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PARTE I: ASPECTOS TEÓRICO-CONCEITUAIS

1. ESPAÇO GEOGRÁFICO E COMPLEXIDADE: CONEXÕES NECESSÁRIAS PARA ENTENDER O ESPAÇO PÚBLICO

1.1.1 Esfera pública e acessibilidade: reflexos no espaço público

segundo integra a primeira, reafirmando sua existência, e a primeira determina a acessibilidade desse espaço público.

1.1.1 Esfera pública e acessibilidade: reflexos no espaço público

A relação entre o espaço público arquitetônico e a esfera pública política inicia com os estudos sobre a última, que se remetem à democracia grega da antiguidade. Em estudos famosos e reconhecidos, como os de Arendt (1991) e de Habermas (2003), revela-se o papel da ágora como local

fundamental para a existência da democracia grega, já que nela ocorriam as assembleias (ekklesia) que deram sustentação a esse regime político, cuja principal característica foi a ampliação

da acessibilidade ao poder, já que todo cidadão14 poderia definir

os rumos da polis. A ágora como espaço arquitetônico revelava a abertura e as contradições dessa sociedade (especialmente pelo fato de que as mulheres e os escravos estavam alijados da vida pública, já que não eram considerados cidadãos), potencializando a existência da democracia ateniense.

Souza, M. J. L. (2006) ressalta o papel da ágora, local de ocorrência da ekklesia, como um ponto de transição entre as esferas pública e privada na medida em que além de ser o espaço do debate público, também se promovia dentro dela o comércio, se estabeleciam contratos privados, etc.

Segundo Sennett (2008):

Na ágora, múltiplas atividades transcorriam simultaneamente, enquanto as pessoas se movimentavam, conversando em pequenos grupos sobre diferentes assuntos ao mesmo tempo. Não havia nenhuma voz dominante (SENNETT, 2008, p.52).

A ágora era um espaço de grande imensidão, com

aproximadamente 40 quilômetros quadrados, aberto e

despavimentado, embora pudessem existir algumas edificações (SENNETT, 2008). A ágora (Figura 3), sob esse ponto de vista, é o exemplo de um espaço público mais próximo da realidade contemporânea, pois é o lugar de encontro dos indivíduos privados em público.

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Só os homens atenienses eram considerados cidadãos, ou seja, as mulheres, os estrangeiros (metecos) e os escravos não tinham direitos nessa esfera pública. Mesmo assim trata-se da primeira sociedade ocidental que registra um processo de ampliação da esfera pública de decisão.

Figura 3: A ágora grega no século IV A.C. Fonte: CAMP II (2013)

Segundo Mumford (2004), a função social dos espaços abertos comum nos países latinos, como a piazza, a grand-place, a plaza, o campo, descende da ágora grega, pois nela se

combinavam outras funções urbanas como: o direito, o comércio, o governo, a religião e a sociabilidade. O surgimento da democracia, que provoca a constituição de uma esfera pública compartilhada entre indivíduos privados e estranhos entre si, dará origem ao espaço público, que por sua vez propiciará sustentabilidade a esse modelo político (GOMES, 2002). Inclusive a evolução da democracia ateniense provoca, ao longo da existência da ágora, modificações físicas desse espaço com o objetivo de atender melhor aos anseios de funcionamento do sistema político (SENNETT, 2008).

É possível, portanto, perceber que a vida democrática depende, em parte, da existência do espaço público arquitetônico, não exatamente como matéria, como espaço físico, mas como local de amplo acesso que permite o encontro entre os indivíduos de uma sociedade. Entretanto, as condições de acessibilidade ao espaço público podem variar de uma sociedade para outra, no tempo e no espaço. A variação dessa acessibilidade é resultado da produção da lei. Arendt (1991) afirma que a palavra grega nomos (lei) tem origem no vocábulo nemein que significa distribuir, possuir (o que foi distribuído) e habitar. Dessa forma, a existência da lei tem como objetivo estabelecer o lugar do privado e do público, como se fosse uma linha divisória (ARENDT, 1991). Cabe salientar, no entanto, que a produção da lei nesse modelo político-organizacional é papel da esfera pública. Assim, autores como Gomes (2002) definem o espaço público como o lócus da lei. Por esse motivo que a lei torna-se, para essa pesquisa, um dado fundamental, pois nos ajuda a entender sobre que base foi programado o espaço público estudado e as condições de acessibilidade que ele oferece.

