4.3 Espaço de Hilbert da LQG
4.3.1 Espaço de Hilbert cinemático
O espaço de Hilbert cinemático associado a um grafo Γ é definido como o com- pletamento de Cauchy, HΓ
kin = CylΓ, do espaço CylΓ munido do produto escalar (4.14)5.
O espaço de Hilbert cinemático Hkin é definido como a soma direita Hkin =
M
Γ HΓ
kin (4.15)
de todos os espaços de Hilbert individuais associados a cada um dos grafos finitos Γ. Por definição o “vetor nulo” Ψ∅ = 1, correspondendo ao grafo sem nenhum link Γ = ∅ (“ausência de geometria”), é incluído no Hkin. Repare que este espaço não é separável pois o conjunto de todos os grafos possíveis é não numerável.
A construção de Hkinsó faz sentido se for possível estender a definição do produto escalar à funções cilíndricas do Cyl. Vamos ver que isto é possível desde que a medida de Haar seja finita. Sejam então os grafos Γ e Γ0 e as funções cilíndricas associadas ΨΓ,f e ΨΓ0,f0, explicitando escrevemos
ΨΓ,f = f(U1, . . . , UN), (N o número de links de Γ) (4.16) ΨΓ0,f0 = f0(U1, . . . , UN0), (N0 o número de links de Γ0). (4.17) 5Em poucas palavras o completamento de Cauchy consiste em ampliar o espaço linear original de modo que se incluem o limite de todas as sequências de Cauchy (fechamento na norma [72]).
Caso um dos grafos esteja contido no outro, por exemplo Γ Γ0, então o produto escalar é dado pela (4.14), porque uma função que é cilíndrica a respeito do grafo menor Γ0 é também cilíndrica a respeito do grafo maior Γ6. A situação mais geral é o caso em que Γ e Γ0 não estão relacionados de forma alguma. O fato que o espaço Cyl contempla todos os grafos possíveis, faz com que sempre exista um grafo Υ (com
N00 links) que contém Γ e Γ0. Então, como no caso prévio, ΨΓ,f e ΨΓ0,f0 são funções
cilíndricas respeito de Υ (as quais denotamos por F e F0 respetivamente), portanto o produto é dado por
hΨΓ,f|ΨΓ0,f0i ≡ hΨΥ,F|ΨΥ,F0i,
Na verdade existe uma infinidade de grafos Υ que contém Γ e Γ0. A pergunta importante é se o produto interno é independente da escolha particular de Υ. A resposta é afirmativa graças ao fato que num grupo compacto a medida de Haar pode ser normalizada. Certamente, as funções cilíndricas a respeito de Υ se escrevem
ΨΥ,F = F (U1, . . . , UL00) = f(U1, . . . , UL) = ΨΓ,f,
ΨΥ,F0 = F0(U1, . . . , UL00) = f0(U1, . . . , UL0) = ΨΓ0,f0.
O produto escalar no espaço CylΥ então é
hΨΥ,F|ΨΥ,F0i= ˆ SU(2)×L00 dµΥF(U1, . . . , UL00)F0(U1, . . . , UL00), = ˆ SU(2)×L00 dµΓ∪Γ0dµRf(U1, . . . , UL)f0(U1, . . . , UL0),
onde dµΓ∪Γ0 é a medida de Haar no grafo que resulta da união de Γ e Γ0, dµR é a
medida de Haar formada a partir dos R links de Υ que não pertencem a Γ nem Γ0. Temos então hΨΥ,F|ΨΥ,F0i= ˆ SU(2)×M dµΓ∪Γ0f(U1, . . . , UL)f0(U1, . . . , UL0) ˆ G×R dµR = ˆ SU(2)×M dµΓ∪Γ0f(U1, . . . , UL)f0(U1, . . . , UL0),
onde M é o número de links do grafo Γ ∪ Γ0. O último passo é uma consequência da medida de Haar ser normalizada. Portanto o resultado não depende da escolha particular de Υ.
Decomposição ortonormal (Teorema de Peter–Weyl). O teorema de Peter–
Weyl é uma generalização das séries de Fourier no círculo, i.e. funções f(g) onde
g ∈U(1), ao caso de grupos compactos não abelianos. O leitor pode consultar [73]
para uma apresentação formal.
