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2.2. MEMÓRIA COLETIVA E TRADIÇÃO

2.3.1. Espaço rural revalorizado

O Brasil passou, a partir dos anos 1980, por grandes transformações nas relações rural/urbano. O êxodo rural ocasionado pela Revolução Verde impulsionou uma massa de trabalhadores para as grandes cidades, acarretando, também, mudanças nas relações de produção no meio rural. A crise do modelo vigente ocorreu, conforme Vilela (2002), paralelamente a um processo de desestruturação/reestruturação do meio rural, onde as atividades rurais mais tradicionais têm sua importância econômica reduzida, dando lugar a outras atividades, que são criadas ou recriadas com um vigor socioeconômico expressivo em relação, inclusive, às atividades não-agrícolas.

Para o autor, o atendimento à demanda urbana passa a reestruturar o meio rural em contextos sóciopolíticos particulares, produzindo oportunidades de mercado altamente diferenciadas para vários grupos de renda. Esses mercados incluem uma ampla extensão de bens localizados - residência, atividades de lazer, áreas de conservação, entre outras - para

atender, em grande parte, à classe média sufocada com o modo de vida urbano contemporâneo. Com isso, uma grande diversidade de atores novos e velhos passa a competir por recursos nesse ambiente rural,

[...] no qual a agricultura poderá tornar-se crescentemente residual, ainda que os agricultores mantenham uma presença social e ideológica representativas do rural e de seu caráter territorial. O espaço rural passa, assim, a ser palco do surgimento de novas categorias socioprofissionais, dotadas de experiências as mais diversas, em busca de um lugar em um velho/novo espaço revalorizado (VILELA, 2002, p. 99).

Esse novo espaço revalorizado, que são os territórios brasileiros, segundo Sabourin; Teixeira (2002), desponta como o elemento central do desenvolvimento rural, por terem como principal especificidade a sua diversidade, resultante de construções e evoluções históricas, econômicas, culturais e sociais. Definido o território como “um espaço geográfico construído socialmente, marcado culturalmente e delimitado institucionalmente” (SABOURIN; TEIXEIRA, 2002, p. 23), as ações voltadas para seu planejamento e desenvolvimento devem traduzir as aspirações das populações locais. Ao mesmo tempo, resultam de um processo desejado, partilhado, produtor de riquezas e redistributivo, a partir do estabelecimento de parcerias entre os atores públicos, privados, nacionais, regionais ou locais envolvidos. Por essa razão, “o planejamento e o desenvolvimento dos territórios rurais passam a exprimir as dimensões de fenômenos local, regional, nacional e internacional” (SABOURIN; TEIXEIRA, 2002, p. 8). Nesse processo, porém, a mediação entre os interesses individuais e coletivos é dificultada pela globalização das atividades econômicas, bem como a definição de objetivos, o estabelecimento de metas de curto e longo prazos e a valorização da especificidade local.

As relações territoriais hoje estão marcadas, conforme explicado por Vilela (2002), pela influência que a globalização exerce no local, bem como a importância do local diante da globalização. Essa influência da globalização no local também é lembrada por Schneider (2003b, p.90), quando afirma que “o quadro atual é profundamente marcado por um processo

de ampliação da interdependência nas relações sociais e econômicas em escala internacional”, e cita Castells (1999) que indica a influência exercida pela globalização como característica da excepcional capacidade que a economia capitalista tem de ajustar, em escala planetária, a interdependência entre as condições de tempo e espaço no processo global de produção de mercadorias.

Nesse contexto, Perico; Ribeiro (2005) propõem a existência de uma nova ruralidade, que contém nela inserida a redefinição do rural, e convidam a reconsiderar a visão de que o rural é população dispersa, baseada apenas na produção agropecuária, para passar à reconstrução do objeto de trabalho e de política, ao definir o âmbito rural como “território construído a partir do uso e da apropriação dos recursos naturais, de onde são gerados processos produtivos, culturais, sociais e políticos” (PERICO; RIBEIRO, 2005, p.19). Desta forma, por sua potencialidade como território, o setor rural passa a ser estratégico no desenvolvimento integral e harmônico da região. Além disso, a formação de capital social, de institucionalidade e de capital político encontra, nos territórios rurais, oportunidade favorável, a partir do fortalecimento das culturas tradicionais, de suas comunidades e de suas próprias formas de organização.

