Vai-se introduzir o conceito de espaço topológico conexo. A ideia que está subjacente é fácil de perceber: um espaço topológico é conexo se estiver todo num só bocado; caso contrário é desconexo.
Definição 2.4.1 Seja E um espaço topológico. Diz-se que E é conexo
se os únicos sub-conjuntos de E simultaneamente abertos e fechados forem E e ∅. Caso contrário, diz-se que E é desconexo.
Exemplo 2.4.1 É claro que um espaço topológico grosseiro é conexo e
que um espaço topológico discreto com mais do que um ponto é desco- nexo.
5Mais geralmente, se X for um conjunto infinito não numerável e se, para cada
x∈ X, Extiver algum aberto distinto de ∅ e de Ex, então
Q
x∈XExnão é 1-numerável.
Também se pode mostrar que se X for numerável e se cada Exfor metrizável, então
Q
Exemplo 2.4.2 Os sub-espaços topológicos conexos de R (relativamen-
te à topologia usual) são os intervalos.6 De facto, seja I um intervalo
não vazio de R e seja A ⊂ I uma parte não vazia de I que seja simul- taneamente aberta e fechada em I; vai-se mostrar que A = I. Fixe-se a∈ Ae seja b ∈ I; quer-se provar que b ∈ A. Vai-se supor que a < b; o caso em que a > b é análogo. Seja s = sup A ∩ [a, b]; visto que A é um fechado de I e [a, b] ⊂ I, A ∩ [a, b] é um fechado de [a, b], pelo que s∈ A ∩ [a, b]e, em particular, s ∈ A. Se se tivesse s < b, então ter-se-ia s =inf(I \ A) ∩ [s, b]; como I \ A é um fechado de I, (I \ A) ∩ [s, b] é um fechado de [s, b], pelo que s ∈ (I \ A) ∩ [s, b] e, em particular, s ∈ I \ A, o que é absurdo. Logo, s = b e, visto que s ∈ A, b ∈ A.
Reciprocamente, se A ⊂ R não for um intervalo, então existem a1 e
a2em A e existe algum x ∈ R\A tais que a1 < x < a2. Logo, A∩]−∞, x[
é um aberto de A que não é vazio (pois contém a1) nem igual a A (pois
não contém a2). Consequentemente, A é desconexo.
É importante observar que a noção de «sub-espaço conexo» é absoluta e não relativa.
A fim de demonstrar resultados relativos a espaços topológicos co- nexos, é conveniente dispor-se do seguinte resultado:
Lema 2.4.1
Considere-se em{0, 1} a topologia usual. Um espaço topológico E é conexo se e só se nenhuma função contínua de E em{0, 1} for sobrejectiva.
Demonstração: Se existir uma função f: E −→ {0, 1} contínua e sobre- jectiva, então o conjunto f−1({0}) é aberto (pois {0} é um aberto de {0, 1}),
fechado (pois {0} é um fechado de {0, 1}), distinto de E (pois afirmar que f−1({0}) = E é afirmar que f toma sempre o valor 0) e distinto de ∅ (pois afirmar que f−1({0}) = E é afirmar que f toma sempre o valor 1).
Reciprocamente, se E for desconexo então seja A uma parte de E simultaneamente aberta, fechada, distinta de E e distinta de ∅. Então a função E −→ {0, 1} x 0 se x ∈ A 1 caso contrário é contínua e sobrejectiva.
6Convém ser-se claro quanto ao significado deste termo. Um intervalo de R é um
conjunto I ⊂ R tal que, se a, b, c ∈ R forem tais que a < b < c e que a, c ∈ I, então b∈ I.
Proposição 2.4.1
Sejam E1 e E2 espaços topológicos e f : E1 −→ E2 uma função contínua.
Se E1 for conexo, então f(E1)é um sub-espaço conexo de E2.
Demonstração: Se g: f(E1)−→{0, 1} for uma função contínua, quer-se
mostrar que não é sobrejectiva. Para tal, basta ver que se g fosse sobrejectiva então g ◦ f também o seria, pelo que E1 seria desconexo.
Veja-se que esta proposição é uma generalização do teorema dos valores intermédios. De facto, este teorema pode ser enunciado do seguinte modo: se I é um intervalo de R e f: I −→ R é uma função contínua, então f(I) é um intervalo de R. Mas, pelo exemplo 2.4.2, os intervalos de R são os sub-espaços conexos de R.
Exemplo 2.4.3 A circunferência unitária S1 é conexa pois função
R −→ R2
x (cos(x), sen(x))
é contínua e, como R é conexo, a imagem de f (que é S1) é conexa.
