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LINHAS DA PRODUÇÃO TEXTUAL DO CAMPECHE COMO PROTORREGIÃO

3 O CASO ZÉ PERRI

3.3 LINHAS DA PRODUÇÃO TEXTUAL DO CAMPECHE COMO PROTORREGIÃO

LITERÁRIA

A instalação de uma escala da empresa francesa de correio aéreo Compagnie Générale Aéropostale na praia do Campeche, nos anos 1920 proporcionou uma pontual integração entre os ilhéus e os funcionários franceses da companhia. Desta relação surgiu a amizade entre o pescador Deca Rafael e um empregado da Aéropostale conhecido na ilha como Zé Perri. Em algum momento este funcionário foi identificado como o escritor Antoine de Saint-Exupéry. A associação do amigo do pescador com o escritor francês e a breve citação da escala de Florianópolis no livro Voo noturno, de Saint-Exupéry, proporcionaram o desenvolvimento de uma literatura do Campeche. Trata-se de um sistema literário relativamente amplo na quantidade de gêneros que produz, pois tem espécimes que vão da reelaboração escrita da narrativa oral até a monografia acadêmica, passando pelo documentário e pela literatura infantil, mas particularizado pela temática da história regional e singular pelo fato de produzir obras bilíngues, ou vinculadas à tradução francês/português, em ou sobre uma localidade que ainda hoje tem caráter rural e cujo mote é a narrativa inusitada sobre a amizade entre um pescador analfabeto e um aviador que ganhou fama como escritor.

A situação insular de Florianópolis reforça o que propõe Stüben (2013, p. 48) quando afirma que: “No caso especial em que a literatura de uma região se forma afastada de centros culturais suprarregionais ou em relativo isolamento de outras regiões, ela seria identificada como literatura regional”. Logo adiante, o autor amplia a definição para

literatura regional: [são] obras cujas referências regionais tenham significância decisiva e que sejam guiadas predominantemente pela exigência de um público em

86 O trecho citado está entre os minutos 03:31 e 03:37).

(ou de) uma região e lá desenvolva seu efeito. Com isso, a ‘literatura regional’ é, por um lado, o conceito geral para uma região relativamente fechada e, por outro, o termo técnico de gênero que descreve obras individuais com relação especial a peculiaridades regionais. Mesmo quando com forte marca de sua referência regional o efeito de textos ligados à região permanece limitado a uma esfera mais estreita, isso ainda não diz nada sobre seu valor artístico. (STÜBEN, 2013, p. 49-50, grifo do autor).

Os textos sobre o controverso Zé Perri respeitam as proposições de Stüben (2013), pois se trata da construção de uma literatura que se formou em relativo isolamento de outras regiões. Primeiro pela limitação geográfica de estar em uma ilha. Mas, também, por ocorrer em uma área isolada dentro dessa ilha. “Existiam fronteiras imaginárias explícitas entre o centro comercial da Ilha de Santa Catarina e as praias. Na primeira metade do século XX, [...] os moradores do Campeche [...] não tinham o que fazer na cidade, pois a identidade era com a praia-bairro” (JUNKS, 1995, p. 74-75, grifos do autor). O isolamento físico do Campeche em relação ao “centro” de Florianópolis só foi amenizado

com a vinda do ônibus e da luz elétrica no final dos anos [19]60 e início de [19]70. As distâncias foram diminuídas. No lugar das quatro [ou] cinco horas de caminhada que separavam o centro do Campeche, no início do século, uma hora de viagem transformava o ônibus num lugar de encontros e convívio social. (DIAS, 1995, p. 53).

Somente em 1994, com o aumento populacional verificado no bairro a partir da metade dos anos 1980, instalou-se um sistema de distribuição de correspondências e objetos. Até então “o

povo primitivo não recebia muitas correspondências” (DIAS, 1995, p. 85, grifos do autor).