6
Toda função no grupo f(g), com g ∈ SU(2), admite uma decomposição ortogonal do tipo f(g) =X j X m,n fjmnRjmn(g), (4.18) fjmn = (2j + 1) ˆ SU(2) dµRjmn(g)f(g) ≡ hRjmn(g)|f(g)i, (4.19) onde Rj
mn ≡ (Rjnm)∗, com “∗” sendo a conjugação complexa. A matriz Rj é a representação unitária irredutível de spin j do elemento de grupo g. Seus elementos de matriz satisfazem as relações de ortonormalidade
(2j + 1) ˆ SU(2) dµ(g)Rjmn(g)Rj 0 m0n0(g) = δjj 0 δmm0δnn0. (4.20)
No que segue, e por simplicidade, absorvemos o fator (2j + 1) na definição de Rj mn . Na notação dos ket’s (fazendo g ≡ U, as holonomias), escrevemos Rjmn(U) como |j, m, ni, onde Rj
mn(U) = hU|j, m, ni.
A generalização no caso de uma função f(U1, . . . , UN) que depende de N elementos do grupo é direta, f(U1, . . . , UN) = X j1,...,jN X m1,...,mN X n1,...,nN fm1···mNn1···nN j1···jN R j1 m1n1(U1) · · · R jN mNnN(UN), = X j1,...,jN X m1,...,mN X n1,...,nN fm1···mNn1···nN j1···jN N Y i=1 Rji mini(Ui),
onde os coeficientes da expansão são obtidos simplesmente projetando a função ao longo de cada componente QN
i=1Rjmiini(Ui), de modo que os coeficientes da expansão
são f~jm~~n = ˆ SU(2)×N dµΓ N Y i=1 Rji mini(Ui)f(U1, . . . , UN), (4.21) = hYN i=1 Rji mini(Ui)|f(U1, . . . , UN)i. (4.22)
Assim, os produtos de componentes das representações irreduzíveis QN
i=1Rmjiini(Ui),
associados com os links ei ∈ Γ , para todos os valores de spin j, e todos os valores de m e n tais que −j 6 m, n 6 j, e finalmente para todos os grafos Γ possíveis, formam uma base ortonormal de Hkin. Na notação de Dirac os vetores de base se escrevem
|Γ,~j, ~m, ~ni ≡ |Γ, j1, . . . , jN, m1, . . . , mN, n1, . . . , nNi, (4.23) onde hU|Γ,~j, ~m, ~ni = QN
i=1Rmjiini(Ui). Note que j = 0 não é permitido na soma,
seriam equivalentes aos grafos com esse link removido, mas estes grafos já foram considerados quando somamos sobre todos os grafos, portanto estaríamos contando o mesmo grafo várias vezes. O único objeto que carrega spin j = 0 é o vetor nulo, |∅i, correspondendo a função de onda Ψ∅ = 1.
A base satisfaz as relações de ortogonalidade
hΓ,~j, ~m, ~n|Γ0,~j0, ~m0, ~n0i= δΓΓ0δ~j~j0δm ~~m0δ~n~n0. (4.24)
O resultado destacável, como consequência de aplicar o teorema de Peter–Weyl, é que a base do espaço de Hilbert HΓ
kin, que depende de j, m e n, é numerável e portanto separável. Assim, as funções cilíndricas a respeito de Γ dependem de um número finito de graus de liberdade. Observe que se um dos links é zero, acontece que Rj=0 = 1, e portanto na (4.20) temos
ˆ SU(2) dµ(g)Rjmn(g)R0m0n0(g) = ˆ SU(2) dµ(g)Rjmn(g) = δj0δmm0δnn0 = 0. (4.25)
Então a integral individual das matrizes Rj
é identicamente nula. Em outras palavras, todos os vetores são ortogonais ao vetor nulo. Daqui se deduz que o produto escalar entre duas funções cilíndricas é zero se os grafos Γ e Γ0 são dife- rentes, desde que o produto interno neste caso necessariamente tem termos do tipo (4.25). Se Γ = Γ0, o produto escalar pode ser diferente de zero, dependendo dos spins ~j e os elementos de matriz ~m, ~n.
Repare que o resultado da ortogonalidade é verdade mesmo se Γ0 = Γ + δΓ é o grafo obtido a partir de uma deformação “infinitesimal” de Γ. Isto quer dizer que o “movimento” dos grafos no espaço se torna numa sequência de estados mutuamente ortogonais, e implica uma quebra da noção de continuidade no espaço, mesmo que o espaço Σ “portador” dos grafos seja uma variedade contínua. Neste resultado esta contida a natureza descontínua do espaço na LQG (veja a discussão no [69]). Por outro lado, repare a noção de dois grafos coincidirem ou não é puramente topológica, portanto perfeitamente compatível com a independência de fundo e difeomorfismos. Finalmente, a decomposição ortogonal do espaço de Hilbert cinemático se escreve
Hkin = M Γ HΓ kin = M Γ M ~j HΓ,~j.
Hkin carrega uma representação natural de SU(2) e o grupo de difeomorfismos Diff de Σ.