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O papel da educação para as mulheres nos tratados de educação dos séculos XV e XVI

No documento JOÃO PESSOA 2019 (páginas 80-83)

CAPÍTULO 3 – ESTRATÉGIAS CONTRA AS ARMADILHAS: OS ENSINAMENTOS

3.2 Aproximações e distanciamentos nos espelhos de princesas a partir da questão

3.2.2 O papel da educação para as mulheres nos tratados de educação dos séculos XV e XVI

A educação para as mulheres no período medieval não era entendida como necessária por todos os autores, como veremos adiante, alguns defendiam uma educação que apenas restringisse à existência das mulheres ao desempenho das funções domésticas e familiares.

Em le libre de les dones ou Espill Jaume Roig defende que a educação para as mulheres era responsável por desviá-las do caminho para o qual nasceram, assim ocupando-se de atividades como a leitura e a escrita esqueciam suas verdadeiras obrigações, as domésticas. Para o autor, o conhecimento tornava as mulheres capazes de aprender a questionar e mentir para seus maridos, o que representava uma ameaça para a autoridade dos homens.

Neste tratado, Roig faz duras críticas ao livre acesso das mulheres à educação, relatando o mal exemplo de sua esposa que, por ser letrada, se ocupava de outras atividades esquecendo suas verdadeiras responsabilidades. “Ele a acusará de ser preguiçosa, de não cuidar da casa, de não saber cozinhar e de não querer abster-se de relações sexuais durante o período da quaresma” (BROCHADO, 2014, p.378). O autor faz assim, um alerta sobre o perigo de permitir certas liberdades às mulheres, afirmando que a falta de castigos também poderia ser responsável por seus maus costumes.

Em alguns desses espelhos seus autores justificam, inclusive, para que deve ser utilizada a educação das mulheres, em La perfecta casada Fray Luis (2003, p.41) defende, “Tem de estudar a mulher, não para penhorar o seu marido e colocá-lo em raiva e cuidado, mas para livrá-lo deles e em série perpétua causa de alegria e descanso14”.

Para Luis Vives em La formación de la mujer cristiana a educação deve ser utilizada exclusivamente para auxiliar as mulheres no seu papel familiar e nos deveres domésticos e não para distanciá-las de seus verdadeiros compromissos. Assim, em nenhum momento há uma valorização da educação intelectual para as mulheres como podemos perceber em, “O principal fruto da educação da mulher reverte-se ao marido: a casa é governada com maior prudência, educa-se os filhos mais religiosamente15 […]”(VIVES, 1994, p.50).

Conforme defende Vives (1994), as mulheres devem aprender apenas para si, para seus filhos e marido, pois não é adequado a uma mulher estar à frente de uma escola, trabalhar

14 ha de estudiar la mujer, no en empeñar a su marido y meterle en enojos y cuidados, sino en librarle dellos y en serie perpetua causa de alegría e descanso.

15 El principal fruto de la formación de la mujer revierte al marido: la casa se gobierna con mayor prudencia, se educan los hijos más religiosamente.

entre homens ou falar com eles, não devendo assim debilitar sua modéstia e seu pudor em público. A erudição para as mulheres é assim entendida como imoralidade, não sendo portanto, uma virtude para sua formação. O que comprova que vício e virtude não assumem o mesmo valor para homens e mulheres.

Como podemos perceber, o conhecimento das mulheres deve ser sempre revertido em utilidade para os homens. A educação para as mulheres, portanto, nunca é pensada para o exercício de uma função política, intelectual ou profissional nestes textos. Essa projeção é impensável para esses autores. No entanto, como defende Pizan, essas mulheres poderiam sutilmente a partir da educação ocupar outras funções e, principalmente, se preparar para exercê-las na ausência dos homens.

Assim não existe uma determinação de ordem natural para a superioridade masculina, mas sim, uma imposição de ordem social e cultural que defende a instrução como negativa para as mulheres e positiva para os homens. E sob vários disfarces os homens tentaram as afastar do conhecimento, primeiro, sob o argumento de que sua natureza era inferior e não teriam a capacidade de se desenvolver intelectualmente, depois insistiram que, se aprendessem não fariam bom uso desse conhecimento.

Os autores apresentados parecem concordar que a educação das mulheres deveria servir exclusivamente para aperfeiçoar seu desempenho doméstico e familiar e não em fazê-las esquecer suas verdadeiras funções. A repetição cansativa com lições que se restringiam a conhecimentos próprios do âmbito privado tinha como objetivo lembrar às mulheres quais papéis elas deveriam exercer nesta sociedade. Havia uma constante preocupação na voz desses autores para que as mulheres não abandonassem as funções próprias a sua natureza. Assim, a introdução de novidades no comportamento das mulheres que pudessem interferir nessa ordem, defendida como natural deveria ser proibida, até mesmo com punições severas, pois deixar de desempenhar as obrigações domésticas e conjugais era negar a ordem natural das coisas e desestabilizar a hegemonia dos homens nos outros espaços de poder.

