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O TEMPO DA MEMÓRIA: A INFÂNCIA

Le Goff (2008, p. 419) define a memória como “um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas”. Abbagnano (1998, p. 671) resume-a no mesmo sentido: “Possibilidade de dispor dos conhecimentos passados”. A memória, assim, sempre está em relação com o passado. Por mais que essa asserção pareça evidente, pelo menos ela deverá ajudar a distinguir a memória da imaginação.

Segundo Paul Ricoeur (2008, p. 38), “a noção de distância temporal é inerente à essência da memória”. Para o filósofo, essa própria noção de tempo que é dada pela memória “assegura a distinção de princípio entre memória e imaginação”. A distinção entre memória e imaginação, nesse caso, repousaria em que a primeira de fato aconteceu, está marcada no tempo e pode ser recuperada pela memória, enquanto a segunda não está fixada em tempo algum, a memória não a encontraria se a buscasse no passado. Assim, de um fato imaginado, não caberia perguntar “quando”. Se uma ficção pudesse entrar no tempo da memória, seria ela mesma convertida em fato. Sendo memorável, o fato ficcional se tornaria fato verdadeiro. Um fato verdadeiro, realmente acontecido como ficção.22

Da pergunta de qual seria o espaço da imaginação em Manoel de Barros, chegamos à resposta: o quintal. Perguntamos agora qual é o tempo da memória em sua poesia. O título acima já denuncia: a infância.

Eu não amava que botassem data na minha existência. A gente usava mais era encher o tempo. Nossa data maior era o quando. O quando mandava em nós. A gente era o que quisesse ser só usando esse advérbio. Assim, por exemplo: tem hora que eu sou quando uma árvore e podia apreciar melhor os passarinhos. Ou: tem hora que eu sou quando uma pedra. E sendo uma pedra eu posso conviver com os lagartos e os musgos. Assim: tem hora eu sou quando um rio. E as

22 A título de exemplo, lembramos o “Bloomsday”, feriado nacional irlandês comemorado no dia 16 de junho para “lembrar” o dia em que Leopold Bloom deambulou pelas ruas de Dublin. Ou seja, um não-acontecimento (ficção) criado por James Joyce, em seu romance Ulisses, passa como um verdadeiro acontecimento, com direito à comemoração – esse “(re)memorar com”.

garças me beijam e me abençoam. Essa era uma teoria que a gente inventava nas tardes. Hoje eu sou quando infante. Agora nossos irmãos, nosso pai, nossa mãe e todos moramos no rancho de palha perto de uma aguada. O rancho não tinha frente nem fundo. O mato chegava perto, quase roçava nas palhas. A mãe cozinhava, lavava e costurava para nós. O pai passava o seu dia passando arame nos postes de cerca. A gente brincava no terreiro de cangar sapo, capar gafanhoto e fazer morrinhos de areia. Às vezes aparecia na beira do mato com a sua língua fininha um lagarto. E ali ficava nos cubando. Por barulho de nossa fala o lagarto sumia no mato, folhava. A mãe jogava lenha nos quatis e nos bugios que queriam roubar nossa comida. Nesse tempo a gente era quando crianças. Quem é quando criança a natureza nos mistura com as suas árvores, com as suas águas, com o olho azul do céu. Por tudo isso que eu não gostasse de botar data na existência. Por que o tempo não anda para trás. Ele só andasse pra trás botando a palavra quando de suporte (“Tempo”, MIS, p. 113). O que significa “ser quando” uma pedra, uma árvore ou um rio? Talvez possamos dizer que o “ser quando” é o mesmo que representar, ou seja, trazer ao presente, atuar. Desse modo, o “ser quando” seria entendido como um “estar”: estar uma pedra, uma árvore ou um rio. Interessante notar que o “quando” não tem um tempo definido. A que isso se deve?

Por meio do conceito de shifters, atribuído ao linguista Roman Jakobson, que são os pronomes pessoais e alguns advérbios (principalmente os de tempo e lugar) que cambiam seu significado, ou antes, que só podem significar na instância de discurso, Agamben (2006) depara-se com o vazio da linguagem, já que os shifters são signos que se tornam plenos apenas quando inseridos no discurso. Assim, eles assumem a função de

articular a passagem entre significação e indicação, entre língua (código) e fala (mensagem); como símbolos-índices, eles podem preencher o significado que a eles compete no

código somente através da referência díctica a uma concreta instância de discurso (ibid., p. 42). A partir da constatação da natureza dos shifters, Agamben nota que a articulação que essas palavras fazem entre a língua e o discurso indica o próprio ter-lugar da linguagem.

Os pronomes e os outros indicadores da enunciação, antes de designar objetos reais, indicam precisamente que a linguagem tem lugar. Eles permitem, deste modo, referir-se, ainda antes que ao mundo dos significados, ao próprio evento de linguagem, no interior do qual unicamente algo pode ser significado (ibid., p. 43).

O filósofo, indagando sobre a relação existencial entre os shifters e a instância do discurso, pergunta o que faz com que essa relação venha à tona e mostre o próprio ter-lugar da linguagem. Para ele, “a anunciação e a instância do discurso não são identificáveis como tais senão através da voz que as profere, e, somente supondo nelas uma voz, algo como um ter-lugar do discurso pode ser mostrado” (ibid., p. 52).

