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Espaços públicos em Leipzig: entre a política e a economia

A CIDADE CONTEMPORÂNEA: QUEM PRECISA DO CENTRO?

3.2 REGRESSO AO CENTRO DA CIDADE

3.2.3 Espaços públicos em Leipzig: entre a política e a economia

A cidade de Leipzig tornou-se um paradigma do leste alemão. Seu protagonismo no período da chamada revolução pacífica que resultou em 1989 na abertura das fronteiras da ex- Alemanha Oriental, com o conseqüente desmantelamento do Estado socialista e a reunificação com a então Alemanha Ocidental, foi seguido por uma realidade não necessariamente promissora da entrada em um sistema econômico de livre mercado: a grande procura do capital privado do oeste alemão em aproveitar as ótimas condições para investimento em uma terra fértil, a permissividade inicial do planejamento urbano oficial e um mercado consumidor vulnerável e ávido por novidades. Foi em Leipzig que a suburbanização residencial e terciária, um dos efeitos urbanos imediatos desta nova fase, tomou contornos fortes, concomitante com o abandono das áreas centrais. E foi também em Leipzig onde pudemos verificar como o poder público conseguiu, posteriormente, retomar o controle do processo de planejamento urbano e regional, fortalecendo o centro da cidade e evitando as deseconomias causadas por uma suburbanização excessiva que não interessava à

179 cidade – muito embora saibamos que a municipalidade não foi a única responsável pelo “retorno” ao centro.

Para Lütke Daldrup (2005, p. 6), ter um centro vivo e dinâmico é uma condição importante para o desenvolvimento urbano de Leipzig. É esta a situação atual: apesar de ainda existirem shopping centers isolados “no meio do nada”, fora da cidade, hoje as atividades comerciais de maior peso acontecem nas áreas centrais, urbanisticamente integrados à cidade. A dinamização do centro é resultado também de uma maior diversidade de usos, como cultura e educação, com o Museu de Belas Artes e a ampliação do Campus Universitário.

Não podemos afirmar, no entanto, que a configuração atual do centro da cidade deva ser creditada apenas à atuação do poder público e suas políticas de planejamento urbano para, entre outros, atraírem investimentos privados. Certamente passou a existir interesse da sociedade como um todo, ou melhor, de diversos grupos sociais influentes, em “voltar” para o centro. Isto se traduziu em movimentos do capital privado para atender a esta demanda109, de outra forma não teria havido os altos investimentos direcionados para o centro a partir do final da década de 90. Além disso, sob o pano de fundo do decréscimo demográfico urbano – o encolhimento urbano –, fenômeno que ficou patente logo nos primeiros anos daquela década, a manutenção de uma estrutura urbana dispersa no território se mostrou impraticável a longo prazo.

Mas é possível afirmar que o centro da cidade desempenha hoje um papel preponderante na vida social e política da cidade, ou é apenas um importante espaço para a economia? Retomamos as considerações de May (2005, p. 184), para quem historicamente o espaço público localiza-se sempre entre os campos da política e da economia. A depender do contexto, há uma alternância entre fases “quentes”, quando a política se sobressai, com fases “frias” dominadas pela economia. A partir disso, podemos identificar o outono de 1989 como um período quente para os espaços públicos de Leipzig: momento “efervescente”, dominado por idéias e ações políticas de enfrentamento e de coragem. Fases frias, sob o comando da economia, não acontecem necessariamente na sociedade capitalista apenas. Mas no capitalismo elas incidem aparentemente de forma mais explícita, quando o espaço público se torna o lugar da economia: a vida pública está atravessada pela idéia de consumo, servindo à propaganda de mercadorias. Ou seja, nestes casos, a dimensão política do espaço público recua a um segundo plano, mantendo-o em fases ditas calmas.

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Da mesma forma que houve uma demanda da sociedade urbana nos primeiros anos pós-reunificação por um novo tipo de consumo (não existente anteriormente) que, por motivos já demonstrados, naquele momento não pôde ser atendido nas áreas centrais, mas apenas através dos shopping centers suburbanos.

180 Seguindo esta lógica, observamos que, com o “ressurgimento” do centro da cidade de Leipzig a partir dos investimentos do grande comércio (as cadeias de lojas de departamentos, galerias comerciais e cinemas multiplex) foi orientado para o consumo. Este é, de fato, o grande motor das transformações urbanas no centro, apesar dos investimentos públicos para diversificação de atividades, como na cultura, por exemplo.

