• Nenhum resultado encontrado

ESFERAS SOCIAIS, LÍNGUA(GEM) E PRÁTICAS DE LETRAMENTO

No documento leomarfrancisco (páginas 39-42)

3 LETRAMENTO DO PROFESSOR EM FORMAÇÃO INICIAL

3.1 ESFERAS SOCIAIS, LÍNGUA(GEM) E PRÁTICAS DE LETRAMENTO

Inicialmente, julgo relevante retomar o próprio conceito de letramento, que não teve o merecido destaque no decorrer do panorama apresentado. Diante de um estudo que priorizava a linguagem escrita como habilidade cognitiva de distinção, o antropólogo Brian Street sinaliza para o caráter limitado da concepção língua=domínio. Kleiman (2000) afirma que há uma mudança de perspectiva do “escrever por escrever” ao “escrever para agir no mundo”. Para Street:

[...] a tendência tem sido no rumo de uma consideração mais ampla do letramento como uma prática social e numa perspectiva transcultural. Dentro dessa perspectiva, uma mudança importante foi a rejeição por vários autores da visão dominante do letramento como uma habilidade “neutra”, técnica, e a conceitualização do letramento, ao contrário, como uma prática ideológica, envolvida em relações de poder e incrustada em significados e práticas culturais específicos (STREET, 2014, p.17).

De fato, tomar a escrita como fator de exclusão, numa oposição entre letrados e iletrados, não é um ato coerente, tendo em vista que a escrita não é sinal de superioridade cognitiva e que é difícil - ou impossível - mensurar o desempenho de um indivíduo numa prática social, uma vez que cada contexto é único e carece de uma prática específica. A escrita, tanto em compreensão, quanto em produção, é situada socialmente. Kleiman (2016) salienta que:

[...] o impacto da escrita na sociedade não é o texto, mas o evento de letramento: uma situação comunicativa única realizada em um contexto físico especifico de uma determinada esfera de ação, com participantes singulares engajados em atividades que os motivam, as quais estes realizam

mobilizando práticas de letramento para lidar com o texto escrito e outros artefatos culturais (KLEIMAN, 2016, p.13)

O uso da escrita, portanto, atende a propósitos específicos dos sujeitos, muito embora algumas demandas sejam impostas ou não facultativas. Há necessidades de comprovação de conhecimento que, de alguma forma, sustentam a segregação daqueles que não estão inseridos nas práticas sociais legitimadas como “superiores” - o que vai na esteira do fato de o mundo contemporâneo ser grafocêntrico (SATO, BASTISTA JUNIOR & SATO, 2016). Diante disso, não pressuponho que ser letrado seja condição sine qua non para a criticidade ou para o desenvolvimento cognitivo. Acredito que somos incontáveis vezes apresentados e condicionados a práticas sociais que são típicas de esferas sociais (BAKHTIN, 1997), nas quais a mobilização da língua(gem) acontece de maneira específica, e que passamos a agir nestes eventos e esferas – por socialização, necessidade ou obrigatoriedade.

É inegável que é pela linguagem que a atividade humana acontece. Nas mais variadas instituições, atividades e relações, a linguagem figura como elemento significativo para a negociação e construção de sentidos, em conformidade com Bakhtin (1997). Dessa pluralidade de situações em que a linguagem é essencial, oral ou escrita, surgem esferas sociais diversas, cada uma delas com um conjunto relativamente estável de recursos linguísticos que viabilizam (ROJO, 2020) a prática social, a ação no mundo. Estes recursos estáveis se materializam em gêneros discursivos específicos que atendem a necessidades pontuais.

Por hora, atenho-me à definição bakhtiniana de esfera social, que se relaciona com o fato de haver práticas sociais canônicas em cada contexto, e, posteriormente, aprofundarei a discussão acerca dos gêneros. Cada esfera compreende um grupo de indivíduos em situações específicas de comunicação social (religião, trabalho, escola, bairro, zona urbana...); o entorno da esfera, a maneira como tais indivíduos se organizam hierarquicamente e seus objetivos (impostos ou deliberados) determinam a maneira como a ação, pela linguagem, vai acontecer. “Como vai acontecer” engloba, sem dúvidas, a organização das tomadas de turno nos atos de fala, a modalização de elementos discursivos a depender da relação entre indivíduos em tal esfera, a modalidade da língua exigida (coloquial ou padrão), a própria finalidade da mobilização da linguagem (comprovar conhecimento, no caso de avaliações).

