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2.2 Psicogênese da língua escrita

2.2.1 Especificidades entre alfabetização e letramento

Segundo Soares (2004), em meados dos anos 1980, o termo letramento foi introduzido na linguagem da educação e nas ciências linguísticas, e surgiu da necessidade de nomear comportamentos e práticas sociais na área da leitura e da escrita. Esses comportamentos apareceram para responder às exigências que a vida social e as atividades profissionais fazem continuamente da leitura e da escrita.

A autora afirma que o termo letramento originou-se a partir das tentativas de ampliar o significado de alfabetização, ou seja, quando se buscou compreender os novos sentidos e ideias relacionados à alfabetização, tais como a necessidade do uso da leitura e da escrita em situações sociais. Portanto, segundo Soares (2004, p. 18) letramento é “[...] o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever; o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita”. Dessa forma, considera-se letrado aquele que não somente lê e escreve, mas aquele que exerce as práticas sociais de leitura e escrita.

Tfouni (1995, p. 20) enfoca os aspectos sócio-históricos no processo de aquisição da escrita: “[...] enquanto a alfabetização se ocupa da aquisição da escrita por um indivíduo, ou grupo de indivíduos, o letramento focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição de uma sociedade”. Ao focalizar os aspectos sócio-históricos, a autora chama a atenção para o letramento como um fenômeno cultural que se desenvolve através de práticas sociais ligadas à leitura e escrita e às exigências sociais do uso dessas competências.

Soares (2003, p. 3) apresenta os seguintes requisitos como fundamentais para inserção do indivíduo no universo letrado: “[...] ele precisa apropriar-se do hábito de buscar um jornal para ler, de frequentar revistarias, livrarias, e, com esse convívio efetivo com a leitura, apropriar-se do sistema de escrita”. A autora destaca que é necessário saber fazer uso e envolver-se nas atividades relacionadas à leitura e à escrita para que ocorra essa inserção no universo do letramento.

Da análise do exposto, compreende-se que, na perspectiva do letramento, a prática da escrita traz implícitas consequências sociais, políticas, econômicas, entre outras, uma vez que o sujeito letrado faz uso da leitura e escrita para os mais diversos fins de forma competente.

A partir da abordagem do conceito de letramento, surge a necessidade da análise de sua relação com o conceito de alfabetização, já que, conforme Soares (2003), o termo letramento teve origem numa ampliação do conceito de alfabetização. Para essa autora,

alfabetização e letramento têm sido frequentemente confundidos, mas ela reforça a necessidade de se fazer a distinção:

A conveniência, porém, de conservar os dois termos parece-me estar em que, embora designem processos interdependentes, indissociáveis e simultâneos, são processos de natureza fundamentalmente diferente, envolvendo conhecimentos, habilidades e competências específicos, que implicam formas de aprendizagem diferenciadas e, consequentemente, procedimentos diferenciados de ensino (SOARES, 2003a, p. 15).

Cabe aqui conceber a alfabetização em sua especificidade, que, para Soares (2003), se constitui como processo que envolve consciência fonológica, compreensão da relação entre fonemas e grafemas, habilidades de codificação e decodificação, assim como conhecimento dos processos de tradução da forma sonora para a escrita.

Segundo Soares (2003), o enraizamento dos conceitos de alfabetização e letramento no Brasil se explica a partir da análise de informações dos censos demográficos, as quais são comuns expressões como iletrados, analfabetos funcionais e alfabetização funcional. Quando analisamos o conceito de alfabetização funcional, que considera não só o aprendizado da leitura e da escrita, mas também a capacidade de fazer uso social dessas habilidades, observamos a extensão do conceito de alfabetização em direção ao conceito de letramento.

Para essa autora, a discussão sobre os conceitos de letramento e alfabetização e suas relações ocasionou o que ela chama de “desinvenção” da alfabetização, pois, apesar da diferenciação dos termos, ainda ocorre uma fusão deles, com prevalência do letramento. Para Soares (2003a, p. 11), “[...] a alfabetização, como processo de aquisição do sistema convencional de uma escrita alfabética e ortográfica, foi, assim, de certa forma obscurecida pelo letramento.” O termo letramento não surgiu para substituir a alfabetização, assim como as atividades que envolvem as práticas sociais de leitura e escrita não substituem as atividades sistematizadas para o desenvolvimento do domínio das técnicas da leitura e da escrita.

É importante esclarecer que a referida autora não defende a autonomia dos termos. Pelo contrário, ela reconhece a necessidade de conciliação entre eles, porém sem a perda das especificidades de ambos. Na verdade, o que ela defende é a indissociabilidade e a especificidade do processo de letramento e do processo de alfabetização.

