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4 LIMA BARRETO E OSMAN LINS: “O ACASO NÃO TEM

4.1 Sobre escadas e contingências

“A sabedoria artesanal, em certos criadores, parece com frequência ser desenvolvida ou completada por instrumentos secretos. Vemos, por exemplo, em Fogo Morto, a situação estratégica da oficina onde passa os seus dias o mestre José Amaro um receptor e um transmissor de notícias; os outros personagens, das mais variadas condições, vêm ao seu encontro e cruzam ante ele. Exatamente o contrário ocorre com Vitorino Carneiro da Cunha: deambula, sem paradeiro, nas estradas, exercendo entre as demais figuras do romance uma função muito semelhante à do seleiro. Pode-se supor, sem grandes probabilidades de erro, que essa simetria antitética, tão atraente quando a examinamos, fosse voluntária e calculada? Parece, antes, resultado não precisamente do acaso, mas dum senso profundo de composição, depurado ao longo de todos os romances [...]. Uma plenitude que, não desconhecendo propriamente o cálculo, assimila-o, transforma-o em algo sabido e esquecido, mas não perdido.”

Osman Lins, O tempo em Feliz Aniversário, p. 17.

Dentre as inestimáveis contribuições de Osman Lins aos estudos literários36, a passagem que inaugura as discussões deste capítulo constitui decerto um exemplar das

34 Citação de Gonzaga de Sá: “Não compreendi imediatamente a significação dessa fantasia; mas, referindo-a a

este e aquele aspecto de sua vida, entendi bem que ele queria dizer que o Acaso, mais do que outro qualquer Deus, é capaz de perturbar imprevistamente os mais sábios planos que tenhamos traçado e zombar da nossa ciência e da nossa vontade. E o Acaso não tem predileções...” (BARRETO, 1990, p. 26).

35 Referência a uma passagem crucial do conto de Clarice Lispector (1920-1977) “Feliz Aniversário”, que fora

objeto da análise de Osman Lins em ensaio publicado no ano de 1974, pela revista lisbonense Colóquio Letras.

36 Vale ressaltar, uma parcela módica da laboriosa atuação de Osman Lins, em revistas e periódicos, foi editada.

Das atividades como crítico literário, poeta e contista, veiculadas pelo Estado de São Paulo, Jornal do Commercio, A Gazeta, Revista Vogue, Revista Senhor, poderão ser encontradas duas compilações da década de 1970: Do ideal e da glória: Problemas inculturais brasileiros (1977) e Evangelho na taba: outros problemas inculturais brasileiros (1979). Parte do acervo do ficcionista pernambucano acha-se preservada no IEB-USP

tentativas do escritor-crítico de trazer à luz uma interpretação dos labirínticos procedimentos de criação de Clarice Lispector (1920-1977). Aos métodos de estruturação da prosa poética da contista, o ficcionista cognominou de “sabedoria artesanal”, em virtude de seu caráter, por vezes, inconsciente: “A sabedoria artesanal, em certos criadores, parece ser desenvolvida ou completada por instrumentos secretos.” (LINS, 1974, p. 17). Secretos, mas não inscientes. O artesão não opera apenas de modo intuitivo, existe, para Osman Lins, uma “[...] plenitude que, não desconhecendo propriamente o cálculo, assimila-o, transforma-o em algo sabido e esquecido, mas não perdido.” (LINS, 1974, p. 17).

Há, entre alguns críticos e teóricos brasileiros, um mal-estar, proporcionado pela visão do escritor, que, inadvertidamente, cruza a soleira que dá entrada ao território da ensaística. Em Uma poética de romance: matéria de carpintaria (1976), Autran Dourado (1926-2012) antecipa-se contra seus prováveis detratores e justifica a realização de um trabalho em que o criador pretende mirar a própria obra com uma objetividade que, não a corrompendo, pudesse, quem sabe, assistir ao leitor, guarnecendo-o de ferramentas para o entendimento do objeto estético:

Os nossos romancistas aceitaram passivamente a tese que lhes foi imposta, de que deviam ficar quietinhos, sempre calados, teorizar nunca, discutir jamais o seu fazer literário, não analisar ou explicar o que fizeram, por que fizeram, como fizeram; não dar nunca a sua poética. Tal função analítica e propedêutica devia ficar a cargo dos críticos e professores, estilistas e estruturalistas, semanticistas e filólogos, teóricos e cientistas, laboratoristas, toda a fauna preciosa e necessária [...]. Essa atitude absenteísta, que considero prejudicial ao próprio desenvolvimento do romance brasileiro, talvez seja herança ou preconceito realista ou naturalista (“O autor deve estar na sua obra como Deus na criação, presente, mas invisível”, frase de Flaubert repetida com algumas alterações, ou sem nenhuma, por James Joyce). (DOURADO, 2000, p. 19-20).

