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Em seus 50 anos de manifestação, a “onda” pentecostal vivenciada no pós-concílio se estabeleceu de maneiras definitivas no contexto católico. A RCC traçou um caminho próprio que a identificou e legitimou junto à institucionalidade romana, sem perder, porém, características que a configuram com um movimento de revivescência espiritual, mantendo semelhanças com o pentecostalismo protestante. A raiz dessa aproximação está fincada, principalmente, na maneira de lidar com e atribuir sentido ao divino, através da expressão de certa espiritualidade, que é marcada pela experiência do Batismo no Espírito Santo.

O Batismo no Espírito Santo teria dois significados: um propriamente sacramental, que é o batismo da iniciação cristã, recebido por todos os cristãos. O segundo sentido, atribuído pela RCC, é de ordem experiencial e não se trata de um novo sacramento mas, pelo contrário, de uma renovação daquelas promessas realizadas no primeiro batismo, através do processo de crescimento pessoal pelo qual a presença ativa do Espírito Santo se manifestaria e se tornaria sensível à consciência do indivíduo. (BORBUREMA, 2015) O resultado disso seria a abertura do sujeito a uma nova relação com Deus, estabelecida através de um exame da vida pessoal, da consequente busca pela santidade, do louvor, gratidão e oração contínuos, além de uma fidelidade à doutrina da Igreja e aprofundamento no conhecimento de Cristo. (CARRANZA, 2000)

[...] introdução decisiva a uma renovada percepção e a um novo entendimento da presença e da ação de Deus na vida pessoal e no mundo. É, em suma, a redescoberta experiencial, na fé, de que Jesus é Senhor pelo poder do Espírito para a glória do Pai. [...] Também se recorre com frequência ao termo efusão do Espírito ou, ainda, “derramamento do Espírito”, e mesmo “um liberar do Espírito Santo”, querendo-se, sempre, referir-se àquela experiência que nos leva a abrirmo-nos mais à realidade da Trindade de Deus em nós, com uma crescente consciência a respeito do significado dos sacramentos da iniciação cristã, nos batizados sacramentalmente. Essa especial e profunda “percepção” – definida, perceptível, envolvente – do relacionamento pessoal com Jesus Cristo que essa experiência proporciona não faz parte de nenhum movimento em particular - em caráter exclusivo - mas é patrimônio da Igreja, que celebra os sacramentos da iniciação e por quem recebemos o Espírito Santo. (RCC BRASIL, 2014 apud BORBUREMA, 2015, pag. 34)

Sendo a manifestação do Espírito Santo uma herança da própria tradição cristã25, a RCC se coloca como novo agente mediador, responsável por “resgatar” a relação entre os homens e Deus, em sua terceira Pessoa. O texto acima nos sugere o fato de que a incorporação dessa ideia significou, em termos históricos, uma transformação das práticas e dos espaços do catolicismo. A missa, até então lugar único e privilegiado para a reunião de fiéis e celebração da fé, presumia uma oração de caráter objetivo, coletivo e social. (GIGA, 1998) O advento de um ideal de oração pautado na ação do Espírito Santo, através da RCC, ampliou os espaços de reunião e significou o acolhimento de uma espiritualidade focada nas expressões de emotividade e subjetividade: uma atenção concentrada numa espiritualidade individualizante. Desse modo é que se convoca a experiência de intimidade com Deus, ou um “relacionamento pessoal com Jesus Cristo”.

Nesse quadro, perpassando por quase todas as atividades carismáticas, a música desempenha um protagonismo na construção dessa relação íntima e pessoal dos indivíduos com o divino, e na relação do grupo com o divino. Tal processo é tensionado com o uso da música no contexto ritualístico mais basilar da Igreja Católica – o rito da missa – pois apresenta novos formatos, diferentes daqueles observados e produzidos ao longo do tempo. Para entender melhor estas relações e as novas possibilidades criadas a partir delas, nos deteremos brevemente no papel desempenhado pela música na Igreja dos primeiros séculos.

2.1.1 Música litúrgica: história e transformações

Dentre as mudanças mais emblemáticas trazidas pelo Concílio para a missa, destacamos o reposicionamento sacerdotal, em que o padre se vira de frente para a assembleia e passa a celebrar

                                                                                                               

juntamente com ela o mistério eucarístico26, e a introdução das línguas locais no rito, em quase total predominância ao latim – língua oficial da Igreja. Nesse caso, a música, compreendida como parte integrante da celebração, incorpora tais elementos e assume uma função coletivizadora, de comunhão entre os membros do corpo da Igreja, resgatando uma função que desempenhara nas origens do cristianismo.

