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Escuta ativa e criativa

No documento Interação cênico-musical: estudo nº. 2 (páginas 90-96)

PARTE I: BASES PARA O PROCESSAMENTO DA INTERAÇÃO

2. A voz de encenadores e pedagogos musicais

2.2. Interações com a Pedagogia Musical

2.2.3. Escuta ativa e criativa

A escuta ativa é um aspecto relevante para a Música não somente em função da acuidade auditiva em si. Seu significado ultrapassa a captação e decodificação sonora, promovendo a compreensão musical em seus aspectos sensoriais, afetivos e cognitivos. Defendida por Jaques-Dalcroze, pela denominação de “audição interior”, constitui um dos pontos capitais de todas as metodologias de ensino musical surgidas a partir do século XX, os chamados métodos ativos. A propriedade da escuta em promover conexões foi apontada pelo compositor francês, Pierre Schaeffer, que estabeleceu quatro modalidades em relação à escuta, sendo estes: ouvir (recepção passiva do som); escutar (atitude ativa e de interesse na identificação da informação sonora); entender (seleção e intenção de escuta, relativas a experiências e preferências do ouvinte); e compreender (percepção que busca atribuir significado à informação imediata) (SANTOS, 2004).

Essa capacidade interativa e de construção de significados está presente nas propostas de Educação Musical contemporâneas, que aqui são representadas pelos compositores e pedagogos musicais John Paynter (Inglaterra, 1931-2010) e Murray Schafer (Canadá, 1933 - ), que foram influenciados pelo pensamento de John Cage e outros representantes da música contemporânea. Suas propostas apresentam alguns pontos em comum entre si, como a proposição didática por meio de projetos, em lugar de um método linear; a valorização da descoberta e dos processos criativos; o emprego do som como matéria prima; a utilização de fontes sonoras convencionais e não convencionais; estética centrada na Música contemporânea e no idioma não-tonal. Na proposta de ambos os pedagogos, a escuta tem um papel preponderante, constituindo- se, conforme Santos (2004, p. 42), “algo que constrói e se constrói na própria música, e vice-versa”.

Em relação às suas especificidades, John Paynter afirma que a Música é uma arte criativa em todas as suas formas, seja em relação à composição (inventar), à execução (interpretar) ou à audição (refazer a música dentro de nós mesmos) (MATEIRO, 2011, p. 262). Esses aspectos fazem parte do seu processo de ensino que, em torno da criação, promove a sistematização do conhecimento. Assim, o desenvolvimento da experiência musical se realiza por meio dos seguintes recursos:

 reprodução (imitação de sons);

 avaliação (gravação e apreciação de sons);  criação (improvisação e composição de peças);  registro (criação da notação gráfica dos sons);

 realimentação (audição e análise de outras peças, geralmente com temas ou materiais semelhantes aos do projeto de criação).

As composições dos alunos são também consideradas como parte do repertório das aulas, sendo executadas, ouvidas e analisadas por todos. O processo de criação parte da escolha e exploração dos materiais (compreender como funcionam e o que podem fazer), passando por seleção e rejeição dos recursos sonoros, até se chegar a uma organização, na qual os sons são transformados em ideias musicais. Nesse processo, são utilizadas diversas possibilidades de fontes sonoras além do instrumento convencional, tais como objetos e aparelhos eletrônicos. Cabe notar, como indica a citação a seguir, que a proposta de Paynter rejeita o experimentalismo por si mesmo e é criteriosa quanto ao desenvolvimento da musicalidade:

Partindo do princípio de que a música se cria e se reproduz a partir de qualquer fenômeno sonoro e de qualquer fonte sonora, (Paynter) considera que todos podem fazer música.[...] Entretanto, esclarece que o trabalho musical criativo não significa resultados não musicais e a experimentação como um fim. É importante que os alunos saibam que estão trabalhando para alcançar um determinado objetivo e dentro de um contexto compreensível (MATEIRO, 2011, pp. 264, 265).

