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ESPIRITUALIDADE DO CUIDADO

No documento carolinadecarvalhoduarteguimaraes (páginas 134-169)

3 O RESGATE DA CULTURA DO CUIDADO

3.1 ESPIRITUALIDADE DO CUIDADO

Os primeiros pios dos pássaros que despertam marcam o point virge da aurora sob o céu ainda desprovido de luz. É um momento de tremor reverente e de inexplicável inocência, quando o Pai, em perfeito silêncio, lhes abre os olhos. Eles começam a falar-lhe, não em um cantar fluente, mas com uma pergunta despertadora que é o estado da aurora deles, seu estado no point virge. Sua condição pergunta se é o tempo para eles de “ser”. Ele responde “sim”. Então, um por um, eles despertam e se tornam passarinhos. Manifestam-se como passarinhos e começam a cantar. Dentro em pouco, eles se tornarão plenamente o que são, e até voarão (MERTON, 1970, p. 151).

A Espiritualidade do Cuidado é uma ideia que têm me acompanhado há sete anos, desde que entrei como estudante no campo da Ciência da Religião e recebi de meu orientador, Faustino Teixeira, este termo como síntese de minha pesquisa. Ao longo do último ano, quando passei a de fato concretizar a escrita da tese, percebi que a Espiritualidade do Cuidado como um conceito ainda não tinha sido trabalhada por outros autores. Em pesquisas encontramos espiritualidade no cuidado, geralmente relacionada a alguma categoria ou objeto específicos, como por exemplo a espiritualidade no cuidado com pacientes, na enfermagem etc.

Nem mesmo Leonardo Boff, que é meu autor de base relacionado ao cuidado e à espiritualidade, usa o termo “Espiritualidade do Cuidado” da maneira como tal conceituação foi crescendo em minha pesquisa e prática ao longo dos anos de estudos. Percebi, então, que caberia a mim delimitar as características que fundamentam o nascimento deste termo como uma nova cosmovisão, a partir dos autores que me alimentaram nessa caminhada.

3.1.1 Espírito

Ele, o ruah (espírito em hebraico), já estava presente no primeiro momento da criação. Sobre o caos originário (touwabohu), as águas primordiais, “soprava o Espírito (ruah), uma energia impetuosa” (Gn 1,2). Criou todos os seres inanimados e animados, especialmente o ser humano: “Soprou-lhe nas narinas o ruah de vida, o espírito, e ele tornou um ser vivente” (Gn 2,7) (BOFF, 2018, p. 68).

Leonardo Boff busca de compreender como é possível a vida e, especialmente, como é possível a vida consciente. Neste percurso, o autor nos traz uma densa argumentação sobre o que pode ser compreendido como espírito. Para isso, ele inter-relaciona a teologia cristã, em suas metáforas imagéticas, com a física moderna, quântica.

Tive a oportunidade de entrevistá-lo para minha pesquisa de mestrado, na qual a definição espírito surgiu de forma clara e acessível, como se segue:

Eu acho que a questão toda é melhorar nossa compreensão do que é espírito. Porque nós somos herdeiros da tradição mediterrânea, grega, que diz que o ser humano é a composição de corpo e espírito, matéria e forma fundamentalmente, espírito e corpo. Então seríamos um ser misto e profundamente desequilibrado. Isso porque a corporeidade tem limite, espaço,

tempo. Enquanto o Espírito, como já dizia Aristóteles, seria universal. Ele (Aristóteles) pensa a totalidade, o cosmos e entende a morte como separação de corpo e espírito. Então, eu penso que essa visão é muito pobre para entender o ser humano. Eu tendo a desenvolver duas vertentes: uma a partir do corpo, porque o que nós temos mesmo é o corpo, mas não o corpo cadáver. Temos o corpo vivo. Este que suscita a questão sobre o que é a vida dentro desta materialidade. E aí eu considero que é interessante investigar esta concepção mais moderna de entender a matéria, a evolução do universo. Nós não temos um corpo, nós somos um corpo. O mistério é porque que existe a vida. Por que ele é vivo? E a vida, eu acho, que é aquilo que é o espírito no corpo. Então é um corpo espiritualizado, é um espírito encarnado. São essas duas dimensões (BOFF, 2014, C.P.73).

Primeiramente, então, Boff se coloca no desafio de compreender o que é este atributo que traz vida, que anima a matéria e estabelece uma vertente inicial de acesso ao todo: a matéria que contém o espírito seria uma matéria espiritualizada. Intuitivamente é possível habitar tal premissa. Porém, essa afirmação não esgota nossos questionamentos sobre o assunto. Não compreendemos como isso se dá e se mantém por um certo período de tempo até cessar, ou por que cessa. Não sabemos como esse atributo de ruah se transforma em consciência da maneira como os humanos experimentam; e também emerge o questionamento sobre o que diferencia esse atributo de vida, ruah, espírito, humano, do de todos os outros seres dotados dessa vida.