Já Veiga (2006, p. 334) propõe o reconhecimento de uma ruralidade que “não está renascendo, e sim nascendo”. Para ele, a valorização dos espaços rurais que está ocorrendo nos dias atuais, especialmente nos países desenvolvidos, é um fenômeno novo, que muito pouco tem a ver com “as relações que essas sociedades mantiveram no passado com tais territórios”, já que nunca houve sociedades tão opulentas e nem tanta valorização da sua relação com a natureza.

Essa valorização, segundo o autor, resulta do reconhecimento da importância das áreas rurais para a qualidade de vida e o bem-estar da humanidade globalizada, por conter nelas três vetores: a conservação do patrimônio natural e da biodiversidade; o aproveitamento

econômico das amenidades naturais pelo turismo; e a exploração de fontes alternativas e renováveis de energia. Isso faz com que o rural remoto ou profundo, ou seja, aquele que ainda não foi modificado ou destruído pela “milenar agressão das atividades humanas” (VEIGA, 2006, p. 337) deva ser cada vez mais conservado, mesmo admitindo-se a existência, no território, de atividades econômicas de baixo impacto. Por outro lado, faz com que ocorram inéditas combinações socioeconômicas no território rural que está mais próximo ou acessível.

O autor faz uma análise da situação italiana, já que afirma que na Itália são fartas as evidências de como esses vetores se manifestam em progressos na direção da diversidade biológica e cultural, do aproveitamento econômico das amenidades e das fontes renováveis de energia. E cita autores italianos, como Umberto Bonapace (2001), que, propôs a permanência de duas grandes heranças para o presente e para o futuro na ruralidade do país: a primeira de ordem física, o espaço, e a segunda de ordem cultural, o patrimônio das tradições.

Corrado Barberis (2001), outro autor italiano citado por Veiga (2006), afirma que essa

nova ruralidade tem sua expressão mais colorida nas festividades ligadas à figura do(a)

santo(a) padroeiro(a) e na “divindade gastronômica do lugar” (il raviolo o la bruschetta, il

pecorino o il cinghiale). Veiga (2006, p. 336) acrescenta que tais manifestações

são marcadas por forte sentido de pertencimento, destinado a sustentar os pequenos mercados locais que se apóiam nesse ou naquele produto típico. Uma consideração de muita importância, tanto para o turismo quanto para a agricultura.

Porém, para Veiga, esse fenômeno da nova ruralidade, exemplificada pela experiência italiana, só pode existir em situações específicas, onde haja grande prosperidade socioeconômica - capaz de aflorar as qualidades singulares dessa ruralidade - tornando possível impulsionar simultaneamente os três vetores: da conservação da biodiversidade, do aproveitamento econômico das belezas naturais, por meio do turismo, e a alteração da matriz

energética, mediante o aumento de suas fontes renováveis. “Por isso, ela deve ser considerada nova, em vez de renascente” (VEIGA, 2006, p. 348).

Considerando-se, como Favareto (2007, p.103), “a diferença entre o rural e o urbano nos países do capitalismo avançado e nos países da América Latina, Ásia e África”, nos quais a urbanização se deu como fator de subdesenvolvimento, seria possível pensar que a ruralidade se expressará de maneira específica. Entretanto, com relação ao caso brasileiro, Veiga (2003) acredita que ainda falta ao país a elaboração de um plano estratégico de desenvolvimento sustentável do Brasil rural que contenha diretrizes, objetivos e metas que favoreçam as sinergias entre a agricultura e os outros setores das economias locais, de forma a explorar as vantagens comparativas e competitivas desses territórios. Enfim, o autor acredita que o desenvolvimento regional passa pelo equilíbrio entre o fortalecimento da capacidade concorrencial do território e a melhoria da qualidade de vida de seus habitantes, o que é alcançado a partir da criação de novas formas de parceria entre os atores envolvidos, sejam eles públicos, privados, nacionais, regionais ou locais (VEIGA, 2003, p.285).

Já Espírito Santo et al. (2003), acreditam que a valorização do território é importante estratégia para diferenciar a produção familiar e agregar renda à atividade. Para os autores,

[...] os produtos típicos da agricultura familiar são o resultado de um saber- fazer tradicional, transmitido de geração em geração. A qualidade desses produtos típicos resulta de uma estreita relação entre o saber-fazer (o homem) e as características das distintas zonas agroclimáticas existentes no território nacional (o território), que proporcionam sabores, cores e aromas únicos (ESPÍRITO SANTO et al., 2003).