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ESPAÇO DE OBSERVAÇÃO DO SUJEITO E DO SOFRIMENTO

No documento renatamarquesdeoliveiradelage (páginas 85-90)

Este capítulo procurou formas de trazer à luz algumas das inúmeras discussões sobre o sofrimento, com ênfase nas possíveis pistas que nos indicariam como se dá a constituição do sujeito da contemporaneidade. Reforçamos que o entendimento de que a percepção da dor é construída histórica e socialmente é mais que relevante, é essencial à análise proposta por esta pesquisa.

Nossa hipótese – ainda ancorada em observações elementares e que devem ser a fundo investigadas – é de que a Clarice Lispector representou, com suas crônicas publicadas no Jornal do Brasil (entre os anos de 1967 e 1973), uma resistência a esse novo sujeito que surgia e é discutido por relevantes teóricos da atualidade, a exemplo dos quais trouxemos à discussão até aqui.

Acreditamos que a Análise do Discurso (Pêcheux-Orlandi), ao não apenas apontar o que a linguagem quer dizer, mas pensar em “como” ela funciona, nos dará instrumentos para refletir sobre que sentidos de “dor” e “sofrimento” são mobilizados no discurso da autora. E, sobretudo, o que estes podem dizer sobre o sujeito da contemporaneidade.

Para Michel Pêcheux (1988), discurso é efeito de sentido entre interlocutores. O analista buscará, então, situar o gesto da interpretação do sujeito na produção do dizer, expondo seus efeitos de sentido (Orlandi, 2004).

Courtine (2013) chama atenção do analista para o desconhecido, da necessidade de “manter-se sensível à irrupção de objetos discursivos inéditos” (COURTINE, 2013, p. 11). O pesquisador assevera ainda que o discurso é “objeto linguístico que não é linguístico”. No discurso, o que se analisa não é o sistema de sua língua, nem suas regras de construção – embora estes também sejam importantes. Nas formações discursivas (FD), o que importa é a reconstrução histórica, pois a partir dela se descobrem enunciados. Courtine (2013) bem define que as palavras de um texto, quando atravessadas de história, deixam de ser simples unidades linguísticas.

Vale deter-nos, por um instante, no conceito de memória discursiva. A noção foi forjada por Courtine (2009) em sua tese sob orientação de Pêcheux e publicada em um número da “Langages”, em 1981, tornando-se um clássico. A partir de reflexões e análises, Courtine (2009), sempre atento às contradições constitutivas dos discursos, evidenciou que as vozes do discurso cristão surgem, nos enunciados comunistas, como fala e silêncio, como memória e esquecimento.

Indo às palavras do próprio Courtine (2009), podemos encontrar a seguinte definição:

Introduzimos, assim, a noção de memória discursiva na problemática da análise do discurso político. Essa noção nos parece subjacente à análise da FD (Formação Discursiva) que realiza A arqueologia do saber: toda formulação possui em seu “domínio associado” outras formulações, que ela repete, refuta, transforma, denega..., isto é, em relação às quais ela produz efeitos de memória específicos; mas toda formulação mantém – igualmente, com formulações com as quais ela coexiste (seu “campo de concomitância” diria Foucault) ou que lhe sucedem (seu “campo de antecipação”) – relações narrativas cuja análise inscreve necessariamente a questão da duração e da pluralidade dos tempos históricos no âmago dos problemas que coloca a utilização do conceito de FD. [...]. A introdução da noção de “memória discursiva” em AD nos parece assim ter por desafio a articulação desta disciplina com as formas contemporâneas da pesquisa histórica, as quais insistem no valor a ser atribuído ao longo do tempo (COURTINE, 2009, p. 104-105).

Efetivamente, trata-se, como reflete Marie-Anne Paveau, “de pensar o ‘real da língua’ em relação ao ‘real da história’ e de considerar, portanto, ‘a existência histórica do enunciado’” (PAVEAU, 2013, p. 142). É a memória do dizer.

Pensaremos, dessa forma, a memória do discurso clariceano como a que propôs Courtine (2009). Todo dizer possui uma existência histórica. Nenhum indivíduo seria, com

isso, a origem de seu dizer, embora possa ele nisso acreditar. Os discursos já estão cercados de inúmeras quantas possam ser suas condições históricas, sociais, políticas, culturais de formulação. E tal bagagem é carregada de ideologia.

Lidarmos com “a disciplina do entremeio” nos deu a liberdade, bem como a necessidade, de irmos à busca dos sentidos do sofrimento em campos diversos. Sentidos que não podem ser ignorados quando nos propomos a pesquisar os modos de subjetivação do sujeito na contemporaneidade. Devemos lidar, ainda, com o entendimento de que o que se analisa vai além do dizer, uma vez que o sujeito de fato vivencia suas ideologias. Identifica-se com discursos para fazer deles ação. Torná-los, em maior ou menor medida, seus princípios de vida, compartilhando-os socialmente.

