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ENTRE O REAL E O IMAGINÁRIO

2.3. Espaços da espera

À semelhança de outras artes, a Literatura apropria-se dos espaços do mundo empírico, dependendo a sua representação do imaginário geográfico de cada autor. Na produção ficcional de Julien Gracq, a oscilação entre real e imaginário irá reenviar as entidades ficcionais para fora de um tempo e espaço reais, aliados ao signo da espera que caracteriza o seu percurso de existência. À indefinição da temporalidade, juntar-se-á a indefinição do espaço, ainda que este corresponda a uma realidade geográfica precisa. É o próprio autor que o confirma quando diz:

[…] Si j’ai écrit sur la Bretagne je ne crois pas qu’il y ait des sites qui seraient localisables en Bretagne. C’est toujours recomposé à partir d’éléments divers qui viennent de cette région265.

Apesar de solidária com a realidade, a disposição dos lugares necessários à acção perderá o seu carácter convencional através da transformação da linguagem referente ao real em linguagem do imaginário. É dessa forma que, de acordo com Marie Francis266,

Gracq procede à desrealização da região de Ardennes, esse espaço que sempre o fascinou, e que utilizou para contextualizar a intriga de Un balcon en forêt:

C’est un pays qui m’a frappé. C’est un pays qui est pour moi légendaire, fabuleux, féérique […]. Quant au livre, il a été écrit à partir d’une reconnaissance très rapide de la forêt d’Ardenne […]. Je crois qu’on saisit très rapidement l’esprit ou l’âme d’un paysage. Il suffit de quelques heures de solitude, de promenade. En fait, on s’en imprègne267.

Por sua vez, o carácter “lendário” e “feérico” que assume o tempo, parece reenviar para o domínio da eternidade. A floresta de Falizes, “forêt de conte” (BF, II: 9), “magique” (BF, II: 86), apresen- ta-se assim com o estatuto de um conto de fadas, comprovado pela forma como o herói a irá percepcionar, através “[d’] un silence de forêt de conte”. Como nas lendas, a sua vida decorrerá envolta numa atmosfera hesitante entre a realidade e o sonho. A casa-forte onde vivem os soldados, designada por “maisonnette de fées” (BF, II: 12), e o Inverno, com a sua “neige un peu fée” (BF, II: 55), farão apelo ao maravilhoso268, no seu modo de reenviar para o carácter 265 Entrevista de Julien Gracq concedida a Gilbert Ernst, in Julien Gracq, Les

Cahiers de L’Herne, Op. cit., p. 211.

266 Marie Francis, Forme et signification de l’attente dans l’oeuvre romanesque de Julien

Gracq, Op. cit., p. 213.

267 Entrevista de Julien Gracq concedida a Gilbert Ernst, in Julien Gracq, Les

Cahiers de L’Herne, Op. cit., pp. 215-216.

268 Não é de estranhar que a sua personagem, “grand lecteur d’Edgar Poe”,

mítico do tempo, reforçado, por sua vez, pela atitude dos heróis, mergulhados na sua longa espera da revelação. Dessa forma, o olhar subjectivo do autor irá transfigurar o real, conferindo aos lugares da espera uma atmosfera de irrealidade. Como afirma Marie Francis:

[…] l’espace de l’attente gracquienne est un univers où le réel est doublé de l’imaginaire, où ces deux contraires sont unis dans une totalité sans fissure269.

Se em Gracq, o real e o imaginário se apresentam como dois mundos complementares, os espaços particulares da espera orde- nar-se-ão relativamente a uma fronteira que irá separar os heróis do espaço conhecido do “[d’] un paysage entièrement inconnu” (CA, I: 73), espaços esses orientados “vers un gouffre d’où nul retour ne serait plus possible” (CA, I: 47). Esses lugares impor-se- -ão às entidades ficcionais como parte integrante e incontornável dos seus percursos pela aventura. Éric Faye, que se mostra sensível a esta perspectiva, verá esses “espaços da espera” como a metáfora do tempo que lhes resta “avant d’obtenir rendez-vous auprès du destin”270 – o de Aldo em relação ao Farghestan e o de Grange à

fronteira belga.