Com processos de ensino semelhantes aos acima mencionados, o trabalho de Murray Schafer se destaca pelas proposições denominadas Paisagem Sonora e Limpeza

de Ouvidos, que apresentam a ampliação do conceito de escuta e uma maior consciência

da relação entre o ser humano e o meio sonoro que o cerca. Para Schafer, os sons do ambiente constituem uma composição musical da qual o homem é o principal compositor – o que se dá por meio da escuta criativa. Tem como objetivo que o contato com o meio sonoro seja utilizado em seu potencial musical e expressivo, promovendo, ao mesmo tempo, a consciência em relação à melhoria de sua qualidade, processo por ele denominado como “ecologia acústica”. Os exercícios envolvem o contato com o ambiente; a sensibilização aos sons e ao silêncio; a organização da escuta; a pesquisa das sonoridades e suas possíveis classificações e modos de estruturação (FONTERRADA, 2008).

No Brasil, Schafer é mais conhecido por suas propostas relacionadas à Educação Musical. No entanto, seu trabalho como compositor envolve, ainda, o que denomina como “Teatro de Confluência”, o qual prevê a participação das linguagens artísticas destituídas de relação hierárquica entre elas, como indicado a seguir:

Eu o chamo de Teatro de Confluência porque confluência sugere um fluir junto, não forçado, mas inevitável – como os tributários de um rio. [...] Assim, no teatro, as artes são subordinadas à palavra, enquanto, na ópera, essa hierarquia é mais ou menos invertida, mas não menos desproporcional. As obras concebidas para esse gênero devem sê-lo em todos os níveis, simultaneamente. [...] A esse respeito, poderia ser melhor designá-lo coópera em vez de ópera (Schafer apud Fonterrada, 2011)69.

Uma faceta desse trabalho ocorre anualmente em uma floresta canadense, desenvolvida por um grupo conhecido como The Wolf Project. De caráter ritualístico, o grupo passa por uma experiência de imersão no projeto durante uma semana, envolvendo a arte com as questões da paisagem sonora e com a “redescoberta do sagrado”. Questões que, para Schafer, se fazem necessárias ao ser humano contemporâneo (FONTERRADA, 2004).

Além da criação musical proveniente do contato com o meio ambiente, Schafer propõe exercícios e improvisações em torno da informação sonora de fontes variadas, como os objetos, os instrumentos musicais e a voz. Em sua obra O ouvido pensante, por exemplo, dedica um capítulo à questão vocal, no qual são demonstradas várias práticas em torno de sua exploração, envolvendo fonemas, ruídos, onomatopeias, texturas, dentre outros. Nesse capítulo, o compositor apresenta, ainda, um quadro de estágios sonoros listados entre o “máximo de significado”, no caso verbal, e o “máximo de som”. O resultado assim se apresenta: 1. Estágio-fala (deliberada, articulada, projetada); 2. Fala familiar (não projetada, em forma de gíria, descuidada); 3. Parlando (fala levemente entoada, algumas vezes utilizadas pelos clérigos); 4. Sprechgesang – fala cantada (a curva de altura, duração e intensidade assume posições relativamente fixas); 5. Canção silábica (uma nota para cada sílaba); 6. Canção melismática (mais que uma nota para cada sílaba); 7. Vocábulos (sons puros: vogais, consoantes, agregados ruidosos, canto com a boca fechada, grito, riso, gemido, sussurro, gemido, assobio etc); 8. Sons vocais manipulados eletronicamente (pode-se alterá-los ou transformá-los completamente) (SCHAFER; 1991, p. 240). A destituição do sentido verbal da palavra é assim comentada por Schafer:

O som de uma palavra é um meio para outro fim, um acidente acústico que pode ser completamente dispensado se a palavra for escrita, pois, nesse caso, a escrita contém a essência da palavra e seu som. A linguagem impressa é informação silenciosa. [...] À medida que o som ganha vida, o sentido definha e morre; é o eterno princípio Yin e Yang. Se você anestesiar uma palavra, repetindo-a muitas e muitas vezes até que seu sentido adormeça, chegará ao objeto sonoro, um pingente musical que vive em si e por si mesmo, completamente independente da personalidade que ele uma vez designou (SCHAFER, 1991, pp. 239, 240).