Aferrar-se a uma interpretação empreendida pelo criador não significaria conferir- lhe uma autoridade quase tirânica? É factível um escritor adotar um ponto de vista objetivo em face da realidade do artefato concebido por ele? No processo de apreensão à compreensão de sua poética, haveria uma mudança de percepção do sujeito criador, quer dizer, ele seria capaz de se despir de sua visão subjetiva?

São indagações que forçosamente nos são postas quando avaliamos uma poética. Inócuo nos pareceria, caro leitor, se nos constrangêssemos à enfadonha tarefa de reconstituir, com alguma fidelidade e um pouco de esforço, os propósitos literários de Osman Lins, a fim de obter, como resultante desse exercício de paráfrase, uma coincidência absoluta entre as

(Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade da Universidade de São Paulo) e na Casa Rui Barbosa, na cidade do Rio de Janeiro.

nebulosas intenções do autor e a obra realizada. Melhor dizendo, “[...] tão canhestro seria estabelecer um nexo de causalidade entre um estado da consciência e um gesto criador quanto pretender que possa advir um pensamento da matéria.” (PICON, 1969, p. 22).

Sem embargo, como bem pondera Tzvetan Todorov (1939-2017), ainda que o estudo das formas e estruturas seja imprescindível, reduzir os estudos literários à crítica estrutural seria o equivalente a excluir “qualquer relação com o contexto sincrônico e, mais do que isso, qualquer relação com os valores humanos universais" (TODOROV, 2015, p. 218). Há mais dilemas, entre as tendências estruturalistas e sociológicas, do que supõe a nossa filosofia37.

Caso o aborrecimento ainda não o tenha apanhado, fazendo-o negligenciar este breve estudo; peço-lhe, pois, que assuma conosco a responsabilidade de ser interlocutor deste escritor avesso a uma visão epidérmica da Literatura; não para ser subjugado por sua retórica envolvente, e sim para observar as contradições internas entre os projetos do autor ─ expostas em ensaios, artigos e entrevistas ─ e a execução de seu fazer literário.

Dois pólos fixos: o objeto feito / o homem que o fez. Nem sempre ocorre que se indague sobre as fases anteriores à sua conclusão ou aparecimento: sendo raríssimo surgirem, no espírito do leitor, a obra e o escritor libertos um do outro, não obstante os limites que os relacionam: a obra e o autor mutáveis em si mesmos, sempre em mudança também as linhas entre ambos. Ora, mutáveis um e outro, ligados por gêneros de relação que se alteram através de todas as fases da obra, continuam a deslocar-se, mesmo após concluída, as linhas entre ambos. A obra e o escritor: um móbile. (LINS, 1974, p. 48).

De incertezas e dúvidas, está permeado o trabalho do crítico; não obstante, é melhor tê-las, no horizonte, a perceber a obra e o homem como monólitos ao aguardo de nossa revelação. Nenhum agente dará conta da multiplicidade e da totalidade dos liames encerrados numa obra ─ sendo ela um móbile, percebemo-la em seu movimento. Ouvir a voz do escritor não o dispensará de lê-lo, claro está. Certezas peremptórias ordinariamente são acompanhadas de crenças absolutas e inarredáveis, que vem a ser convicção, delírio, fanatismo, qualquer outra nominação que lhe aprouver, todavia elas não configurarão uma interpretação.

É proveitoso, para não dizer elementar, que o sujeito psicológico, afeito a projeções subjetivistas, ceda lugar, de tempos em tempos, ao crítico, que contempla o objeto estético por ele mesmo. A despeito dessas declarações, as posições tomadas pelo escritor não

37 Referência a Hamlet, de William Shakespeare, ato I, cena V: “Há mais coisas, Horácio, em céus e terras, do

constituem um método, uma vez que não estamos dispondo de uma fórmula. Afinal, ao que parece, não estamos investigando um profeta, portador de um pensamento moral; mas um homem sujeito a equívocos tremendos e desvios de rota.

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