Gracq virá assim associar à categoria do espaço (na sua quali- dade de circunstância das acções narradas), a temática da espera, traduzida, na sua ficção, pela grandeza dos lugares, permitindo evocar, em termos de tempo, a própria eternidade. Aldo tem diante de si o mar de Syrtes e Grange a paisagem das Ardenas. Por sua vez, Albert em Argol observa “les bois de Storrvan […] cette mer d’arbres […] jusqu’aux limites de l’horizon” (CA, I: 60-61), enquanto Gérard, em Un beau ténébreux, procura, ao olhar para a vastidão do mar, a resposta para as suas dúvidas:

J’aime cet instant où l’homme se présente à la mer, droit, profilé, dans une soudaine et hautaine gravité, un rassemblement de sa force, de son

269 Marie Francis, Forme et signification de l’attente dans l’oeuvre romanesque de Julien

Gracq, Op. cit., p. 214.

humanité devant l’élément, puis s’incline tout droit comme oscille une planche, avant la détente du bond. (BT, I: 130)

Inerente a esta temática, surge a da contemplação de novos lugares, associada a uma deliberada atitude de espera pelo grande acontecimento da revelação de uma outra realidade. A irresistível atracção que parece orientar a sua contemplação, revela-se uma constante no traçado do imaginário do autor, requerendo, por isso, a sua abordagem.

Em Le Rivage des Syrtes, o percurso de Aldo irá orientar- -se precisamente em função da contemplação desse horizonte desconhecido e ao mesmo tempo interdito, representado, no espaço romanesco, pelo Farghestan. Será o fascínio desse lugar misterioso que o fará permanecer um objecto do desejo, como uma realidade (ainda) por desvendar, numa emblemática alusão à “terra prometida”:

Très au-delà, prodigieux d’éloignement derrière cet interdit magique, s’étendaient les espaces inconnus du Farghestan, serrés comme une terre sainte. (RS, I: 577)

Percorrendo a vastidão dos espaços, os heróis irão contemplar as novas paisagens, como se delas viesse a resposta para o seu destino. É o próprio autor quem confessa nas suas Lettrines, “l’éminente dignité” de quem tem por hábito contemplar as paisagens, numa deliberada tentativa de união cósmica entre o eu e o mundo: “Tant de mains pour transformer ce monde, et si peu de regards pour le contempler”. (LT, II: 210)

É neste sentido que ao observar a paisagem de Syrtes, Aldo irá sentir a eminência de uma presença a afirmar-se no vazio do horizonte:

Je rivais mes yeux à cette mer vide, où chaque vague […] semblait s’obstiner à creuser encore l’absence de toute trace, dans le geste toujours inachevé de l’effacement pur. J’attendais, sans me le dire, un signal qui puiserait dans cette attente démesurée la confirmation d’un prodige. Je rêvais d’une voile naissant du vide de la mer. (RS, I: 581)

A insistência com que o seu olhar pretende abarcar o espaço que o envolve parece impor-se no sentido de colmatar o vazio da sua própria existência, procurando, na indefinição do horizonte, “un signal” que venha preenchê-la e conferir-lhe sentido.

Em Au château d’Argol, essa mesma atitude repetir-se-á no momento em que as três personagens irão desafiar o horizonte à procura da “confirmation d’un prodige”, para retomar a expressão de Aldo, decorrente da sua atitude de espera:

[…] ils souriaient tous les trois d’un sourire inconnu aux hommes en affrontant l’horizon incalculable. (CA, I: 46)

Será, pois, o horizonte, essa linha imaginária que nada parece dar a ver, que irá desencadear, no sujeito que a percepciona, reflexos da sua própria imaginação. Para além do visível, ser-lhe-á permitido aceder ao “lointain indéfiniment approfondi [de] la perspective [du] songe” (RS, I: 597), numa clara referência à união entre real e imaginário.

A vastidão do espaço abrangido pelo narrador de Un balcon en forêt quando afirma “devant soi, on avait les bois jusqu’à l’horizon” (BF, II: 11), parece desdobrar-se, metaforicamente, num longo período temporal que, em Au château d’Argol, encontrará a sua expressão na inalterabilidade do próprio espaço, traduzida pela forma como este é percepcionado por Albert:

Au milieu d’un trouble grandissant, dans une exténuante attente, il arpenta les salles et les terrasses, interrogeant vainement un horizon qui conservait tout entière sa sauvage immobilité. (CA, I: 62)

Também em Le Rivage des Syrtes, o mar parece não ter mudado volvidos trezentos anos desde a declaração de guerra entre os dois países, sendo a vacuidade desse lugar a suscitar no herói a predisposição para a aventura. Apesar da imutabilidade do tempo e do espaço, a morte irá surgir por detrás da linha do horizonte onde a emergência sucessiva de indícios e de sinais terá como função suscitar o mistério, multiplicando os seus efeitos anunciadores e assim provocando a inquietação. Efeitos inscritos no espaço que

as entidades ficcionais apreendem no processo de observação e de contemplação inerente ao seu percurso geográfico pelos espaços da espera.

