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O ESPAÇO-TEMPO, A IMAGINAÇÃO-MEMÓRIA

Anteriormente, tentamos pôr, de um lado, o quintal como espaço da imaginação; do outro, a infância como tempo da memória. O primeiro, sob influência da filosofia da imaginação de Bachelard, de onde colhemos: “imaginação é espaço”. O segundo, pela observação sintética de Ricoeur: “memória é tempo”.

Que valor tem essa divisão? O quintal não poderia ser o espaço da memória e a infância o tempo da imaginação? Parece-nos bem aceitável pensar o quintal como espaço da recordação. Basta “ver” o quintal e seus “seres” para que a memória busque lembranças, destacando-as do passado. Tanto parece ser lícito dizer que, se há um tempo em que a imaginação é dominante, esse tempo é a infância.

Paul Ricoeur (2008, p. 57) falará também da memória dos lugares, sobretudo dos espaços habitáveis:

É na superfície habitável da terra que nos lembramos de ter viajado e visitado locais memoráveis. Assim, “as coisas” lembradas são intrinsecamente associadas a lugares. E não é por acaso que dizemos, sobre uma coisa que aconteceu, que ela teve lugar.

O quintal, nas palavras de Ricoeur, seria um reminder, um indício de recordação, “um apoio à memória que falha, uma luta na luta contra o esquecimento” (ibid., p. 58).

Por outro lado, “com sua atividade viva, a imaginação desprende- nos ao mesmo tempo do passado e da realidade” (BACHELARD, 2008, p. 18). Para Bachelard (ibid.), a imaginação tem seu tempo: ela “abre-se para o futuro”. (E não dizem que as crianças são o futuro?)

Com isso, podemos dizer que há um lugar da memória e um tempo da imaginação. Logo nossa “divisão” se percebe canhestra. Mas tem seus motivos. Como já vimos, a memória e a imaginação não são a mesma coisa. Isso não quer dizer que ambas estejam em exclusão. Pelo contrário, elas se incluem na vida e na poesia. O mesmo pode ser dito do espaço e do tempo. De fato, são grandezas diferentes, mas estão em relação. Não será descabido lembrar o conceito einsteiniano do tempo como quarta dimensão do espaço, o espaço-tempo.

“Imaginação é espaço”, “memória é tempo”. Essas duas preciosas afirmações – sob nosso olhar confuso, um olhar que embaralha imagens e memórias – agora aparecem sobrepostas e como que unidas pelas suas diferenças: “imaginação-memória é espaço-tempo”. A imagem do quintal (o espaço da imaginação) evoca lembranças como a memória da infância (o tempo da memória) produz imagens.

Se atentarmos à diferença entre imagem e lembrança assinalada por Sartre e Ricoeur, na qual a primeira, ao contrário da segunda, não estaria marcada no tempo e no espaço, parece estranho dizer que o quintal é o espaço da imaginação em Manoel de Barros. Evitemos um possível mal-entendido. Não queremos dizer que a imaginação está no espaço, e sim que o espaço está na imaginação. Mas isso também não faria sentido, já que o “mundo” da imaginação é um mundo sem espaço, onde a relação espacial entre objetos não pode ser medida, percebida. Tentemos outra via. É preciso dizer que o quintal de Manoel de Barros é um quintal imaginado. Um espaço já sem medidas, porque a imaginação extrapola as medidas. Um espaço que nos aparece como quintal e como Pantanal. Com essa ressalva, agora não nos parece incoerente dizer que o quintal está na imaginação.24

Acabamos de dizer que objetos imaginados não podem ser percebidos. Nosso trabalho não prevê um estudo mais dedicado à percepção. Mas acreditamos que alguma reflexão sobre a relação entre percepção, imaginação e memória pode dar mais força à nossa escolha de pôr em suspenso o espaço e imaginação de um lado e memória e o tempo de outro.