Proposição 2.4.2
Sejam E um espaço topológico e B, C ⊂ E. Se C for um sub-espaço topológico conexo de E e se C ⊂ B ⊂ C, então B é conexo.
Demonstração: Para se demonstrar esta proposição, vai-se aplicar o corolário 2.2.1 ao sub-espaço topológico B de E e ao conjunto C ⊂ B. Veja-se que, em B, C = B. De facto, se F for um fechado de B que contém C, então F = F∗ ∩ B para algum fechado F∗ de E. Mas, uma
vez que F∗é um fechado de E e que C ⊂ F ⊂ F∗, C ⊂ F∗; em particular,
B ⊂ F∗, pelo que, em B, o único fechado que contém C é B, i. e. em B
tem-se C = B.
Se f: B −→ {0, 1} for contínua, então, pelo corolário 2.2.1,
f(B) = f C ⊂ f(C). (2.3)
Mas, uma vez que C é conexo, f(C) = {0} ou f(C) = {1}. Em qualquer dos casos f(C) é um conjunto formado por um único ponto. Deduz-se então de (2.3) que f não é sobrejectiva.
Proposição 2.4.3
Sejam E um espaço topológico e (Cλ)λ∈Λ uma família de sub-espaços
conexos de E. SeT
λ∈ΛCλ 6= ∅, então
S
λ∈ΛCλ é um sub-espaço conexo
Demonstração: Seja f: Sλ∈ΛCλ −→{0, 1} uma função contínua e seja
a∈T
λ∈ΛCλ. Então, para cada λ ∈ Λ, f(Cλ) ={f(a)}, pois Cλé conexo.
Como isto acontece para cada λ ∈ Λ,
f [
λ∈Λ
Cλ
!
={f(a)}.
Isto mostra que, por exemplo, o conjunto dos pontos do plano que se situam em alguma recta que passa pela origem e por algum outro ponto com ambas as coordenadas inteiras forma um sub-espaço conexo de R2, pois cada uma daquelas rectas é conexa (por ser homeomorfa
a R) e a origem pertence à intersecção.
Teorema 2.4.1
Seja (Ei)i∈I uma família de espaços topológicos não vazios. Então
Q
i∈IEié conexo se e só se cada Eifor conexo.
Demonstração: SeQi∈IEi for conexo e se j ∈ I, então, uma vez que a
projecção πj:
Q
i∈IEi −→ Ej é contínua e sobrejectiva, Ejé conexo, pela
proposição 2.4.1.
Reciprocamente, se cada Eifor conexo, seja f:
Q
i∈IEi −→{0, 1} uma
função contínua. Quer-se mostrar que f é constante. Fixe-se (ai)i∈I ∈
Q
i∈IEi.
Para cada j ∈ I, considere-se a função ιj: Ej −→
Q
i∈IEi assim de-
finida: se a ∈ Ej, então ιj(a) = (xi)i∈I, onde xj = a e, se i ∈ I \ {j},
xi = ai. Então f ◦ ιj: Ej −→{0, 1} é uma função contínua. Como Ej é
conexo, trata-se de uma função constante e toma então sempre o valor f(ιj(aj)) = f ((ai)i∈I). Logo, se (xi)i∈Idiferir de (ai)i∈Inum único índice
tem-se f ((xi)i∈I) = f ((ai)i∈I).
Seja D o conjunto dos elementos (xi)i∈I ∈
Q
i∈IEi tais que xi = ai
excepto eventualmente num número finito de pontos. A partir do que foi visto atrás pode-se mostrar por indução que f|D é constante. Mas D
é denso emQi∈IEi, pois se (yi)i∈I ∈
Q
i∈IEie V é vizinhança de (yi)i∈I,
então V contém algum aberto da forma Qi∈IAi onde cada Ai é um
aberto de Ei que contém yie existe algum conjunto finito F ⊂ I tal que
Ai= Ei se i ∈ I \ F. Mas então se definir (xi)i∈I por
xi= yi se i ∈ F ai caso contrário, então (xi)i∈I ∈ D ∩ Q i∈IAi⊂ D ∩ V.
Finalmente, como f é contínua e f|D é constante, decorre do corolá-
rio 2.2.1 que f|D é constante, ou seja, que f é constante.
Exemplo 2.4.4 Por exemplo, considere-se o plano projectivo P2(R) e a
função
f : R2 −→ P
2(R)
(x, y) π(x, y, 1).