A outra vertente é um diálogo com a nova cosmologia, com a física, com a teoria da evolução ampliada que vê a grande unidade de todo o processo. Desde o big-bang e as distintas fases da vida, que vão na linha de se complexificar cada vez mais. Energias e matérias foram interagindo até que chega um ponto altamente complexo e irrompe a vida como necessidade cósmica74. Como subcapítulo da vida, com muito mais complexidade ainda,

emerge a consciência. Emerge o ser humano. Então o espírito pertence a este conjunto, pertence a realidade, não está fora da realidade. Todas as compreensões que tem uma matriz religiosa, metafísica, fazem o espírito vir de fora. Ele vem e forma a matéria, o corpo. Porém, nessa nova compreensão, o espírito faz parte da totalidade. É a parte mais avançada do universo (BOFF, 2014, C.P.).

73 C.P. – comunicação pessoal.

74 “A massa inicial das células deve ter sido submetida no seu interior, desde o primeiro instante, a uma

forma de interdependência que não seria já um simples ajustamento mecânico, mas um começo de “simbiose” ou vida comum [...] Simples reaparecimento, em fim das contas, sob uma forma e numa ordem mais elevada, de condições muito mais antigas que, como vimos, já presidiam ao nascimento e ao equilíbrio das primeiras substâncias polimerizadas à superfície da Terra juvenil. E também simples prelúdio à solidariedade evolutiva, muito mais avançada, cuja existência, tão manifesta nos seres vivos superiores, nos obrigará cada vez mais a admitir a natureza propriamente orgânica das ligações que reúnem num todo no seio da Biosfera (CHARDIN, 1970, p. 83-84).

O senso comum moderno tem lidado com as ideias de consciência, espirito/alma e Eu quase como sinônimos. O Eu seria algo que vem de fora, de algum lugar metafísico, e passa a habitar a matéria. Esse é um debate antigo, sabemos. Deve ter quase a idade da vida humana, e não me cabe aqui trazer nenhuma afirmação como título de verdade. Porém, vamos exercitar a ideia de que o espírito seja algo também físico e concreto, além de metafórico ou metafísico. E mais ainda, de que este espírito permeia, é composto, ou emerge de toda a matéria que se mistura das formas mais variadas possíveis, criando toda a diversidade e se complexificando em muitos níveis.

Porque ele vai ficando mais complexo e cria ordens mais sofisticadas. A consciência que atravessa todo esse processo ganha no ser humano a dimensão de autoconsciência. Então o espírito é tão ancestral quanto o corpo. O corpo surge no primeiro momento quando os dois primeiros quarks e hádrons interagem. Depois átomos se relacionam, trocam informações entre eles e vão criando sistemas e ordens e redes de relações [coerentes e constantes]. E o que é o espírito? É a capacidade que as energias primordiais e as partículas originárias têm de se relacionar. A relação sempre implica uma troca de informação. Então aqui entra uma compreensão diferente de toda a compreensão moderna até Einstein e Einstein inclusive. Para a física quântica, existe a matéria, que tem massa. A matéria tem energia, desde a energia elétrica, energia gravitacional, energia nuclear. Mas a partir dos anos cinquenta descobriram a terceira qualidade da massa, que é energia da informação. Porque a energia não é matéria, é informação. Ela carrega uma informação que surge através do jogo das relações. E aí vem a afirmação básica de Heisenberg75 e de todos os físicos quânticos: “o universo não é o

conjunto dos seres existentes. O universo é o conjunto das relações, das redes”. Tudo é rede.

Eu tive o privilégio de assistir o último semestre das aulas de Heisenberg e uma frase que sempre voltava nele era essa: tudo é relação, não existe nada fora da relação e tudo tem a ver com tudo em todos os pontos, em todos os movimentos em todas as circunstâncias. Então, a caneta que cai aqui, pela força da gravidade [da relação] afeta a galáxia mais distante que está lá [pela rede de informações]. Esta capacidade de criar relações e com as relações criar ordens cada vez mais complexas, até chegar à ordem humana, isto é o espírito! E é próprio do espírito criar totalidades significativas. E no ser humano, é a capacidade de ele sentir-se parte desse todo, poder elaborar uma dinâmica dessa totalidade (BOFF, 2014, C.P.).

75 Princípio da Incerteza de Heisenberg: “Para a física quântica tanto ondas como partículas são

fundamentais. Uma e outra são modos pelo quais a matéria se manifesta e as duas juntas são o que a matéria é [...] segundo o princípio da incerteza, as descrições do ser como onda [energia] e como partícula [matéria] se excluem mutuamente. Embora ambas sejam necessárias a compreensão integral do que o ser é, somente uma está disponível num determinado momento do tempo” (ZOHAR, 1990, p. 26).

