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Desde o fim da década de 1980, o campo de pesquisa sobre saberes docentes se desenvolve internacionalmente de forma significativa, e, especialmente no Brasil, verifica-se a ampliação desse campo a partir da década de 1990. Com base na premissa de que existe uma base de conhecimento ou knowledge base4 para o ensino. Pesquisadores como Shulman (1986), Tardif e Gauthier (1996), Tardif (2010), Gauthier (1998) e Pimenta (2012) investigaram e sistematizaram esses saberes mobilizados pelos professores, com o objetivo de aprimorar a formação e de legitimar a profissão, iniciando um processo de profissionalização.

Esses autores têm procurado mostrar a importância desses saberes docentes ou saberes dos professores para a formação e atuação desses profissionais. Eles concebem a prática individual e coletiva docente como lugar onde esses professores elaboram saberes na profissão e sobre ela. Reconhecem, assim, os professores como sujeitos do conhecimento e produtores de saberes.

Pimenta (2012) destaca a necessidade de definir o termo “saber” e diferenciá-lo do termo conhecimento, considerando o saber como uma fase do conhecimento.

4 Segundo Shulman (1986) são as compreensões, habilidades, os conhecimentos e as disposições de que um

“[...] apesar de existir já autoconsciência do saber, é a fase em que o homem apenas sabe, mas não sabe ainda como chegou a saber. [...] o homem organiza o conhecimento em formas preliminares, surgidas para atender necessidades práticas imediatas, porém não alcança o plano da organização metódica” (VIEIRA

PINTO, 1979 apud PIMENTA, 2012, p. 50).

O professor, ao deparar com os complexos problemas de sala de aula, confronta-se também com a necessidade de usar seus conhecimentos e elaborar uma forma própria de intervenção, muitas vezes de forma criativa e original. Porém, esse processo de elaboração de saberes é empírico e carece de organização intencional e metódica própria da construção do conhecimento.

A atividade docente se configura, assim, como uma atividade que demanda muito mais do que a capacidade de execução, uma atividade que proporciona ao professor a elaboração e a mobilização de saberes próprios de seu ofício. Dessa forma, o saber dos professores não se constitui como um saber único, mas de vários saberes, dada a multiplicidade de situações próprias do trabalho docente. Sobre esse aspecto, Tardif e Gauthier (1996, p. 11) destacam que “[...] o saber docente é um saber composto de vários saberes oriundos de fontes diferentes e produzidos em contextos institucionais e profissionais variados”.

Tardif (2010) considera que os saberes docentes provêm das seguintes fontes: formação inicial e continuada, cultura pessoal e profissional, conhecimento das disciplinas que ensinam, e experiência de ensino e aprendizagens com os pares. O autor ressalta a necessidade de situar historicamente esse profissional, que, além de sua formação acadêmica e profissional, carrega uma bagagem sociocultural. Sobre os diferentes tipos de saberes mobilizados pelos professores, Tardif (2010, p. 36) afirma que

[...] a relação dos docentes com os saberes não se reduz a uma função de transmissão dos conhecimentos já constituídos. Sua prática integra diferentes saberes, com os quais o corpo docente mantém diferentes relações. Pode-se definir o saber docente como um saber plural, formado pelo amálgama, mais ou menos coerente, de saberes oriundos da formação profissional e de saberes disciplinares, curriculares e experienciais.

Nessa perspectiva, os saberes da formação profissional (das ciências da educação e da ideologia pedagógica) são aqueles transmitidos pelas instituições de formação docente; os saberes disciplinares relacionam-se aos diversos campos do conhecimento (matemática, história, literatura, entre outros) e são saberes selecionados pela instituição universitária sob a forma de disciplina; os saberes curriculares correspondem aos objetivos, conteúdos e métodos que a escola seleciona os saberes sociais como representativos da cultura erudita; os saberes da experiência, que emergem da prática cotidiana da profissão e são validados por ela,

incorporados por meio da experiência individual e coletiva, não provêm de formação e nem dos currículos (TARDIF, 2010).

Ainda sobre a multiplicidade dos saberes docentes, Gauthier (1998) propõe que o ofício docente é constituído de saberes. O autor classifica esses saberes em saber disciplinar, referindo-se ao conteúdo a ser ensinado; saber curricular, relativo ao programa de ensino da disciplina; saber das Ciências da Educação, específico e não relacionado com a ação pedagógica; saber da tradição pedagógica, relativo ao dar aulas, adaptado e modificado pelo saber experiencial e validado pelo saber da ação pedagógica; saber da experiência, referindo- se ao saber de jurisprudência particular, elaborado ao longo do tempo pelo docente; saber da ação pedagógica, referente ao saber experiencial que se tornou público e foi testado.

Esse autor considera que vários saberes formam o que ele chama de reservatório, no qual os professores se abastecem para responder as específicas situações de ensino. Quanto ao repertório, origina-se das pesquisas realizadas em sala de aula sobre o gerenciamento dos conteúdos e da turma pelos professores e diz respeito aos saberes da ação pedagógica, sendo um subconjunto do reservatório geral. Para o mesmo autor, reconhecer a existência desse repertório de conhecimentos ressignifica o olhar para esse profissional, que é, dessa forma, concebido como um profissional que delibera de forma autônoma, julgando e tomando decisões.