No estudo, Agamben se mostrou interessado sobretudo no pronome “eu”. É de maneira semelhante que o advérbio “agora” irá despertar o interesse de Paolo Virno (2003), o qual também revisita conceitos da linguística, por via de Émile Benveniste, para pensá-lo. “El adverbio ‘ahora’ muestra la actualidad del discurso que se está pronunciando; expresa el tiempo en el cual se habla, identificándolo sin medios términos con el tiempo en el cual se es” (ibid., p. 118).

Se para Agamben o shifter “eu” articularia a passagem da língua para a fala, diríamos que o shifter “agora”, nas palavras de Virno (ibid., p. 118-119), é “el umbral que separa, y al mismo tiempo correlaciona, potencia y acto”. De outra maneira, o “agora” separa potência e ato, pois o ato está sempre em relação de negação com a potência, haja vista que os atos não esgotam a potência, sequer a modificam. Por outro lado, a única maneira de a potência ser percebida no tempo é por meio do ato. Por isso também é válido dizer que há uma correlação entre potência e ato, uma simultaneidade entre ambos, já que “la potencia se instala en la trama cronológica solamente durante el desarrollo del acto” (ibid., p. 112).

Desse modo, o “quando” só pode ter significado dentro do discurso, assim como só pode estar no tempo quando atualizado na fala.

Em si, o “quando” é potência, um tempo uno, indivisível. Por isso ele pode significar o passado, em: “quando eu era criança”; ou o futuro, em: “quando eu for velho”. Por causa dessa característica, entendemos por que esse advérbio enche o tempo. Pois parece, num instante presente, carregar todo o tempo consigo. Ou seja, todas as possibilidades de “ser quando” algo.

O “quando”, isolado do discurso, é a potência do tempo, ou seja, não está atualizado, marcado cronologicamente. E como ele aparece em Manoel de Barros? “Por que o tempo não anda para trás. Ele só andasse pra trás botando a palavra quando de suporte.” Nesse sentido, o “quando” parece ser uma máquina do tempo que transporta o poeta para o passado, uma palavra que serve de veículo de memória. Mas para que data precisamente o “quando” transporta? Diríamos que depende do viajante. Supondo o poeta Manoel de Barros, não cabe ao “quando” fixar data na existência. À primeira vista, podemos pensar que o “quando” leva a uma lembrança, com seu passado, com sua memória. Mas em que passado memorável se é “quando” uma árvore, um rio ou uma pedra? Na volta ao passado, a poesia extrapola a memória. Por essa via de interpretação, poderíamos falar que ela nos dá uma lembrança pré-histórica. Desse modo, a memória apoiada no “quando” permitiria voltar ao passado não em busca de uma memória, mas ir à pré-história em busca de uma imagem. Assim, pelo “quando”, o poeta teria não uma lembrança, com seu tempo marcado, mas uma imagem, com seu tempo aberto. O “quando”, palavra sem tempo e suporte do tempo, levaria o poeta tanto para as profundezas do passado quanto para as profundezas do futuro.23

O que dizer dessa memória que extrapola o tempo humano? O certo é que, sendo uma memória apoiada no “quando” da infância, não poderíamos esperar que passasse distante da região dos sonhos. De certa forma, é um certo desprendimento da ação presente que deixa à criança

23 Devemos lembrar que a relação do “quando” com o tempo está também em Vinicius de Moraes (2008, p. 415-416), no poema “Poética”. Recortamos os versos finais, onde o verso que nos interessa, e o qual grifamos, aparece:

Outros que contem

Passo por passo: Eu morro ontem Nasço amanhã

Ando onde há espaço: – Meu tempo é quando

o caminho livre para sonhar. As crianças, diria Bergson (2010, p. 180), diferem do adulto porque

ainda não solidarizaram sua memória com sua conduta. Seguem habitualmente a impressão do momento, e, como a ação não se submete nelas às indicações da lembrança, inversamente suas lembranças não se limitam às necessidades da ação.

Daí segue a conclusão de Bergson (ibid.) a respeito do “desenvolvimento extraordinário da memória espontânea” nas crianças:

Elas só parecem reter com mais facilidade porque se lembram com menos discernimento. A diminuição aparente da memória, à medida que a inteligência se desenvolve, deve-se portanto à organização crescente das lembranças com os atos. A memória consciente perde assim em extensão o que ganha em força de penetração: no início ela tinha a facilidade da memória dos sonhos, mas isso porque realmente ela sonhava. Para realçar esse aspecto da memória infantil, ou seu pouco desenvolvimento intelectual, Bergson (ibid.) contará um fato, no mínimo, jocoso:

Observa-se a aliás esse mesmo exagero da memória espontânea entre homens cujo desenvolvimento intelectual não ultrapassa em muito o da infância. Um missionário, após ter pregado um longo sermão a selvagens da África, viu um deles repeti-lo textualmente, com os mesmos gestos, de uma ponta à outra.

Pelo menos, dessas passagens de Bergson colheremos informações valiosas que desenvolveremos em ideias nos capítulos seguintes; sejam elas: a criança lembra “com menos discernimento”, ou sua lembrança não tem juízo; a memória consciente infantil é extensiva, ou sua memória está no (des)limite; o desenvolvimento intelectual da criança e do selvagem está emparelhado, ou a criança é um selvagem, e vice-versa.