Assim, a relação desses dois educadores musicais com a disciplina-laboratório se deu a partir da identificação de dois pontos principais de contribuição de suas propostas. A sistematização de processos de criação consistiu em uma primeira referência levantada, especialmente as etapas do processo criativo propostas por Paynter. Essas estratégias foram selecionadas com vistas a auxiliar na estruturação das possibilidades produzidas nos trabalhos, uma vez que um dos pressupostos da disciplina foi o desenvolvimento das práticas via elaboração expressiva e criativa dos alunos. Outro fator considerado, foi o vínculo com a Música contemporânea, complementando aspectos não contemplados pelas pedagogias Dalcroze e Orff, principalmente em relação às possibilidades não-métricas e não-tonais.

Dessa forma, na listagem dos “estágios sonoros” listados por Schafer, e acima mencionados, visualizou-se alguns recursos que perpassaram as propostas dos encenadores estudados. Como por exemplo, Stanislavski, cujos estudos em torno do texto estariam próximos ao “Estágio-fala”, bem como Artaud e Wilson, cujas propostas se relacionam aos recursos dos itens 7 e 8, desta listagem. Assim, os estudos de texto realizados por Stanislavski, por exemplo, nos quais elementos musicais eram aplicados às palavras e às frases, foram ampliados, acrescentando-se a exploração sonora das palavras em sua materialidade (Artaud; Wilson). Isso permitiu o alcance não só da

palavra-vocábulo, mas também da palavra-sonoridade, exercitando as possibilidades

que foram observadas, por exemplo, nas estéticas de Peter Brook – peça teatral em um idioma totalmente criado pelo tratamento sonoro das palavras – e de Robert Wilson – criação de novos significados pela alteração plástica das palavras do texto70.

Verificou-se, também, que os recursos utilizados por Paynter e Schafer em torno da exploração das diversas fontes sonoras, seriam capazes de auxiliar nos procedimentos relacionados à estruturação das sonoridades presentes na cena. Para

Schafer, a linguagem é “som como sentido” e a Música é “som como som” (SCHAFER, 1991, p. 239). Suas proposições têm como finalidade a realização de cunho musical. Porém, algumas de suas práticas foram identificadas com procedimentos empregados por alguns encenadores. Uma delas, empregada tanto por Schafer, quanto por Paynter, consiste na narração de uma história ou situação apenas por meio dos sons e ruídos do contexto. Este mesmo exercício foi encontrado nas descrições dos trabalhos realizados por Peter Brook com os atores da Royal Shakespeare Company.

Outro procedimento identificado, consiste em um trabalho de criação proposto por Schafer, que utiliza sons quase inaudíveis, utilizando, como instrumentos, alguns objetos de proporções mínimas. Essa prática foi relacionada a uma das oficinas realizadas com os atores de Wilson, que desenvolve uma audição também nesse nível de sutileza.

Dessa forma, essas possibilidades foram relacionadas aos princípios relativos às categorias Produção Vocal e Produção Instrumental, em torno dos quesitos: “criação de sentido pela potencialização sonora da palavra e dos recursos vocais” e “produção sonora por meio do corpo, instrumentos musicais, objetos cênicos e meios eletrônicos”71

.

Assim, alguns exercícios de exploração e estruturação sonora foram selecionados a partir das propostas desses pedagogos, bem como por meio de outros procedimentos desenvolvidos por compositores que trabalham na linha da Música contemporânea ou cênica, com os quais a pesquisadora teve contato72. Em diferentes práticas, empregou-se a organização dos sons provenientes dos recursos vocais e corporais, dos objetos e dos instrumentos musicais em funções variadas, a partir das sugestões encontradas nos trabalhos de Meyerhold (instrumentalização sonora) e nas experiências cênico-musicais do Odin Teatret (ação sonora).

