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2 NAS TRINCHEIRAS DO CAMPO LITERÁRIO

2.4 O escritor brasileiro e o campo literário

2.4.1 Escritura e moral

A crítica literária Leyla Perrone-Moisés discute acerca das categorias acima ─ deixando claro que os conceitos criados pelo filósofo e semiólogo francês, Roland Barthes, não se prestam a definições acabadas, que encerrariam os porquês em torno dela, e não se tratam de uma metodologia aplicada a um referente empírico, circunscrito e localizável, numa obra ou num conjunto de obras ─ em seu estudo basilar Texto, crítica e escritura (1978).

Não obstante, esclarecemos de antemão que nos encontramos cientes da movimentação e dos deslocamentos realizados por Roland Barthes no que concerne à

percepção dessa categoria. Neste ensaio, nós não nos deteremos, pois, a manejar esse conceito tal como fora exposto, em Le plaisir du texte, obra de 1973, pertencente à fase estruturalista do pensador, em vez disso, faremos uso das ideias que se servem mais à premissa de nossas reflexões, ou seja, aquelas que consideram a escritura no seu engajamento consciente. O pensamento de Barthes em torno do qual orbitaremos acha-se em seu trabalho publicado em 1953, Le degré zero de l’écriture.

Barthes define a escritura como uma realidade formal situada entre a língua e o estilo e independente de ambos. A língua é “um corpo de prescrições e de hábitos, comum a todos os escritores de uma época”, um código aquém da literatura. O estilo é uma herança do passado individual do escritor [...] um conjunto de automatismos artísticos que nascem da mitologia pessoal e secreta do autor [...] A escritura é a relação que o escritor mantém com a sociedade, de onde sua obra sai para a qual se destina [...] “A escritura é, pois, essencialmente, a moral da forma.” (BARTHES apud PERRONE-MOISÉS, 1993, p. 36).

Ao classificar a escritura, em sua natureza, como uma moral da forma, Barthes nos aponta uma vereda pela qual começamos a desatar os liames que atam e relacionam as condições do processo criativo. Esses elos, sem os quais se torna impraticável discutir a poética de um escritor, são as conexões que este mantém entre o seu projeto literário e as virtualidades da linguagem na circunstância em que ele se observa implicado. As “morais da linguagem”, que serão objeto de escolha por parte do autor, escapam a ilações deterministas, em que se pressupõem uma rede lógica de causas e de efeitos, no que respeita aos eventos da história do pensamento; muito embora essa Liberdade apresente os limites de uma duração, de um limite temporal, demore o tempo que for, essa escritura esbarrará na tradição e, então, o passado adormecido despertará ainda uma vez, em meio àquele signo novo. Nas palavras de Roland Barthes:

Assim, a escolha e, depois, a responsabilidade de uma escritura designam uma Liberdade, mas tal Liberdade não tem os mesmos limites conforme os diferentes momentos da História. Não é dado ao escritor escolher sua escritura numa espécie de arsenal intemporal de formas literárias. É sob a pressão da História e da Tradição que se estabelecem as escrituras possíveis de um determinado escritor: existe uma História da Escritura; mas essa História é dupla: no exato momento em que a História geral propõe ─ ou impõe ─ uma nova problemática da linguagem literária, a escritura continua ainda cheia de lembranças de seus usos anteriores, porque a linguagem nunca é inocente: as palavras têm uma memória segunda que se prolonga misteriosamente em meio às significações novas. (BARTHES, 1993, p. 125).

Neste instante, uma breve digressão no curso deste ensaio faz-se necessária para que as precipitações não deixem arestas na compreensão de nosso pensamento. No trecho supracitado, é possível atestar como Roland Barthes maneja com certa insistência deliberada o conceito de moral, mas o que é a moral? De que modo ela poderá discutir a escritura?

Nas obras fundamentais para o entendimento do pensamento moral da modernidade, Fundamentos da metafísica dos costumes (1785) e Crítica da razão prática (1788), o filósofo alemão, Immanuel Kant (1724-1804), discrimina desejo e vontade. Ao passo que o primeiro se origina unicamente de nossos instintos ─ não nos sendo facultado sentir ou não determinado apetite ─, o segundo exige a presença da razão, dizendo de outro modo, cabe ao que há de racional em nós meditar acerca de como vamos dispor daquilo que desejamos. Essa característica é inerente ao homem, os outros seres são regidos por suas pulsões, não sabendo agir para além do ditame dos sentimentos.