Na produção de Gracq, “on regarde toujours” (PQ, II: 456), tornando-se, assim, o olhar um motivo relevante no funcionamento de um herói inactivo que mais não faz do que perscrutar esses indícios e esses sinais que lhe indicam uma outra realidade, um outro mundo possível.

Semelhante a Perceval, a busca do herói de Gracq será, também ela numa primeira fase, visual, uma vez que, como observa Marie Francis271, o «cálice sagrado» é inicialmente apreendido pelo olhar.

É, aliás, o que parece aflorar na questão colocada por Allan: De quels yeux autres que ces yeux de chair pourrais-je jamais appréhender la merveille?. (BT, I: 148)

Nessa perspectiva, o olhar parece determinar a essência da espera de cada um dos heróis. A acuidade visual de Aldo que, a todo o momento, parece sondar o universo visível e invisível através do seu “regard neuf ” (RS, I: 580), virá opor-se à semi-cegueira de “l’oeil myope” (RS, I: 789) de Marino. Este, com efeito, desde o início de

Le Rivage des Syrtes mostra-se adverso a qualquer mudança, como

traduz o narrador, nele reconhecendo a incapacidade de abranger as coisas longínquas, “pas de goût aux choses lointaines et douteuses” (RS, I: 790) e, assim, o seu “oeil [...] fixe” (RS, I: 795), tornando-o prisioneiro da banalidade em que insiste em continuar a viver272. Por

sua vez, Vanessa sentirá a necessidade de observar, mas também a contrária, de ser observada, de “vivre sous un regard” (RS, I: 647):

271 Marie Francis, Forme et signification de l’attente dans l’oeuvre romanesque de Julien

Gracq, Op. cit., p. 77.

272 Numa declarada vontade de manter a existência monótona da cidade

de Orsenna, opondo-se a qualquer tentativa de mudança, Marino será comparado à bruma: “Marino, l’Amirauté, reculaient dans les brumes” (RS, I: 734-735). A própria descrição de Marino tenderá a sublinhar a sua profunda fixação na cidade: “La lourde silhouette dans son immobilité formidable, s’engourdissait, se pétrifiait sous mon regard” (RS, I: 792).

Oh! Oui, regarder. Être regardée. Mais de tous ses yeux. Mais pour de bon. Être en présence…. (RS, I: 700)

A postura do herói de Un beau ténébreux em relação à “banda Straight” irá adquirir uma dimensão maior quando passar a ser objecto da atenção do grupo de veraneantes. Controlados todos os seus passos, observados todos os seus gestos, Allan tornar-se-á, rapidamente, o centro das atenções no Hôtel des Vagues, o ponto de orientação da espera de todo o grupo, ponto este a que Gracq, no seu ensaio consagrado a Breton se refere nos seguintes termos: “celui qui tient «tous les fils» dans sa main” (AB, I: 406). Ele próprio irá reconhecer essa importância, indispensável, por sua vez, à sua própria atitude de espera pela revelação:

[…] une exigence obscure de s’accomplir, de ne pas laisser les choses retomber – de hausser pour toujours le regard de ses fidèles, – de se consumer dans leur bouche à jamais affamée en un brûlant, un éternel aliment […]. (BT, I: 216)

Na sua função de despertar as consciências adormecidas, os heróis de Gracq tornar-se-ão o centro da espera, os próprios «espaços da espera» atraíndo sobre si todos os olhares indecisos. Portadores da chave para a resolução do mistério que a linha do horizonte mantém velado, Albert, Allan, Aldo ou Grange irão converter a sua busca na iniciação de todo um grupo, ou até mesmo de um povo inteiro, justificando a sua denominação de “poètes de l’événement” (RS, I: 775). A sua atitude de espera apresenta-se, na perspectiva de Francis, como uma mensagem poética criadora e que será reveladora do imaginário de Gracq, susceptível de associar “la terreur à demi religieuse qui les fait plus grands que nature [...] à la révélation, dont ils sont le véhicule […]” (RS, I: 730).

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