Os objetos reais estão no espaço, têm seus lugares. E sabemos percebê-los, seja pelo cheiro, pela textura, pela cor, pelo sabor ou pelo som que possam produzir. Ou seja, aplicamos sobre os objetos reais nossos sentidos da percepção. Ao contrário, os objetos irreais não podem ser percebidos com os sentidos, eles podem apenas ser imaginados. Pois, para falar com Sartre (1996, p. 22), “eu posso reter pelo tempo que quiser uma imagem em minha visão; encontrarei sempre o que tiver colocado”. Por isso, não adianta querer cheirar a imagem de um objeto, que não encontrarei nenhum cheiro salvo que também o coloque na imagem, como imagem. Assim, a imagem não pode ser percebida, pois está fora do espaço. E como percebemos o tempo? Não é

24 Se Sartre consentisse com nossa afirmação, ou seja, se há um “lugar” para as imagens, provavelmente ele preferiria imaginário à imaginação para marcar esse lugar.

por nenhum dos sentidos. O tempo não soa, não tem cor, não tem textura. Podemos ouvir os ponteiros do relógio, mas é o tempo que estamos escutando? As rugas que marcam um velho são a textura do tempo? Podemos perceber o tempo apenas indiretamente, nas coisas que passam no tempo. A rigor, o tempo não é um objeto da percepção. O que parece diferente do espaço. Então, o tempo, não sendo percebido, pode apenas ser imaginado? Não é o caso. Há uma maneira de percebermos o tempo sem nos determos no tempo das coisas. Com Paul Ricoeur, dizíamos que a memória é o que temos para perceber o tempo. Por isso essa dificuldade de pensar o tempo, já que não é algo que se percebe como o espaço, ou seja, pelos sentidos. Da lembrança, eu posso dizer que tem seu tempo no passado. Mas também posso dizer que a lembrança, como algo que aconteceu num lugar, tem seu espaço. Contudo, o espaço da lembrança ainda está como que dominado pelo tempo. Com isso, parece-nos melhor dizer que o espaço está para a percepção assim como o tempo está para a memória. Bergson (2010, p. 244) dirá que “perceber significa imobilizar”; em contrapartida, dizemos que “lembrar significa mobilizar”.

Parece-nos sem problema dizer que o a infância é o tempo da memória em Manoel de Barros. Mas o que dizer sobre o quintal sendo o espaço da imaginação? Não seria melhor dizer que o quintal é o espaço da percepção? Se nos colocássemos no quintal real, sentiríamos esse espaço, perceberíamos; e não o imaginaríamos. Mas sendo um quintal imaginado, só pode ser um espaço imaginado. O que nos leva agora a dizer que tudo que está nele foi posto pela imaginação. Mas isso não se aplicaria à infância? Como afirmar que é uma infância lembrada e não imaginada? Caímos nas mesmas dificuldades.

Nossa escolha em relacionar o espaço e a imaginação, certamente é por influência da crítica de Bachelard. Sabemos que a memória é central na filosofia de Bergson, como sabemos que a imaginação o é para Bachelard. A que se devem essas escolhas? Em “A poética do espaço”, Bachelard (2008, p. 18) colocará a imaginação “como uma potência maior da natureza humana”. Por isso os espaços devem ser percebidos pela imaginação, já que só a imaginação poderia dar-lhes potência. Vemos aqui que, para Bachelard, a imaginação é uma percepção. Essa ideia já estava em “A água e os sonhos”, livro de 1942 (“A poética do espaço” é de 1957), quando Bachelard discorrerá sobre a imaginação da matéria. Para ele, existem duas imaginações, “uma imaginação que dá vida à causa formal e uma imaginação que dá vida à causa material; ou, mais brevemente, a imaginação formal e a