Lançar mão das ideias de Bakhtin, nesse contexto, não pressupõe uma ligação direta entre suas reflexões e os estudos dos letramentos. Trata-se de buscar, na linguística, uma das primeiras afirmações favoráveis ao entendimento da linguagem como parte indissociável da vida em sociedade. Bakhtin torna-se mais relevante ainda, nessa discussão, ao considerarmos

que essa ligação linguagem-sociedade não é pronta/acabada em um modelo: há inúmeras maneiras como a linguagem pode ser mobilizada, atendendo a necessidades e motivações específicas. É aí que se encontra o ponto de junção destas últimas ideias trazidas com os estudos dos letramentos que pretendo aqui: as práticas de letramento, como práticas sociais envolvendo a linguagem, atendem a necessidades específicas de esferas sociais.

O entendimento de que há esferas sociais – contendo situações específicas – que demandam a utilização da língua, então, vai ao encontro, de certa maneira, da ideia de eventos e práticas de letramento específicos para cada contexto social. Os eventos de letramento são, de maneira geral, “ocasiões em que a língua escrita é integrante da natureza das interações dos participantes” (HEATH, 1982, p.319). Cada esfera terá eventos de letramento mais próximos daquilo que nela é considerado convencional. Para Vianna et al., os eventos são:

Encontros interacionais nos quais a escrita está em foco na situação comunicativa, como, por exemplo, a contação de história para a criança à noite, a discussão do conteúdo de um jornal com amigos, a organização deu uma lista de compras, a anotação de mensagens de telefone, enfim, atividades da vida diária que envolvem escrita (VIANNA et all., 2016, p.31) Os eventos de letramento prototipicamente valorizados na formação de professores, como avaliações para atribuição de notas (SILVA, 2012, p.31), podem não ser os mais significativos para a atuação profissional: sendo a formação o espaço de preparação, seria mais significativo que os eventos de letramento fossem condizentes com o que realmente é a prática docente. Uma possível explicação para tal fato está na diferença entra esfera social que envolve a academia, onde acontece a formação docente, e a esfera social que envolve a escola, onde acontece a atuação profissional.

O posicionamento apresentado nesta seção, de certa forma, supervaloriza os eventos de letramento ou as demandas das esferas sociais como ocasiões de uso da escrita em que o sujeito pode ser levado, por necessidade, a atender a situações específicas; entretanto, a proposta deste capítulo, para uma contribuição na pesquisa, é justamente pensar possibilidades de convergência entre as demandas da esfera acadêmica e da profissional, a partir do fato de que elas são distintas, indissociáveis e importantes. A prática social envolvendo a escrita, na formação de professores, precisa ser significativa para objetivos diversos - socialização acadêmica, docência e/ou pesquisa futura – quando possível.

A partir do conceito de eventos de letramento, Street (1984) cunha o que chama de práticas de letramento. Para ele:

As práticas de letramento incorporam não só “eventos de letramento”, como ocasiões empíricas às quais o letramento é essencial, mas também modelos populares desses eventos e as preconcepções ideológicas que o sustentam [...] Uma das principais questões levantadas nessas discussões tem a ver com os modos como podemos mover o estudo do letramento para longe de generalizações idealizadas sobre a natureza da Linguagem e do Letramento e na direção de entendimentos mais concretos das práticas letradas em contextos “reais”. A abordagem das práticas letradas, neste volume, portanto, representa uma visão de “língua real” - isto é, a leitura e a escrita são inseridas aqui em práticas sociais e linguísticas reais que lhes conferem significado, em vez de, como já se tornou convencional na sociolinguística, ilustradas por meio de exemplos hipotéticos ou, como em boa parte do discurso educacional, representados como termos idealizados e prescritivos (STREET, 2014, p. 19)

Entender as práticas de letramento como ocasiões particulares de uso da linguagem situadas socio-histórico-culturalmente implica uma mudança de perspectiva sobre a formação de professores, tal qual conhecemos: romper com a separação de teorias e práticas que são distanciadas cada vez mais por conta de inúmeras tensões (SCHLATTER, 2013; GARCEZ, 2013). Se entendermos a formação de professores em alinhamento com Street, as práticas de letramento da graduação serão transpassadas por crenças, valores e culturas do contexto acadêmico. Aí está uma provável dissonância: as práticas de letramento valorizadas culturalmente ou legitimadas no meio acadêmico, ainda em conformidade com Schlatter (2013), podem não ser significativas para o propósito futuro de atuação docente. Há, em alguma instância, um distanciamento equivocado entre as práticas supervalorizadas na formação inicial e as práticas significativas para a atuação do professor.

No documento leomarfrancisco (páginas 39-42)