Daí podemos justificar o porquê de nossa escolha, entre tantas possíveis e não menos legítimas, por tal lugar de observação do sujeito e do sofrimento. As crônicas de Clarice no Jornal do Brasil permitem que observemos, por um lado, os discursos que envolvem a comunicação, o jornalismo como um importante meio de circulação dos sentidos da sociedade em um período que julgamos chave nas transformações da subjetivação do sujeito contemporâneo, bem como, por outro, o discurso literário, que abre a possibilidade da análise de indícios de uma memória discursiva repleta de vazios, elipses, negações e interrogações.

O discurso literário, vale dizer, apresenta maior grau de reversibilidade – dá mais voz ao outro – que o discurso da notícia, cujo efeito de evidência, como propõe Wedencley Alves (2001), é fortemente ressaltado, tornando-o autoritário. Na crônica, a abertura à discordância, em função de seu discurso assumir tons mais próximos de uma conversa, quer seja confessional ou crítico ou outro, é mais pronunciada, fazendo com que o sujeito se desvele em maneiras outras que as institucionalmente autorizadas.

O sofrimento e a dor são evidentes no discurso clariceano, afirmando a própria autora, em diversas oportunidades, serem eles responsáveis por que ela escreva. Escrever suas dores era sua maneira de existir. Estaria ela optando por uma das sublimações que Freud (1997) descreveu? Saída para amenizar por meio da arte ou de outras satisfações substitutivas as dores com as quais o indivíduo é fadado a conviver? Talvez as teorias que se dedicam a suas singularidades enquanto escritora possam dar conta de tais questionamentos.

Já para nós, outras questões discursivas se abrem. Quais formações discursivas e ideológicas, em outras palavras, que relações de sentido e poder emergem nas lutas pelo estatuto do sujeito do bem e do mal-estar? As transformações nos modos de subjetivação de sua época teriam relação com os modos de sofrimento e mal-estar vocalizados por Clarice? O

discurso clariceano apresenta traços de resistência ao sujeito que se formava? Que lugar o “outro” ocupa em seu discurso? Como isso se relaciona ao sujeito contemporâneo? É dessas questões que trataremos em nossa análise.

5 ANÁLISE

A língua é capaz de falha. Os sujeitos, constituídos em sua relação com a língua e a história, logo, no discurso, ocupam lugares de funcionamento ideológico. Nessa relação língua/sujeito/história, os sentidos, por vezes, se acomodam e os sujeitos se identificam às regularidades das formações discursivas ideologicamente hegemônicas. Contudo, esses sentidos, em outros momentos, também podem extrapolar a ordem do discurso da língua, pelo atravessamento da história e pela desidentificação dos sujeitos com as ideologias e sentidos vigentes.

A linguagem em sua realização, como textualidade, não é precisa, clara, inteira em si mesma, mas somente segundo a interlocução. Tal possibilidade da falha da língua, conforme Orlandi (1999; 2005), é constitutiva da ordem simbólica. Por outro lado, o equívoco já é fato do discurso, pois é a inscrição da língua - capaz de falha - na história que produz o equívoco. Ele é a falha da língua na história (p. 21) e se dá no funcionamento da ideologia e/ou do insconsciente.

Discorremos, ao longo deste trabalho, que, para a Análise do Discurso, a língua constitui-se pela não-transparência dos sentidos. Tal opacidade deriva do entendimento de que a relação palavra/coisa não é direta, mas mediada pelo simbólico e pelo imaginário social. O real não pode ser alcançado sem ser significado, ideologizado.

É aí que se realiza o trabalho do analista, na tentativa de compreensão de como os objetos simbólicos produzem sentidos, desnaturalizando os sentidos em sua relação com o interdiscurso(o espaço discursivo do já-dito). Essa relação possibilita que pensemos a incompletude do sujeito e suas diversas configurações.

Neste capítulo, nosso trabalho analítico será o da desestabilização dos sentidos. Perguntamos: que sentidos de dor e sofrimento são mobilizados por Clarice Lispector em suas crônicas, publicadas pelo Jornal do Brasil, entre 1967 e 1973? Sua coluna representaria um espaço de resistência em relação aos sentidos que vinham se firmando para o sujeito que discutimos na contemporaneidade?

Iniciaremos este capítulo com um breve estudo lexicográfico, sob o viés discursivo, dos sentidos de “dor” e “sofrimento”. Buscamos em dicionários da língua portuguesa como tais sentidos se comportaram ao longo dos anos. Suas regularidades e irregularidades servirão de base à análise das crônicas de Clarice Lispector, à qual nos dedicaremos em seguida.

Trataremos de particularizar a metáfora discursiva, o deslizamento dos sentidos, em tal análise. Assim, por meio dela, buscaremos as potências atreladas ao campo semântico dos sofrimentos, dores e angústias do discurso analisado. Os sentidos de dor como potência, prazer e silêncio serão desvelados a partir de enunciados importantes ao relato da análise.

Por fim, o comportamento do “outro” no discurso clariceano será pensado, sobretudo, com o auxílio do efeito-leitor, para que possamos explorar a construção discursiva do outro no que toca os sentidos da dor e do sofrimento.

No documento renatamarquesdeoliveiradelage (páginas 85-90)