Como R2é conexo (pois, conforme foi visto no exemplo 2.3.1, a topologia
usual em R2 coincide com a topologia produto) e a função f é contínua,
f(R2)é um sub-espaço conexo de P2(R), pela proposição 2.4.1. Uma vez
que foi visto no exemplo 2.2.21 que f(R2)é uma parte densa de P 2(R),
deduz-se da proposição 2.4.2 que o plano projectivo é conexo.
No início desta secção, na página 99, foi dito que a ideia subjacente ao conceito de espaço topológico conexo é que o espaço está todo num só bocado. Vai-se agora formalizar o que se entende aqui por «bocado».
Definição 2.4.2 Se E é um espaço topológico e x ∈ E, a componente
conexa de x é a reunião de todas as partes conexas de E que contêm x.
Exemplo 2.4.5 Num espaço topológico conexo, a componente conexa
de qualquer ponto é o espaço todo.
Exemplo 2.4.6 Se se considerar em R \ Z a topologia usual, então a
componente conexa de1/2é o intervalo ]0, 1[. De facto, um sub-espaço
conexo de R \ Z que contenha 1/2só pode ser um intervalo contido em
]0, 1[que contenha1/2. A reunião de todos estes intervalos é ]0, 1[.
Deduz-se da proposição 2.4.3 que a componente conexa de um ponto é um conexo e deduz-se da proposição 2.4.2 que é um fechado.
Definição 2.4.3 Diz-se que um espaço topológico E é totalmente desco-
nexose tiver mais do que um ponto e se a componente conexa de cada
x ∈ Efor o conjunto {x}.
Exemplo 2.4.7 Qualquer espaço topológico discreto com mais do que
um ponto é totalmente desconexo.
Exemplo 2.4.8 Um sub-espaço de R com mais do que um ponto é
totalmente desconexo se e só não contiver intervalos com mais do que um ponto. Em particular, Q e R \ Q são totalmente desconexos. Além disso, foi visto na página 49 que o conjunto de Cantor não contém intervalos com mais do que um ponto, pelo que também é totalmente desconexo.
Definição 2.4.4 Seja E um espaço topológico. Designa-se por caminho
(ou arco) uma função contínua γ: [0, 1] −→ E. Se a = γ(0) e se b = γ(1), diz-se que o caminho γ une o ponto a ao ponto b. A imagem de γ designa-se por traço de γ. Diz-se que o espaço topológico E é conexo por
arcosse, dados dois pontos a, b ∈ E, existir um caminho em E que una
o ponto a ao ponto b.
Exemplo 2.4.9 Qualquer sub-espaço convexo C de um espaço vectorial
normado é conexo por arcos. Se a, b ∈ C, basta considerar o caminho
[0, 1] −→ C
t a + t(b − a).
Por outro lado, observe-se que se E for um espaço topológico e se se definir em E a relação binária
aC b ⇐⇒def. existe um caminho em E que une a a b então C é mesmo uma relação de equivalência:
reflexividade: se a ∈ E, basta considerar a função f: [0, 1] −→ E que toma sempre o valor a;
simetria: se f: [0, 1] −→ E é um caminho em E que une um ponto a a um ponto b, então
[0, 1] −→ E
t f(1 − t)
é um caminho em E que une b a a;
transitividade: se f1: [0, 1]−→ Eé um caminho em E que une um ponto
aa um ponto b e se f2: [0, 1]−→ Eé um caminho em E que une o
ponto b a um ponto c, então
[0, 1] −→ E
t
f1(2t) se t 61/2
f2(2t − 1) caso contrário
é um caminho em E que une o ponto a ao ponto c.
Consequentemente, para que um espaço topológico E seja conexo por arcos basta que exista um ponto p ∈ E que possa ser unido a qualquer outro ponto de E por um caminho.
As classes de equivalência de C designam-se por componentes cone-
Proposição 2.4.4
Qualquer espaço topológico conexo por arcos é conexo.
Demonstração: Seja E o espaço topológico em questão, que se pode supor não vazio. Fixe-se p ∈ E e seja, para cada q ∈ E, γq um caminho
que una o ponto p ao ponto q. Então E é a reunião dos traços de todos os γq, os quais são conexos, pela proposição 2.4.1. Além disso, o ponto p
pertence ao traço de todos os caminhos γq, pelo que E é conexo, pela
proposição 2.4.3.
Foi visto no exemplo 2.4.4 que o plano projectivo é conexo. Pode-se chegar à mesma conclusão mostrando que R3 \ {0} é conexo por ar-
cos e, consequentemente, conexo. Em seguida basta observar que a função π: R3\ {0} −→ P
2(R) é contínua e sobrejectiva e aplicar a propo-
sição 2.4.1.