é o que leva Caeiro a habitar o plano natural, a desvincular-se das teias de significação da cultura e da civilização. A absoluta diferença não é um abismo entre eu e as coisas. É apenas um dado. Tudo que existe é diferente, e nisto reside a ontologia da diferença.

A espantosa realidade das coisas É a minha descoberta de todos os dias. Cada cousa é o que é,

E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra, E quanto isso me basta.

Basta existir para se ser completo.

Tenho escrito bastante poemas.

Hei de escrever muitos mais, naturalmente. Cada poema meu diz isto,

Porque cada cousa que há é uma maneira de dizer isto113.

O todo é uma unidade composto de partes irredutíveis às outras partes. Máximo de diferenciação + Máximo de univocidade = completude. Eis a fórmula que não tem fórmula. Eu arriscaria dizer: não é que a imanência seja a totalidade da experiência da visão. A transcendência (o todo) é só uma forma diferenciada do plano da imanência onde se dá a experiência de ver. Ver é, portanto, concomitantemente, uma apreensão da

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