Hoje em dia vivemos diante de uma esfera pública burguesa que teve sua origem com o fim do Antigo Regime na Europa, como resultado da pressão social para ampliação de direitos. Em um primeiro momento, essa esfera pública incorpora a burguesia e depois, após a mobilização das classes operárias, ela passa a acomodar – de modo tímido, diga-se de passagem –

as reivindicações populares. Para Habermas (2003) a esfera pública burguesa se constitui:

(...) inicialmente como a esfera das pessoas privadas reunidas em um público; elas reivindicam esta esfera pública regulamentada pela autoridade; mas diretamente contra a própria autoridade, a fim de discutir com ela as leis gerais da troca na esfera fundamentalmente privada, mas publicamente relevante, as leis do intercâmbio de mercadorias e do trabalho social (HABERMAS, 2003, p.42).

A partir da leitura de Habermas percebe-se que a formação da esfera pública burguesa tem o objetivo de permitir que pessoas privadas discutam com e pelo Estado, a formação das leis que regerão o espaço como um todo, ou seja, tanto a esfera privada quanto a própria esfera pública. É nesse sentido que reforçamos que há um ponto de junção entre a esfera pública (como a cena pública deliberativa) e o espaço público (como a materialidade que permite o encontro entre os diferentes membros da sociedade que comporão essa instância de deliberação). Um exemplo que demonstra essa relação é o fato de que o parque urbano, nosso objeto de estudo mais específico, como materialidade do espaço público moderno só passou a existir, quando houve a incorporação dos antigos jardins privados reais pelo Estado, após as revoluções burguesas que culminaram em mudanças político-institucionais na Europa, entre os séculos XVII e XVIII. As transformações desse período promoveram a ampliação da acessibilidade dos indivíduos à esfera pública. Esse alargamento da esfera pública atinge e realça a acessibilidade dos espaços públicos que começaram a ser construídos durante o período. Porém, através de leis e normas de usos, pode-se dizer que o acesso a esse tipo de espaço é constituído por parâmetros burgueses, ou seja, que estão sujeitos a modos de convívio considerados legítimos por parte de um grupo que tem mais poder nessa esfera pública, que

apesar de mais aberta, é assimétrica. Dito isso, reforçamos que a condição de acessibilidade à esfera e ao espaço público está sempre em disputa, pois sua abertura oscila entre momentos de grande controle e outros de maior permeabilidade, especialmente em países como o Brasil, onde a formação da esfera pública burguesa ocorreu de forma tardia e mais seletiva, já que a grande desigualdade social persiste até os dias de hoje.

Também é importante salientar, que para além das condições de acessibilidade da esfera e do espaço público, houve, desde a origem da esfera pública burguesa, transformações sociais que acarretaram mudanças no modo como a sociedade a encara. Para Habermas (2003), por exemplo, a ampliação da esfera pública gerou um aumento do intervencionismo estatal e tornou menos nítida as diferenças entre Estado e sociedade, despolitizando dessa forma os indivíduos, que passaram a ser meros consumidores de produtos culturais. Arendt (1993) também destaca que a ampliação da esfera pública também teve alguns ônus, pois significou a passagem de uma esfera política para uma esfera do social, onde a ação política começa a ser posta de modo secundário à ação instrumental, ou seja, estabelece-se uma crença de que os problemas da sociedade podem ser resolvidos pela habilidade tecnológica e/ou científica do homem e pelo próprio

desenvolvimento capitalista, sem a necessidade de debate. “O

declínio do homem público” é como Sennett (1988) percebe o retraimento dos indivíduos em relação a esfera pública, que teria como motivações a massificação provocada pela industrialização e a desvalorização das relações sociais que não tenham sido ativadas pela via da intimidade, o que coloca o espaço privado em posição de primazia.

Os caminhos percorridos por esses intelectuais foram bastante variados, fazendo crer que as transformações da esfera pública tendem a ser geradas por múltiplas dimensões da

realidade – social, cultural, econômica, política, etc. Mais do que

isso, a leitura dos três autores permite dizer que existe uma série de metamorfoses que geram um distanciamento da vida pública, em seu sentido político de participação na esfera pública e

também em seu sentido territorial de uso dos espaços públicos arquitetônicos. Todavia, acreditamos que é necessário cotejar essas leituras com problemas que afetam a relação entre espaço e esfera pública, e por consequência, alteram a acessibilidade as duas, conforme as condições sociais brasileiras. Desse modo tornaremos mais compreensível as angústias sobre a programação do espaço público pela iniciativa privada que deram origem a essa pesquisa.

1.1.2 As mudanças dos espaços públicos diante de um