imaginação material” (1989, p. 2). É o segundo tipo de imaginação que Bachelard preferirá para sua crítica literária. Para ele, as forças imaginantes da matéria “dominam a época e a história. Na natureza, em nós e fora de nós, elas produzem germes; germes em que a forma está encravada numa substância, em que a forma é interna” (ibid.). Ora, trata-se justamente de uma imaginação que “toca” a matéria, de imagens mais modeladas pela matéria que pela forma. Nesse sentido, Bachelard (2008, p. 28) dirá que o “espaço retém o tempo”, ou seja, que a matéria contém em si sua forma, ou que “é a matéria que comanda a forma” (id., 1989, p. 124). Dessa preferência de Bachelard pela matéria à forma, pelo espaço ao tempo, pela imaginação à memória, notamos que ele está do lado oposto ao que está Bergson. Para este, a memória é que dá forma ao mundo percebido. Basta lembrar que, para Bergson (2010, p. 266), a memória “tem por função primeira evocar todas as percepções passadas análogas a uma percepção presente, recordar-nos o que precedeu e o que seguiu, sugerindo-nos assim a decisão mais útil”. Portanto, a memória condicionaria a percepção. Para Bergson, a memória reconhece a matéria; para Bachelard, é a imaginação. Pela via de Bachelard, podemos justificar que a “imaginação reconhece o quintal”.

A memória e a percepção, em estado puro, digamos, estão muito próximas da realidade. As duas se referem a um tempo e a um espaço marcados. A imaginação, pelo contrário, é irreal. E podemos separar as três na vida concreta e psíquica? Essa separação é tão absurda que só é possível vivê-la em uma ficção de Borges (2007, p. 99-108):

Funes é a personagem que “não apenas recordava cada folha de cada árvore de cada monte, mas também cada uma das vezes que a havia percebido ou imaginado”. Depois de um acidente que o deixa paralítico, Funes desperta com uma memória e uma percepção infalíveis. Suas “lembranças não eram simples; cada imagem visual estava ligada a sensações musculares, térmicas etc”. Ele custava dormir. Com sua percepção infalível, não podia “distrair-se do mundo”. Funes, assim, não consegue se afastar da ação presente e ir em direção ao sonho. Apesar da sua incrível memória, ele sequer poderia ter tempo de lembrar seu passado sem vivê-lo de novo. Uma memória como a de Funes, no limite, não poderia ser memória. Pois a memória precisa de “lugares vazios”; sem o esquecimento as lembranças não se “movem”. Funes “não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair”. Funes, refém da realidade, da memória e da percepção extremadas, não pode sequer imaginar. De sua vida, a faculdade de

pensar, que não está muito longe da faculdade de imaginar, foi enfraquecida. Funes não já não pode ter uma “consciência irrealizante”.

Percebemos no conto de Borges as consequências de uma memória e uma percepção que excluem a imaginação. Funes, nunca poderia ser livre, já que “colocar uma imagem é constituir um objeto à margem da totalidade do real, é manter o real a distância, libertar-se dele – numa palavra, negá-lo” (SARTRE, 1996, p. 239). Há falhas na memória e na percepção que só a imaginação pode vir a preencher. Dos detalhes de certo objeto que não conseguimos lembrar, recorremos à imaginação. De um objeto percebido parcialmente, é a imaginação que tentará nos apresentá-lo por inteiro.

Não há, pelo menos no homem, um estado puramente sensório-motor, assim como não há vida imaginativa sem um substrato de atividade vaga. Nossa vida psicológica oscila [...] entre essas suas extremidades (BERGSON, 2010, p. 197).

Funes, digamos, não oscilava entre a imaginação e a memória.

Sartre (ibid., p. 245) também falará da relação indissolúvel entre o real e o imaginário, para ele

Todo imaginário aparece “sobre o fundo do mundo”, mas, reciprocamente, toda apreensão do real como mundo implica uma ultrapassagem velada em direção ao imaginário. [...] Não poderia haver consciência realizante sem consciência imaginante, e a recíproca também é verdadeira. Portanto, é impossível conceber memória e percepção (o real) sem a imaginação (o irreal). Assim, pensa Bachelard (1989, p. 25), que “a vida real caminha melhor se lhe dermos suas justas férias de irrealidade”.