É bem verdade que a partir daí emergem formas de resistência a esta condição – e elas são ações políticas. Ações de crítica e questionamento político em espaços ditados pelo e para o consumo. Um dos exemplos é, conforme descreve Steets (2005), uma situação ocorrida na tarde de um domingo de maio de 2004, na passarela de pedestres denominada popularmente

Blauer Wunder (“milagre azul”). Esta única passarela da cidade atravessava várias vias de

tráfego do anel viário central, construída em 1973 e pintada originalmente na cor azul, daí seu nome popular. O anúncio de sua demolição por parte da municipalidade provocou indignação em muitos moradores da cidade, por ser a passarela um importante elemento referencial na paisagem urbana. Um grupo de artistas promoveu então, em cooperação com uma rádio local independente, um programa especial com bandas e DJ's locais ao longo de duas horas naquele domingo, convocando seus ouvintes a comparecerem à passarela naquele horário e participarem de um ato coletivo denominado Radiohörn auf'm Blauen Wunder (“Ouvir rádio no Milagre Azul”). Por volta de 50 pessoas se reuniram na passarela com aparelhos de rádio colocados em pontos estratégicos, todos sintonizados na mesma emissora. As pessoas conversavam descontraidamente em pequenos grupos, algumas sentavam no chão com garrafas de cerveja, outras dançavam, enquanto passantes ficavam sem entender o motivo daquela situação inusitada. A passarela deixava de ser um espaço funcional, para passagem e circulação de pessoas, e havia se transformado naquelas duas horas em um espaço de permanência – ainda que em um ato efêmero. A ação teve a intenção de provocar nos transeuntes e na opinião pública outra percepção do espaço urbano, embora não houvesse nenhum tipo de cartaz ou faixa de protesto, muito menos discurso com palavras inflamadas: a ação era muito mais performática (Steets, 2005, p. 108). Para a autora, com sua inspiração quase situacionista e uma ênfase no processo – e não no resultado –, a performance na passarela é um exemplo de “crítica política” que, na contemporaneidade, não se revela mais na elaboração de um contraponto idealizado de um futuro que nunca será alcançado, como na utopia modernista, mas se localiza muito mais no cotidiano e sob a forma de “micro-políticas espaciais”.

Ato semelhante aconteceu em 22 de junho de 2003: uma espécie de “balé” coletivo produziu desorientação e surpresa nos usuários da estação ferroviária central, como descreve o Atlas de

181 Protesto de Leipzig (Krehl et al., 2005). Tratava-se do “LIGNA-Radio-Ballet”, ato performático coletivo em que centenas de pessoas, dispersas em toda a Hauptbahnhof, ouviam através de pequenos aparelhos de rádio ou fones de ouvido instruções, ditadas em um programa de uma rádio independente local, sobre gestos e ações a serem executados coletivamente nos diversos espaços da estação, como o hall principal e corredores. Dentre os gestos, estavam alguns supostamente “permitidos” e outros “proibidos” como, por exemplo, estender o braço a outra pessoa com a mão na posição vertical, como se desejasse cumprimentá-la, ou com a mão estendida horizontalmente, com a palma para cima, indicando talvez o ato de pedir uma esmola. Como em uma dança coletiva, as centenas de pessoas executavam os mesmos gestos e comportavam-se da mesma maneira, deixando desorientados e inseguros os passantes e seguranças da estação. Esta performance coletiva, promovida pelo grupo de artistas LIGNA e executadas por centenas de “não-artistas”, explicava-se uma reação ao crescente controle privado dos espaços públicos através de câmeras de vigilância, como acontece na Hauptbahnhof, onde estão instaladas 186 destas câmeras110.

De fato, o caso da Hauptbahnhof de Leipzig, com seus espaços públicos que passaram a ser geridos pelo capital privado a partir da instalação do shopping center Promenade, reflete a tensão entre economia e política, assim como entre público e privado, nas cidades contemporâneas. Um grande volume de investimentos privados fortaleceu economicamente o centro da cidade, como vimos. Por outro lado, porém, podemos afirmar que esta é a expressão de uma crescente subordinação da política ao consumo, traduzido na transformação de um espaço público – a estação ferroviária central, lugar extremamente representativo para a vida social e cultural da cidade – em um espaço vigiado e controlado. O controle cada vez maior do espaço público elimina a produção de elementos de surpresa no cotidiano urbano – surpresa que o Balé do Rádio procurou trazer de volta para os usuários da estação (Krehl et

al., 2005, p. 132). Para o grupo LIGNA, o espaço é público quando ele é incontrolável,

contendo a imprevisibilidade. Todo espaço controlado torna-se, de alguma forma, privado. Assim,

“o Balé de Rádio é uma estratégia estética que subverte a normatização do espaço e

resulta, ao mesmo tempo, em uma modificação real do mesmo. Este é o seu caráter político. Os gestos não são executados de forma simbólica, não representam nada, não são teatrais. Mas, como os gestos reprimidos e esquecidos voltam como fantasmas, em massa, ao espaço controlado, eles fazem seu protesto contra essa repressão de uma maneira direta e visível” (Krehl et al., 2005, p. 132).

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