É por essa época que a produção textual sobre o Campeche começa a ganhar fôlego com as publicações relativas à passagem dos franceses pela localidade, especialmente em relação à amizade entre Deca e Zé Perri – possivelmente motivada pelo aumento e diversificação populacional do bairro, mas, também, pela proximidade do cinquentenário do desaparecimento do escritor (JUNKS, 1995, p. 93). Embora o tema possa interessar a uma audiência relativamente diversificada, como fãs de Saint-Exupéry, da cultura francesa ou da história da aviação, cativa de forma mais acentuada os catarinenses da capital. Sejam estes nativos ou adotados. Para eles, esta literatura gera o sentimento de manter viva uma história que esvanece, juntamente com a disposição de esclarecê-la ou ampliá-la. Trata-se, entretanto, de uma narrativa cujo registro histórico principal é baseado no relato oral das pessoas que a vivenciaram, mas anotado com uma diferença temporal superior a cinquenta anos e, por isso, sujeito a imprecisões. Tal circunstância desencadeia um ambiente de tensão entre os que pretendem abordar o relato no contexto da historiografia e aqueles que o consideram na perspectiva do que Jenkins (2012) define como uma leitura criativa desta narração.

O centro deste tensionamento é a identidade do Zé Perri porque ela tem potencial para desequilibrar os dois polos do poder identitário do Campeche, referidos por Junks (1995). Um,

fundado na valorização da gente do mar que habitou a vila; o outro, enaltecendo os pioneiros da aviação. Os habitantes de Florianópolis que têm interesse historiográfico no Campeche, representados pelas publicações de Mosimann (2012) e Junks (1995), fazem a leitura crítica das narrativas dos moradores contemporâneos à Aéropostale, procurando analisá-las mediante a confrontação com outras fontes históricas documentais. Já os trabalhos de Inácio (2001) e Corrêa (2011, 2013) dão relevância à narrativa em si mesma, como um texto. Estes dois tipos de produção têm um efeito importante sobre a identidade histórica do período em que a aviação francesa instalou-se no Campeche. Para os adeptos da historiografia, a associação do bairro com Saint-Exupéry gera uma identidade que é alheia à cultura local, diante da impossibilidade de se afirmar que Zé Perri e o escritor são a mesma pessoa. Por outro lado, a repercussão na mídia da referência ao escritor famoso nas obras não historiográficas incute na cultura local, como uma verdade incontestável, a presença de Saint-Exupéry na história do Campeche. Este sentimento é incrustado na consciência dos habitantes do local com tanta força, que mesmo os contemporâneos do campo de pouso sentem-se confusos ante a dificuldade que têm para lembrar de fatos tão antigos (JUNKS, 1995).

Para os objetivos desta dissertação não cabe determinar qual das duas abordagens é a mais adequada, mas evidenciar que o microssistema literário surgido no Campeche causa um efeito sobre a identidade histórica da região, o que ratifica sua categorização como literatura regional. Por outro lado, a forma como ocorrem o desenvolvimento e a publicação das pesquisas sobre esse período da história do Campeche pode ser associada ao que Jenkins et al (2006, p. 3) definem como cultura participativa (ver página 21) e demonstra como esse desdobramento sugere um entrecruzamento entre os conceitos de literatura regional e cultura participativa.

O relato oral do pescador Deca Rafael sobre sua amizade com Zé Perri transformou- se em relato escrito. Primeiro por meio da publicação de uma reportagem da revista Veja, depois por meio da monografia acadêmica de Junks (1995), posteriormente pelas publicações bilíngues Deca e Zé Perri (INÁCIO, 2001), Corrêa (2013) e ainda via Mosimann (2012). Até aqui tem- se apenas obras impressas em papel, embora sejam variados os gêneros textuais: dissertação universitária, relato, reportagem jornalística, história infantil e livro-reportagem. Fica claro que se trata de um protossistema literário que surge com as características inerentes à definição de Stüben (2013) para literatura regional. O documentário De Saint-Exupéry a Zeperri (2011), a exposição homônima e a peça Um príncipe chamado Exupéry garantem que é um sistema multimídia que não surgiu com objetivos de transmidialidade, mas que, com o decorrer dos acontecimentos, assumiu também tais características porque foi criado em uma cultura

participativa. Por isso a argumentação de que O Caso Zé Perri representa um entrecruzamento entre a literatura regional e a cultura participativa.

No capítulo a seguir, será proposto mais um novo elemento para o conjunto de obras sobre a amizade entre Deca e Zé Perri. Trata-se de um programa radiofônico bilíngue, para seguir o modelo utilizado por Inácio (2001) e Corrêa (2013), que vai apresentar um novo ponto de vista sobre a polêmica identidade do funcionário da Aéropostale. O programa radiofônico será a tarefa final de um curso de francês a distância, que será ministrado para estudantes que já dominam a língua no nível B1 do Quadro Europeu Comum de Referências para Línguas.

4 UM AVA COMO OBJETO DE APRENDIZAGEM PARA ENSINO DE