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Espaço privado, o lugar da mulher nos manuais de educação

No documento JOÃO PESSOA 2019 (páginas 83-86)

CAPÍTULO 3 – ESTRATÉGIAS CONTRA AS ARMADILHAS: OS ENSINAMENTOS

3.2 Aproximações e distanciamentos nos espelhos de princesas a partir da questão

3.2.3 Espaço privado, o lugar da mulher nos manuais de educação

O objetivo dos autores misóginos nesses manuais era corrigir os vícios das mulheres, assim traçaram normas de comportamento para as diferentes situações por elas vivenciadas, ditando como deveriam se comportar na presença do marido, filhos e criados. No entanto, na voz desses autores as mulheres não ocupam outro espaço que não seja o privado.

No prólogo de La formación de la mujer cristiana Vives defende que os ensinamentos destinados às mulheres são pouco reduzidos se comparados aos dos homens, visto que esses exercem funções tanto no espaço público quanto no privado. Já as mulheres “[…] “podem educar-se com pouquíssimos preceitos, uma vez que os homens desenvolvem-se tanto em casa como fora dela; em assuntos privados e em público16” (VIVES, 1994, p.29). Este autor chega inclusive a sugerir que a educação das mulheres poderia se reduzir

16 pueden educarse ciertamente con muy pocos preceptos, ya que los hombres se desenvuelven tanto en casa como fuera de ella; en los asuntos privados y en los públicos.

unicamente a castidade. “Por outro lado, a única preocupação para a mulher é a castidade, por isso, se fizermos uma exposição sobre essa virtude, parece que a deixamos com instrução suficiente17” (VIVES, 1994, p.29).

Os tratados de educação destinados às mulheres trazem uma série de normas que as colocam como um grupo homogêneo, sem nenhuma distinção, sendo a todas exigidos os mesmos preceitos, moderação, obediência, humildade, recolhimento e a principal virtude, da qual provêm todas as demais, a castidade. O discurso que compõe esses guias de educação tem um caráter normativo, seu objetivo é manter as mulheres obedientes à ordem familiar e religiosa. Para Vives, a harmonia deveria reinar entre os casais, e a solução para evitar todos os conflitos conjugais seria a subordinação das mulheres a autoridade dos homens.

Vives defende a educação como algo extremamente importante às mulheres, pois seria através dela que se tornariam perfeitas e virtuosas. Assim, confronta os autores antigos e também seus contemporâneos contrários a essa instrução. Essa educação, no entanto, é recortada por proibições e deve ser realizada para uso próprio das mulheres e não para que possam exercer uma função intelectual ou o exercício profissional.

Estes espelhos de autoria masculina ocupam-se de ensinamentos extremamente triviais, o qual o único espaço pensado para as mulheres é a casa, levando-nos a questionar se entre elas não haveriam senhoras ocupando outros espaços e por que não os públicos. A própria seleção do conteúdo escolhido nesses manuais revela um entendimento sobre o conceito de mulher desse período. Como afirma Macedo (1999, p.41-42),

Os dados até certo ponto são limitados. As limitações podem ser justificadas. Derivam do próprio caráter do testemunho. Muitas vezes as obras não visam mostrar com precisão a vida ou as aspirações das mulheres. Esperam, pelo contrário mostrar como deveriam ser. Os escritores foram quase que exclusivamente homens, muitos deles religiosos. A produção literária do período foi marcada profundamente, tanto na criação quanto na reprodução dos textos pela influência dos clérigos e pelo espírito cristão. Isto, como veremos, pesou imensamente na elaboração da imagem feminina.

Percebemos que o controle das mulheres na Idade Média deu-se tanto pelo mecanismo de negação da educação formal, quanto pela permissão do acesso a uma educação eminentemente moral, recortada e controlada por ensinamentos, que buscavam sua submissão às teses defendidas por religiosos, filósofos, moralistas e intelectuais.

17 En cambio, la única preocupación para la mujer es la castidad, por lo que, si hacemos una exposición sobre esa virtud, parece que la dejamos con una instrucción suficiente.

Encontramos, portanto, nestes textos a representação de uma mulher ideal, distante da realidade, a mulher perfeita que se reduz à castidade. No Livro das Tres Vertudes, porém Christine de Pizan apresenta a mulher real que sofre e tem que utilizar estratégias para sobreviver num contexto de negação de sua dignidade.

Analisando as características atribuídas ao feminino nesses espelhos, percebemos que esta educação é na verdade uma forma de controlar os defeitos das mulheres, enumerados repetidamente por seus autores. Por isso, o equilíbrio e o controle das emoções são tão exaltados. A própria seleção desses ensinamentos revela uma questão de gênero, pois enquanto a educação destinada aos homens tratava de aperfeiçoar virtudes que eles já possuíam como força, inteligência, às mulheres ocorre o inverso, a educação é justamente um instrumento de correção de imperfeições. De acordo com Mércuri (2016, p.149),

[...] mais do que refletir sobre os vícios ou as virtudes delas, cabia elaborar mecanismo específicos para a sua formação, isto é, convinha estabelecer uma normativa de comportamentos próprias para as mulheres. Interessava a eles, pois, pensar quais eram os caminhos condutores do aperfeiçoamento moral das filhas de Eva [...].

Segundo Leite, nos tratados destinados ao público feminino, a voz dos autores mais se aproxima a sermões que a textos de espelhos, tendo como objetivo central os ensinamentos morais, distanciando-se dos textos masculinos que primavam pela arte de governar. No tratado de Pizan, no entanto, há uma preocupação com a necessidade de ensinar às mulheres a governar, primeiro auxiliando seus maridos, depois na ausência destes. Nesse ponto, a autora parece querer suprir uma lacuna presente nos tratados de educação escritos pelos homens que não enxergam o poder de governar como um ensinamento necessário à educação das mulheres.

As características atribuídas às mulheres nestes manuais de educação foram construídas de maneira intencional, defender que eram passivas, inconstantes era comprovar que não tinham capacidade de cuidar de si mesmas, assim deveriam estar sob a tutela masculina. Essa dependência acabou lhes privando de assumirem os espaços públicos, excluindo-as das universidades, da cultura livresca, das leis, da política e da ciência.

Nos textos misóginos seus autores defendem que enclausurar as mulheres ao espaço privado era uma forma de proteção, visto que eram frágeis e não sabiam se autogovernarem, estando constantemente expostas a todos os perigos. A construção da identidade das mulheres neste contexto está associada, portanto, às suas limitações explicadas através da sua natureza para o casamento e a maternidade. Como consequência são excluídas do universo da razão, do

conhecimento, do poder, visto sua natureza inábil para tais exercícios, assumidos historicamente pelos homens.

No documento JOÃO PESSOA 2019 (páginas 83-86)