A igreja cristã primitiva, nos anos seguintes à crucificação de Jesus Cristo, era ainda considerada como uma seita e sofria duras perseguições, tanto pela burocracia do Império Romano, como pelo próprio judaísmo – religião de onde adveio. Nesse movimento, seus praticantes encontravam no canto comunitário um aliado fundamental de resistência e formação de uma identidade coletiva. (BASURKO, 2005) Os cristãos não mediam esforços para concentrar em seus cultos as manifestações musicais das mais diversas regiões e culturas – especialmente da grega –, o que gerou um repertório artístico muito característico e particular.27

Perseguidos, os discípulos de Cristo perpetuavam sua mensagem e propagavam o Evangelho através da reprodução oral de textos e ensinamentos. De acordo com Basurko (2005), muitos dos textos que entraram para o cânone do Novo Testamento, antes de ganharem a forma escrita, podem ter sido cânticos praticados nos cultos. As leituras nos ritos litúrgicos eram, principalmente, realizadas de forma entoada, como uma recitação melódica – prática herdada da tradição judaica. Tal fato é mais compreensível se considerarmos as possibilidades limitadas de cópia, reprodução e preservação de textos escritos naquela época. Por isso, as formas orais de transmissão e criação eram tão fundamentais – tão importantes quanto os próprios textos sagrados (GIGA, 1998).

Além do registro e salvaguarda da palavra sagrada, a função do canto era, principalmente, simbolizar uma equalização dos seguidores; uma igualdade radical entre todos, característica da missão de Cristo que comunicava a base fundamental da igreja cristã primitiva e se manteve pelos séculos à frente em sua doutrina.

Com a crescente expansão do cristianismo, sua institucionalização e estabelecimento da denominação católica como religião oficial do império, a música litúrgica foi assumindo formas mais estruturadas, atingindo seu apogeu com a consolidação do canto gregoriano. O gênero recebeu essa nomenclatura apenas ao final do século VIII, em honra a São Gregório Magno, papa                                                                                                                

26 A missa é a renovação do sacrifício de Jesus, ou seja, sua morte e ressurreição, e também uma memória da última ceia realizada por Jesus com seus apóstolos, quando Aquele oferece o pão e o vinho, como seus próprios corpo e sangue que seriam ofertados para a remissão dos pecados dos homens.

27  “Na Grécia, a música era essencialmente vocal e andava sempre associada à poesia. O poeta era também músico. O texto estava subordinado à música. Esta tradição foi seguida pelos artistas medievais para quem os textos sagrados constituíam a principal fonte de inspiração. É de notar ainda que a Igreja de Roma, nos primeiros séculos do Cristianismo, estava ligada às Igrejas orientais, adoptando inicialmente a língua grega e, provavelmente, muitos dos seus cantos.” (GIGA,1998)

do século VI, que foi considerado o principal responsável por sistematizar as melodias e cânticos reproduzidos até então pela Igreja. Na realidade, Gregório Magno, durante seu papado (590 – 604 d.C.), nada mais fez do que estruturar aquelas manifestações musicais observadas desde os princípios do cristianismo – as quais acabamos de comentar.

O canto gregoriano tem como princípios o canto monofônico, ou seja, uma única linha melódica executada pelas vozes em uníssono, e a ausência de instrumentos. No canto gregoriano, a palavra sempre se sobrepõe à melodia, constituindo-se o texto sagrado como a principal fonte de inspiração para os compositores, o que sugere uma perfeita unidade entre texto e melodia. A melodia “só adquire expressividade através da mensagem mística do texto sacro onde reside a verdadeira essência do canto gregoriano”(GIGA, 1998).

Para o compositor medieval, a arte perfeita consistia na simplicidade e no natural. A música devia, de forma simples, como serva fiel e humilde, acompanhar a oração destinada às cerimónias do culto. Ora, a oração da Igreja não tem carácter individualista.

É objectiva, colectiva e social. Daí, a sua música ter um imperativo superior, ligado à

inteligência e inspirada no divino. (Ibid.; grifos nossos)

Ao seguir os mesmos parâmetros de coletivização encontrados no desenvolvimento do cristianismo dos primeiros séculos, a música não poderia possuir uma assinatura, uma vez que tinha uma função sacramental. É por isso que, provavelmente, grande parte das canções era de autoria anônima. Os compositores compreendiam que era necessário, antes, alcançar uma forma ideal que correspondesse à inspiração celeste, refletindo o sagrado, a fé, e os ensinamentos de Cristo, e não concentrar sua criação naquilo que apelava aos sentidos e às paixões humanas (GIGA, 1998).

