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2 ESFEROLOGIA E TRANSMÍDIA: TEORIAS EM CONVERGÊNCIA

2.1 ESFEROLOGIA

2.1.2 Esferas 2 Globos

Se no percurso analítico de Bolhas, Sloterdijk (2016) aborda a animação no sentido íntimo da esfera humana, em Globos, ele se ocupa com o que está ao redor do homem. Num primeiro estágio da vida este envoltório é a parede uterina, o corpo da mãe, momento em que o objeto de Globos e Bolhas praticamente se confundem. Entretanto, à medida que o indivíduo evolui e desvincula-se da sua situação fetal, a perspectiva de análise diverge ante o caráter da ampliação observada em Globos. Primeiro são as paredes da casa, que se alastram em direção ao que se pode ilustrar com os muros das cidades antigas, cuja imagem atualizada pode ser associada ao que se chama, oportunamente, de globalização. Este percurso dilatatório acontece sempre no sentido do mais íntimo para o mais ampliado, em um movimento de circulação e absorção que comumente se chama poder.

Sloterdijk (2010b, p. 203) pondera que nas culturas ancestrais o hábito de ficar ao redor do fogo foi uma das atitudes que originaram a necessidade da construção de casas o que, portanto, remete ao surgimento da arquitetura. A disposição das pessoas em círculo em volta do calor remete a uma observação lógica e inteligente, pois nesta formação é possível que todos aproveitem igualmente o aquecimento. A construção de uma parede, entretanto, possibilita que mesmo alguém que esteja mais distante possa usufruir do calor por meio do reflexo deste na parede e porque ela serve como um anteparo ao ar que não está aquecido e que venha da direção oposta à chama. A construção de pelo menos três paredes em volta do fogo aumenta essa capacidade de calefação, pois protege a área em trezentos e sessenta graus. Por fim, a colocação de um teto sobre a fonte de aquecimento amplia ainda mais a capacidade de preservação térmica porque evita que o calor se dissipe para cima, mantendo-o próximo do nível em que estão as pessoas. Trata-se de uma questão aparentemente banal, mas que ilustra de maneira evidente como um fator de preservação da vida transforma-se em poder. O domínio do fogo implica em segurança. No frio intenso significa proteção térmica. Na selva representa proteção contra eventuais predadores, amedrontados pela luz e calor. Pode-

se dizer o mesmo das paredes e com esta relação abandonar a ideia de uma cultura primitiva que se construiu até aqui e estendê-la para as cidades. Os muros continuam desempenhando o mesmo papel que foi atribuído às paredes e o fogo continua exercendo sua função de fonte de energia, mas agora para diversificadas atividades. O que muda de forma mais significativa da passagem do clã em volta da fogueira para a cidade é a ampliação do poder de quem detêm o domínio daquilo que o fogo representa, a energia, o poder.

Neste sentido, a narrativa bíblica sobre a arca construída por Noé mostra-se representativa. Mesmo diante da fenomenal inundação de água sobre a Terra, foi um homem o escolhido para salvar todas as espécies vivas, porque ele é quem tem o poder de controlar o fogo. Note-se que a água é o elemento utilizado para extinguir uma combustão, porque é o resultado de uma queima completa, junto com o gás carbônico. Assim, Noé faz as vezes de um Prometeu: ele também roubou o fogo. O preço pago foi o deslocamento de sua terra natal. Precisará viver em um lugar mais alto para fugir do alagamento. Ele levou, em sua embarcação, um casal de todos os seres vivos existentes, porque precisou construir um novo mundo. A arca de Noé funcionou como um “útero mecânico”15 (Sloterdijk, 2010b, p.223) que manteve o mundo de Noé vivo artificialmente, para que pudesse ser transplantado em terras mais elevadas. Assim, a arca foi também um elemento seminal de distensão do globo.

A diferença entre a expansão do mundo por meio do fogo, da propagação feita pela água, ambas representadas nos parágrafos anteriores, é sutil e está vinculada à forma como cada uma delas se relaciona com as fronteiras que estabelece ao avançar. Sloterdijk (2010b, p. 177, grifos do autor) define mundo como “tudo o que talvez esteja contido por uma forma ou por um limite consciente [quando] se fala de um contexto autógeno”16, ou culturas, como entendem Spengler e Tonybee. No primeiro caso, a ampliação ocorre pela absorção do que está contíguo ou no caminho do globo em expansão. Na outra situação, é a grande esfera que se desloca para regiões distantes a fim de exercer seu poder de dilatação sorvendo para si os mundos que consegue subjugar. Assim, fica claro o desenvolvimento da ideia proposta em Sloterdijk (2010b, p. 140) de que toda história nada mais é do que a história das disputas pela ampliação da esfera. Se a viagem de Noé sustenta a proposição de que onde há um casal há uma possibilidade de mundo, o deslocamento efetuado por Magalhães garante não apenas que o mundo é redondo, mas que o poder gira em torno da Terra, deslizando sobre a água ou sobre a terra e movido pela força de quem lucra com o fogo.

15 No original: “utérus mécanique”.

16 No original: “tout ce qui peut être contenu par une forme ou par une limite consciente [...] em parlant d’un

O que os tempos modernos inauguram é a possibilidade de fazer a ampliação das esferas pelo ar e sem deslocamentos. Os meios de comunicação de massa propiciaram esta proeza, que por sua vez, acarreta uma consequência fundamental. O globo já não se expande a partir de uma bolha física centralizada, mas de múltiplas bolhas contíguas, como uma espuma.