Pimenta (2012) é uma das autoras que também contribuem para que progressivamente o campo educacional dos saberes docentes se fortaleça. Ao tratar da mobilização dos saberes da docência, ela destaca a importância desses saberes na construção da identidade profissional, classificando-os em três categorias denominadas: i) saberes da experiência, separada em dois níveis: o nível da experiência dos alunos que serão professores e construíram saberes durante a vida escolar e o da experiência dos professores produzidos no trabalho pedagógico; ii) saberes do conhecimento, que se referem aos da formação específica (português, matemática, artes, entre outras áreas); iii) saberes pedagógicos, que se relacionam aos que viabilizam a ação de ensinar. Para essa autora essas três categorias identificam os saberes necessários para ensinar.

Pimenta (2012) afirma que a expressão “saber pedagógico” designa saberes construídos pelos professores no cotidiano de seu trabalho, que torna possível a interação com os alunos na sala de aula, e fundamentam a ação docente. Ao fazer uso dessa expressão, ela o faz diferenciando-a do conhecimento pedagógico, concebido como aquele que é elaborado por pesquisadores e teóricos da educação. No entanto, ao fazer essa diferenciação, Tardif (2012, p. 50) explica:

“Não estamos, no entanto, reforçando ou mesmo estabelecendo a separação entre os que pensam e os que executam o ensino e/ou a educação. Ao contrário, o que pretendemos é justamente mostrar que o professor, muitas vezes considerado um simples executor de tarefas, é alguém que também pensa o processo de ensino. Este pensar reflete o professor enquanto ser histórico, ou seja, o pensar do professor é condicionado pelas possibilidades e limitações pessoais, profissionais e do contexto que atua”.

Tardif, Gauthier e Pimenta apresentam classificações tipológicas diferentes sobre saberes docentes, mas com muitos pontos em comum, não sendo, portanto, excludentes. Suas pesquisas evidenciam pontos de congruência, principalmente no que se refere à mobilização de saberes na ação dos professores. Os três compreendem os educadores como sujeitos que possuem uma história pessoal e profissional e que se constituem como produtores e mobilizadores de uma pluralidade de saberes no exercício de sua prática. Esses autores apontam que os estudos sobre os saberes docentes pretendem contribuir para a construção e o reconhecimento da identidade profissional desses professores.

As pesquisas desses autores sobre os saberes docentes trazem, também, implicações para o processo de formação inicial e continuada. Sobre esse aspecto, Pimenta (2012, p. 28) destaca que “[...] considerar a prática social como ponto de partida e como ponto de chegada possibilitará uma ressignificação dos saberes na formação de professores”. A autora aponta ainda que o processo de formação é na verdade autoformação, pois os professores, em confronto com as experiências práticas nos contextos escolares, reelaboram seus saberes iniciais.

Tardif (2010) propõe repensar a relação entre teoria e prática, a partir da consideração dos professores de profissão como mobilizadores e transformadores de saberes. Opondo-se à concepção tradicional da relação entre teoria e prática, na qual a prática é desprovida de saber ou detentora de um falso saber, Tardif afirma:

Se assumirmos o postulado de que os professores são atores competentes, sujeitos ativos, deveremos admitir que a prática deles não é somente um espaço de aplicação de saberes provenientes da teoria, mas também um espaço de produção de saberes específicos oriundos dessa mesma prática. Noutras palavras, o trabalho dos professores de profissão deve ser considerado como um espaço prático específico de produção, de transformação e de mobilização de saberes e, portanto, de teorias, de conhecimentos e de saber-fazer específicos ao ofício de professor. Essa perspectiva equivale a fazer do professor – tal como o professor universitário ou pesquisador da educação – um sujeito do conhecimento, um ator que desenvolve e possui sempre teorias, conhecimentos e saberes de sua própria ação (TARDIF, 2010, p. 234-235).

Nessa perspectiva, o autor destaca a necessidade de transformação nas práticas formativas, que implicará em reconhecer os professores como parceiros e colaboradores nesse processo de formação. Assim, os professores, com seus saberes, podem contribuir para

possibilitar a análise de práticas concretas de sala de aula, permitindo a dialética entre a formação teórica e a prática profissional.

A partir da análise das pesquisas sobre os saberes docentes, compreende-se que o reconhecimento dos professores como produtores de saberes e sujeitos do conhecimento, assim como a legitimação desse repertório de saberes, deve constituir a base para a elaboração dos programas de formação inicial e continuada. Nesse sentido, é preciso promover novos instrumentos e práticas de formação em parceria com os professores.

Neste capítulo, discutimos os aportes teóricos que serviram de base epistemológica para este estudo. Inicialmente são apresentados os pressupostos de Vygotsky e Luria, sobretudo as questões relativas à pré-história do desenvolvimento da linguagem escrita, à ZDP e à mediação, destacando a função do professor. Para a discussão sobre alfabetização, abordamos a psicogênese da língua escrita de Ferreiro e Teberosky, bem como os conceitos de alfabetização e letramento baseados em Magda Soares. O capítulo é finalizado com algumas reflexões sobre os saberes docentes e suas implicações para a formação inicial e continuada, com destaque para as contribuições de Tardif, Gauthier e Pimenta.

No próximo capítulo serão descritos os caminhos metodológicos percorridos para a realização da pesquisa.