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Espíritos reconciliados Família Jerónimo

Este caso ilustra aquilo que a maior parte dos habitantes de Massinga consideram ser a razão do marido espiritual e da violência que as faltas e dívidas para com os espíritos representam. A família Jerónimo era composta por um conjunto de quatro filhos que viviam juntamente com os pais na Localidade de Lionzuane no interior do Distrito de Massinga. Um dos irmãos Jerónimo, Januário, por sinal o mais velho, teria emigrado e fixado residência no povoado do Régulo Queme. Aqui, já nos anos 1950, Januário conseguiu erguer uma casa de alvenaria com o dinheiro que ganhou enquanto trabalhador

116 das minas da África do Sul. Com isto, Januário convidou também os seus três irmãos (António, João e Alfredo) a mudarem-se da terra dos pais para junto dele no povoado de Queme. Januário conseguiu também contratos de trabalho para os seus irmãos nas minas da África do Sul. António, João e Alfredo construíram também casas de alvenaria nos terrenos cedidos pelo irmão mais velho. O mais novo de todos (Alfredo) para além de construir a sua casa, adquiriu também um trator e uma viatura na África do Sul. Portanto, no contexto do povoado e da crise social e económica dos finais dos anos setenta e princípios da década de oitenta do século passado, os irmãos Jerónimo representavam um caso de sucesso e prosperidade inigualáveis no povoado, bem como em algumas localidades do Distrito.

No entanto, a partir dos anos noventa a família Jerónimo sofreu um revés inesperado com a morte do senhor Januário, em Abril de 1992, seguido do seu irmão mais novo, Alfredo em Agosto do mesmo ano. Paralelamente à morte destes dois seguiram-se perdas de vida por parte dos filhos de Januário, Alfredo e João. Ao mesmo tempo, dois filhos de António foram acometidos por uma loucura espontânea sendo hoje indivíduos paranoicos e a vaguear na vila sede de Massinga. O filho mais velho de Januário, que, entretanto, se tornara empresário da área dos transportes, viu as suas viaturas envolvidas em acidentes aparentemente sem explicação, acabando por fechar a sua companhia de transportes. As esposas do António e do João queixavam-se das suas filhas, que apesar de serem formadas e com emprego não tinham sorte relativamente a sua vida conjugal, sendo sistematicamente espancadas pelos esposos e completamente infelizes. Ao mesmo tempo, António e João decidiram não voltar a Moçambique radicando-se na África do Sul onde trabalhavam nas minas.

Perante este cenário, os filhos dos irmãos Jerónimo ainda vivos decidiram consultar um médico tradicional para saberem das causas das constantes mortes e da súbita regressão nas suas condições de vida. Depois de várias consultas em diferentes médicos tradicionais, a família Jerónimo foi informada de que as causas das constantes mortes e penúria se deviam ao não cumprimento do pagamento por parte do Januário e do Alfredo ao médico tradicional Kotchane, régulo do povoado, onde estes teriam adquirido a magia negra (kukendla) para o aparente sucesso dos Jerónimo. O espírito de Kotchane estaria zangado com a falta de cumprimento por parte dos irmãos Jerónimo e como retaliação estaria a provocar mortes, sofrimento e infelicidades. Além disso, o facto de um dos filhos de Alfredo não conseguir engravidar a sua esposa seria também, de certa forma um sinal

117 do espírito a fazer-lhe ver a necessidade de honrar os compromissos deixados pelo seu pai.

Na sequência disto, o diagnóstico referia que o espírito de Kotchane exigia matrimónio com as filhas dos irmãos Jerónimo como forma de apaziguar a sua fúria. Entretanto, porque o regime da FRELIMO proibia o pagamento de feitiços ou dívidas através de raparigas, o mesmo deveria ser feito através de cabeças de gado bovino, bebidas e dinheiro. A família Jerónimo acolheu o investigador durante os seis meses da sua pesquisa de terreno em Massinga, pelo que podemos obter dados in loco da degradação das casas de alvenaria dos irmãos Jerónimo e das narrativas a elas associadas. Todas elas encontravam-se literalmente abandonadas, excetuando a casa do Alfredo, cujo filho mais velho pagou a maior parte das despesas para o ritual de apaziguamento e compensação ao espírito de Kotchane. Hoje, o mesmo, vive em Maputo e apresenta-se relutante em visitar a sua mãe e irmãos. Até à saída do investigador de Massinga a situação entre os Jerónimos não tinha sofrido grandes alterações, apesar de terem realizado o ritual para compensar o espírito do mestre Kotchane.

No povoado de Queme, todas as pessoas com quem se estabeleceu diálogo sobre o assunto demonstraram conhecer a história e o dilema da família Jerónimo, e simultaneamente, estranhavam o facto de o investigador estar hospedada numa família que para eles era problemática e perigosa, pois os pais tinham feito magia negra para enriquecer. Três meses depois do regresso do investigador a Maputo, obteve-se a informação de que um dos filhos mais novos do Alfredo se tinha divorciado, acusando a mulher de ser infértil. De acordo com o guia de campo, Orlandwana, o filho de Alfredo expulsou sem razão a esposa porque, segundo ele, esta gerava filhos, pois antes de se juntar com ele tivera um filho de um relacionamento com outro homem. A maioria das pessoas acreditava que a família Jerónimo atingira o sucesso: casas de alvenaria e meios de transporte num contexto onde a maioria das residências são construídas com base em material local – caniço, estacas, cobertura com folhas de palmeiras - e com graves carências de meios de circulação, recorrendo aos poderes dos espíritos possessores do mestre Kotchane.