Por analogia, poderíamos comparar o desejo à língua. Como destacou Barthes, a língua coloca prescrições e normas, não nos sendo concedido operá-la a nosso bel-prazer, posto que ela nos interponha fronteiras bem demarcadas. A escritura, por consequência, estaria no lugar da vontade: “a reflexão do escritor sobre o uso social da forma e a escolha que ele assim assume” (MOISÉS, 1993, p. 38). Ela traz em si uma intencionalidade e, por conseguinte, uma ideologia.

Althusser definiu ideologia como “representação da relação imaginária dos indivíduos com as suas condições reais de existência” (ALTHUSSER apud PERRONE- MOISÉS, 1993, p. 22). Vê-se, pois, que a ideologia exige um engajamento com o mundo que não se reduz a filiações político-partidárias, ela se configura de um modo infinitamente mais hermético do que o senso comum dissemina, ela é um postura, um estar-no-mundo. Osman Lins, em seu livro Guerra sem testemunhas, avança na questão:

[...] situo-me igualmente em oposição radical aos que exigem do escritor, a par de sua tarefa literária, uma ação política. A literatura não é o nosso recreio, produto secundário e de relativa importância, segregado nos intervalos da ação. Quando o escritor atua politicamente, não está passando, como habitualmente se quer ou se propala, da contemplação à ação. Por este motivo diz Francisco Ayala que censurar o intelectual de não exercer ação política é o mesmo que acusá-lo de ser um intelectual. Com a obra literária e com nenhum outro meio, é que realmente age o escritor: sua ação é o seu livro. (LINS, 1974, p. 219).

Quando Dias Soares, em Lima Barreto: entre a ficção e a história, toma para seu ensaio a nomenclatura escritura-denúncia, ele vislumbra a escritura como uma escolha estética e, por conseguinte, moral, de Lima Barreto, que presume as tensões entre indivíduo e sociedade, mas que, todavia, supera-as. A escritura remete aos mitos pessoais do ser ─ crenças, valores, anseios ─ aspectos que não se mesuram, evidentemente, mas que, a despeito disso, são escriptíveis.

No século XVII, a aristocracia francesa inaugura o conceito le culture sinalizando as intenções das elites. À época, a presença de um Estado proselitista que, mediante o financiamento cultural promoveria o aprendizado, apuraria o gosto e acenderia veleidades espirituais, na massa inculta, adquiria forma. As motivações do Estado, na qualidade de mecenas, transformaram-se no decurso dos anos, conquanto a atuação desse forte aparelho ideológico ainda subsistisse. Com a ascensão da burguesia, a intervenção estatal na formação dos indivíduos ─ com o fito de fazê-los títeres dos propósitos que os gerenciadores da vida cultural e econômica resguardavam para eles ─ ficou mais refinada. O poder, então, penetra mais intensamente na linguagem.

Se até o século XIX, o ficcionista brasileiro não possuía “[...] papel social definido, e vicejava como atividade marginal de outras, mais requeridas pela sociedade pouco diferenciada: sacerdote, jurista, administrado.” (MELLO E SOUZA, 2006, p. 87), sem a influência necessária para agir sobre o público e forjá-lo; a partir deste momento, ele se acha em um lugar de conflito: ou se deixa cooptar pelas prerrogativas desfrutadas por quem serve ao poder e se vale da obra de arte de maneira utilitarista e excessivamente abstrata, ou seja, sem vínculos com o entorno, ou assume a responsabilidade de uma aposta solitária e sem remissão, permeada por uma ambivalência que é condição necessária do ofício.

Ambos os escritores que são objetos desta análise elegeram essa “guerra sem testemunhas” e com exígua possibilidade de glória. Lima Barreto e Osman Lins, resguardadas as particularidades de suas concepções literárias, devotaram a existência a fazer uma literatura que não fugia às “asperezas do real”, a famigerada literatura engajada. Ambos eram homens de classe média baixa, pertencentes ao nicho da cultura letrada, funcionários públicos e de auditório pouco proletário e essencialmente burguês. Há que se perguntar, se eles não chegaram, como Sartre, ao leitor a quem gostariam de despertar a consciência, qual é a finalidade desse engajamento? É possível fazer literatura num mundo pragmático, onde ela ordinariamente é operada como um meio, entre outros, para embotar os sentidos? Qual será o lugar do escritor que decidiu por não se omitir e colocar-se em situação diante dos homens de seu tempo?

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