Dissociar alfabetização e letramento é um equívoco porque, no quadro das atuais concepções psicológicas, linguísticas e psicolinguísticas de leitura e escrita, a entrada da criança (e também do adulto analfabeto) no mundo da escrita ocorre simultaneamente por esses dois processos: pela aquisição do sistema convencional de escrita – a alfabetização – e pelo desenvolvimento de habilidades de uso desse sistema em atividades de leitura e escrita, nas práticas sociais que envolvem a língua escrita – o letramento. Não são processos independentes, mas interdependentes e indissociáveis: a alfabetização desenvolve-se no contexto de e por meio de práticas

sociais de leitura e de escrita, isto é, através de atividades de letramento, e este, por sua vez, só se pode desenvolver no contexto da e por meio da aprendizagem das relações fonema-grafema, isto é, em dependência da alfabetização (SOARES, 2003, p. 14).

Tradicionalmente, a alfabetização tem focado principalmente a aprendizagem do sistema convencional de escrita por meio de dois métodos, o sintético e o analítico, que prevaleceram até meados dos anos 1980. Ferreiro e Teberosky (1885, p. 18) os definem como “[...] métodos sintéticos, que partem dos elementos menores que as palavras, e métodos analíticos, que partem da palavra ou de unidades maiores”. Ou seja, a alfabetização ou partia da análise dos fonemas, sílabas e letras ou da análise de textos e frases.

O método sintético consiste, fundamentalmente, na correspondência entre o oral e o escrito, entre o som e a grafia. Ele estabelece a correspondência a partir dos elementos mínimos (que são as letras), em um processo que consiste em ir das partes ao todo. Por outro lado, o método analítico defende que a leitura é um ato global e audiovisual. Partindo desse princípio, os seguidores do método começam a trabalhar com base em unidades completas de linguagem para depois dividi-las em partes menores. Por exemplo, a criança parte da frase para extrair as palavras e, depois, dividi-las em unidades mais simples, que são as sílabas.

De acordo com Soares (2003), o método sintético tornava os processos de letramento e alfabetização independentes, pois primeiro a criança dominava a relação fonema-grafema e somente depois compreenderia seu significado e a função da escrita a partir do convívio com diversos gêneros textuais e portadores de textos.

Letramento e alfabetização são processos simultâneos e interdependentes. Ou seja, a criança constrói seu conhecimento sobre o sistema alfabético e ortográfico da escrita em situações de letramento. Dessa forma, aprender a ler e escrever deve acontecer em um contexto que faça sentido ao aluno.

[...] a criança aprende a ler e escrever com melhor qualidade, letrando-se e alfabetizando-se num ambiente, „vivo‟ que lhe permita ver o mundo com sentimento, com criação, tendo como mediadora uma professora que compreende a indissociabilidade e a especificidade da alfabetização e do letramento, ou seja, que consegue alfabetizar e letrar (SIMONETTI, 2008, p. 26). (Grifo do autor).

O ideal seria alfabetizar e letrar, ou seja, aprender a ler e escrever no contexto das práticas sociais da leitura e da escrita, tornando-se alfabetizado e letrado ao mesmo tempo, respondendo, assim, as inúmeras demandas sociais da leitura, tais como: ler livros, revistas, jornais; buscar informações numa bula de remédio, num cardápio, num manual de instrução; escrever um bilhete, uma carta, um ofício, um e-mail, entre outros tipos de comunicação.

Para alcançar esse objetivo de alfabetizar e letrar há ainda a necessidade da superação de alguns desafios, entre eles a garantia de uma escolarização eficiente para toda a população, pois a escola é um espaço privilegiado para o aprendizado da língua escrita, principalmente para as classes sociais menos favorecidas. Não se pode esquecer também da necessidade de professores bem preparados para seu importante papel de mediadores do processo de aprendizagem.

Sob essa ótica, o professor desempenha um papel fundamental no processo educativo. Tardif (2010, p. 228) destaca que “[...] em seu trabalho cotidiano com os alunos, são eles (professores) os principais atores e mediadores da cultura e dos saberes escolares. Em suma, é sobre os ombros deles que repousa, no fim das contas, a missão educativa da escola” (grifo do autor).

Considerando esse papel fundamental do professor enquanto agente do processo ensino-aprendizagem, buscar-se-á, na discussão sobre saberes docentes, um suporte teórico para a compreensão de quais saberes são aprendidos e construídos pelos professores em seu processo de formação e no exercício da docência.