Em relação às questões de sonorização da cena, relacionou-se a Paisagem

Sonora, de Schafer, à Paisagem Auditiva, de Stanislavski, como sendo o estudo e a

estruturação das sonoridades aplicadas na encenação. No entanto, a expressão paisagem

sonora também é utilizada por Lehmann (2007) para designar a integração de texto, voz

71 Cf. item 2.1.1 deste capítulo.

72 As práticas relacionadas às proposições de Paynter e Schafer, selecionadas pela pesquisa, são provenientes das oficinas de musicalização (CMI), anteriormente mencionadas, bem como por meio do contato da pesquisadora com as propostas dos compositores Eduardo Álvares (Oficina Expressão Vocal, 1987); Luís Carlos Csëko (Oficina Linguagem Musical, 1987); e Tim Rescala (Oficina Teatro Musical, 1995). No contato com os compositores Eduardo Álvares e Tim Rescala, a experiência de interação cênico-musical procedeu-se, também, por meio de trabalhos artísticos realizados, respectivamente, junto aos grupos Ópera Vitrine (1992-1994) e Cia. Burlantins (1997-2007).

e ruído, abrindo referências intertextuais ou complementares ao material cênico. Diferenciando-a das paisagens “acústicas” de Stanislavski, esse autor cita o exemplo da estética de Wilson, na qual a paisagem sonora, tratada por meios eletrônicos, não “constitui realidade alguma, mas produz um espaço de associações na consciência do espectador” (LEHMANN, 2007, p. 255). Essa concepção, talvez, seja mais próxima do pensamento de Murray Schafer do que as proposições de caráter naturalista do encenador russo. De qualquer forma, o conceito de paisagem sonora diz respeito ao tratamento e à organização criativa dos sons do ambiente, o que pode ser direcionado de acordo com as diferentes estéticas.

Essa capacidade de perceber, interagir e organizar criativamente sons e silêncio de um determinado meio foi associada à relação entre a ritmicidade do ator e a ritmicidade do espetáculo como um todo, mencionada por Barba, como visto na descrição das categorias. Brook também aponta para a existência dessas relações, acrescentando, ainda, as informações provenientes do espectador e as trocas dos atores entre si.

Constatou-se, então, a possibilidade de contribuição das propostas de Paynter e Schafer para os princípios da Escuta Cênica, especialmente na implicação da percepção musical no “processamento perceptivo e interacional das informações expressivas interiores e exteriores”, conforme estabelecido pela pesquisa73

. Isso se daria, contudo, não somente em termos musicais em si, mas auxiliando, também, no desenvolvimento da percepção geral do executante, em sua capacidade de captar informações e estabelecer relações e significados a partir delas. O gerenciamento desses fatores, contudo, envolve o desenvolvimento de um estado perceptivo e ativo, que Pereira (2012) denomina como “tônus atitudinal”, e que significa uma escuta relacionada ao estado de presença do ator74.

Finalizadas essas explanações, o presente capítulo teve como meta demonstrar as fontes e o intercâmbio de informações que viabilizaram a seleção e a elaboração das práticas em um pensamento cênico-musical e compatível com uma situação de formação. A partir dessa elaboração se efetivou a aplicação das práticas na disciplina- laboratório, processo, esse, que será descrito na segunda parte da tese.

73 Cf. item 2.1.1 deste capítulo.

74 Barba e Savarese indicam propriedades que geram uma qualidade diferente de energia, e que promovem um corpo teatralmente “decidido” e “vivo”, que, assim, manifesta o estado de “presença” ou o “bios cênico” do ator (BARBA e SAVARESE, 1995).

No documento Interação cênico-musical: estudo nº. 2 (páginas 90-96)