A Igreja entendia a instrução para as mulheres como uma forma de manter sua doutrina no espaço familiar, com esse saber seguiriam suas normas educando os filhos e perpetuando esse domínio religioso. Essa educação de base cristã buscava justamente ensinar às mulheres a se curvar ao modelo de mulher valorizado, casta, obediente e silenciosa. Como podemos perceber esses manuais de educação não assumiam um interesse pedagógico que servisse aos interesses das mulheres, mas sim, a uma ordem espiritual e moral que as aprisionava às leis da Igreja.

O matrimônio, por ser considerado um sacramento da Igreja reflete toda uma vivência cristã que não existe fora do modelo da sagrada família. Assim, a formação familiar precisa justamente de mulheres que entendam essa filosofia de vida e as reproduza na educação dos filhos, sendo portanto, a primeira escola das crianças.

A preocupação com os livros que poderiam ser lidos pelas mulheres também foi tema desses manuais de educação. Alguns autores foram bem restritivos nessas indicações, a exemplo de Eiximenis que aconselha a leitura apenas da Sagrada Escritura e alguns textos de doutores da Igreja. De acordo com Fernandes (1999, p.121) em O Livro das Tres Vertudes

Christine de Pizan,

[...] foi um pouco mais extensa e, de certa forma, mais “moderna”, na medida em que não se limitou a sugerir a leitura e a indicar alguns livros, mas, por entre a variedade de sugestões, selecionou tanto os que quis recomendar como os que quis desaconselhar, adoptando o ponto de vista que veremos ser desenvolvido por Vives e por quase todos os humanistas e moralistas do século XVI (FERNANDES, 1999, p. 121).

Enquanto Roig atribui a falta de comprometimento da sua mulher nas funções domésticas a não utilização de castigos físicos em sua educação, defendendo-os como necessários. Pizan os reprova, denunciando o tratamento dado às mulheres em muitas situações na sua obra.

Entre os principais ensinamentos utilizados pelos autores misóginos estão temas que historicamente são motivo de condenação para as mulheres. Em alguns momentos o objetivo não parece ser educar, mas condenar as mulheres. Comprovamos esse desejo, ao perceber que alguns assuntos que ganham um peso maior no texto dos autores homens, são praticamente esquecidos no espelho de Pizan, o que demonstra que para a autora não tinham a mesma importância.

De acordo com Brochado (2013), assuntos como o cuidado da beleza, a manipulação de ervas e maquiagens são apresentados por autores como Roig e Eiximenis como futilidades, condenável como vício da luxuria, sendo responsável por atrair os homens para o pecado. Para Eiximenis (apud BROCHADO, 2013, p.5), “a ornamentação feminina seria obra do diabo para prender as almas masculinas”.

No texto de Pizan, porém a estética feminina não assume um tom de futilidade, ao contrário cumpre uma função social, servindo justamente para expressar através das vestimentas, das suas formas e cores a ordem social a que as mulheres pertenciam. As roupas deveriam ser usadas de acordo com o adequado status social das senhoras, sendo a hierarquia uma das regras a serem respeitadas.

[...] nom tenham tam grande que suas rendas lhes nom possam abastar[...]. “[...] nom queiram teer maior estado que a elas perteece porque, alguuas vezes, quando som juntas em alguu lugar, nom querem que outra alguua se ponha diante delas e querem seer mais honradas do que lhe perteece (PIZAN, 2002, p.244).

No Livro das Tres Vertudes as vestimentas, suas cores e adornos ganham um sentido social, distanciando-se dos textos masculinos, que aparecem de forma recorrente como uma futilidade, própria das mulheres. Essa distinção das roupas não representava apenas uma diferença de gosto, mas de riquezas, algumas cores e modelos eram exclusivos da realeza, e esse era um código que deveria ser respeitado.

[..] ao que pertence declarar as vestiduras, que aquelas que se assi deleitam em taaes trajos desordenados nom fazem bem, e assi se prova pelos nobre e bõõs costumes antigos porque as duquesas nom eram ousadas trazer as vestiduras que as rainhas traziom. Nem as condessas as que traziom as duquesas, Nem as simprezes donzelas as que traziom as condessas (PIZAN, 2002, p.244).

Neste sentido, o objetivo de Pizan não é aprisionar as mulheres ao espaço privado e as funções domésticas, mas buscar meios através de uma educação prática que lhes permitissem exercer e ocupar outros espaços para além dos sonhados pelos homens. Distanciando-se dos espelhos dos outros autores, as lições de Pizan partem das funções desempenhadas pelas mulheres em sociedade, seja política, administrativa ou religiosa. E não da relação de subordinação que deviam aos homens.

No documento JOÃO PESSOA 2019 (páginas 80-83)