Para além da dimensão simbólica para o catolicismo, a instauração do canto gregoriano significou ainda uma revolução estética: ela representa um grande marco histórico para a música ocidental, uma vez que deu início à normatização da escrita musical como a conhecemos hoje.

O gênero se estabeleceu assim, de tal maneira, que a Igreja Católica o assumiu como seu gênero musical oficial. O papa Pio X – o papa dos artistas –, no seu Motu Próprio de 22 de Novembro de 1903, considera o canto gregoriano como “supremo modelo de toda a música sacra”, afirmando que “uma composição religiosa será tanto mais sacra e litúrgica quanto mais se aproxima no andamento, inspiração e sabor da melodia gregoriana, e será tanto menos digna do templo quanto mais se afastar daquele modelo supremo.”28

Esta publicação é realizada, como cita o próprio documento, para reforçar a peculiaridade e importância do canto gregoriano para o catolicismo, num momento em que outros tipos de                                                                                                                

28 Disponível em: w2.vatican.va/content/pius-x/pt/motu_proprio/documents/hf_p-x_motu- proprio_19031122_sollecitudini.html. Acesso em 10/07/2016.  

manifestações musicais já habitavam o ambiente das igrejas. Começava-se a se observar uma transformação da música religiosa, através de um conflito marcado entre duas práticas musicais: uma institucional e uma produzida pelo povo. (DUARTE, 2013)

Segundo Duarte (2013), é possível esquematizar o percurso da música litúrgica – com grande simplificação – da seguinte maneira: num momento da história em que o poder papal era sentido com menor intensidade, os compositores tinham mais expressão e o texto musical não era tão compreensível. Num acentuado período de fechamento, quando Roma havia sido invadida, o clero optou pela compreensibilidade do texto cantado. Após esse momento, seguiu-se uma gradativa abertura da Igreja às práticas seculares quando, em 1749, o estilo “moderno” foi permitido e com ele, os elementos da música cênica e instrumental (por exemplo, num certo estágio, trechos de ópera tiveram seus textos originais parodiados e foram utilizados nas missas). Por fim, no século XX, num novo aceno de reclusão, a Igreja buscou trazer de volta as tradições musicais mais rígidas. “Paralelamente a estas práticas musicais hegemônicas, mesmo perseguidas, as manifestações do catolicismo popular sobreviveram.” (DUARTE, 2013, p. 58)

Apesar da resistência da instituição romana a tais manifestações populares, elas se desenvolveram numa crescente e tiveram sua culminância no Concílio Vaticano II, como analisamos no capítulo anterior. A simbólica permissão do uso das línguas vernáculas, tanto nas partes fixas da missa, quanto e, especialmente, na execução musical, fez com que a produção musical litúrgica assumisse um tom mais popular, que dialogava com a assembleia e que voltava a cumprir seu papel de promoção da comunhão entre seus participantes e entre a assembleia e o divino.

Esse cenário, que gradualmente enxergou a introdução de novos instrumentos, novos ritmos e melodias no rito da missa, foi regulado pela Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB) que elaborou numerosos documentos para a música litúrgica em território nacional, incentivando as práticas populares locais em sua composição e execução. Surgiam figuras como os “animadores de canto”, responsáveis por conduzir a música com a assembleia e bandas compostas por violão, guitarras, bateria e outros instrumentos populares, característicos da produção musical daquele momento (DUARTE, 2013).

Na composição, um grande expoente nesse período é Padre Zezinho, religioso da Congregação dos Sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus, responsável pela popularização de músicas que até hoje permeiam o imaginário e repertório musical católico. As canções de Padre Zezinho, que começaram a ser gravadas e a fazer sucesso a partir da década de 1970, lançam mão de ritmos como a valsa, a marcha e a balada e contam com melodias e letras simples e de temática “cotidiana”, que parecem querer aproximar a mensagem do Evangelho à realidade dos fieis.

Exemplos disso são as músicas “Oração Pela Família”, “Utopia”, “Um Certo Galileu”, “Maria De Nazaré”, “Um Coração Para Amar”, “Minha Vida Tem Sentido”, dentre outras, que são, ainda hoje, largamente executadas por grupos musicais em missas.

Esse ambiente de renovação das práticas litúrgico-musicais, que permitiu o afloramento de uma religiosidade popular identificável na missa, especialmente através da música, é o mesmo que possibilita e assiste ao desenvolvimento da Renovação Carismática e seus modos particulares de expressão religiosa, no qual a música se insere e é parte constituinte.

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