A partir de uma perspectiva holística, que alia a sabedoria tradicional religiosa com as mais modernas descobertas da física, conclui-se que o espírito é aquilo que dá a liga, por assim dizer. Mantém a coesão de elementos que separadamente obedecem a padrões individuais, mas que compostos criam algo novo, uma mistura relacional. Totalidades e mais totalidades, em um eterno fluir cósmico inter-relacionado. Considero interessante salientar que embora se verifique uma direção relacional no sentido da complexificação como um “imperativo cósmico” que cria a vida e depois a vida consciente, esse movimento não se configura em uma linha reta na qual uma complexidade mais ampla seria sobreposta a outra de menor grau. Em essência, o que aprece acontecer é que as composições mais complexas precisam de interações relacionais menos complexas que também constituem a integralidade em questão, como o ambiente – clima, atmosfera – que ela habita.

3.1.2 Espiritualidade

O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação-da-alma... Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só para mim é pouca, talvez não me chegue (ROSA, 2019, p. 19).

Uma vez considerando a concretude de um espírito como força relacional que anima a matéria e compõe integralidades diversas que coabitam, criam e são criadas por seu ambiente, a espiritualidade seria a consequência, na vida humana, de se experimentar o fato de que embora sejamos pessoas, sujeitos singularizados, estamos imersos em uma ampla dinâmica relacional. Mais que isto, somos constituídos e dela dependemos.

É possível afirmar que esta experiência – chamada aqui de espiritualidade – que de maneiras diversas é vivenciada por todo e qualquer ser humano, trata-se de uma qualidade que agrega um sentido à vida dentro dessa dinâmica de consciência. Dito de outra forma, essa experiência levou e ainda leva todo e qualquer ser humano, em todas as épocas e lugares da biosfera, a se engajar em uma busca de sentido para suas vidas – dores, alegrias e rotinas. Este sentido daria contorno/coerência, constância/segurança, propósito e explicações para os eventos percebidos pela consciência, ou seja, vividos pelo corpo.

A partir dessa experiência que nos é dada como seres viventes em uma atmosfera comum como coparticipantes, emerge a premissa do cuidado como elemento fundante e guia de cada ato da consciência humana. Seja qual for o nome que seja atribuído a este todo, a experiência dele e nele é da ordem do que nos é semelhante. E, neste contexto, a percepção de um atributo de semelhança entre todos os seres vivos e da Terra como nosso continente precisa ser aprofundada, sentida e reverenciada a ponto de fazer emergir dinâmicas relacionais cuidadosas.

Segundo Dalai Lama, a espiritualidade está:

Relacionada com aquelas qualidades do espírito humano – tais como amor e compaixão, paciência, tolerância, capacidade de perdoar, contentamento, noção de responsabilidade, noção de harmonia – que trazem felicidade tanto para a própria pessoa quando para os outros. [...]. O que não se pode dispensar são essas qualidades espirituais básicas (2000, p.33).

3.1.3 Cuidado

Desde que o feto começara a se formar dentro de si, perdera certos trejeitos, ganhara outros, ousara avançar em certos pensamentos. Parecia-lhe que até então vivera mentido. Seus movimentos eram mais libertos do corpo, como se agora houvesse mais espaço no mundo (LISPECTOR, 2013, p,168)

O cuidado é a atitude e o sentido de vida que brota naturalmente a partir de uma perspectiva de espírito e de uma espiritualidade vivida como elemento de relação entre tudo e todos. Meu ponto é que essa “atitude de cuidado” está presente e impera como força relacional em todas as esferas do existir. Mesmo que a sabedoria ocidental moderna tenha se constituído a partir de explicações de mundo que enxergam e constroem fronteiras, o cuidado estava lá, ainda que não tivéssemos olhos para vê-lo.

Considero que o desafio atual da humanidade é desenvolver essa capacidade de enxergar este elemento de ligação que sustenta a vida. Enxergá-lo e reverenciá-lo de forma consistente para que possamos ter um futuro como espécie e para que a Terra não seja destruída. Afirmo também que a perspectiva cuidadosa da vida vem sendo trabalhada com nomes diversos dentro de tradições diversas, ou de saberes diversos, e que aos poucos vem ganhando força de cultura.

Em seu mais recente livro, Leonardo Boff (2018) faz uma maravilhosa síntese de toda sua trajetória como pensador e teólogo, abarcando os termos ecologia, espírito, espiritualidade versus religião, e cuidado em diferentes momentos. Chama atenção para a necessidade do nascimento de uma ética comum, nomeada por ele de cordial, que embase uma nova cosmovisão da humanidade pautada no paradigma do cuidado. Postula também, com base em Heidegger, o cuidado como sentido ontológico do humano, sua característica fundante e fundamental. Afirma que “a existência jamais é pura existência; é uma coexistência, sentida e afetada pela ocupação e pela pre-ocupação, pelo cuidado e pela responsabilidade no mundo com os outros, pela alegria ou pela tristeza, pela esperança ou pela angústia” (BOFF, 2018, p. 132).

A partir dessa premissa de coexistência cuidadosa, passo então a relatar algumas outras pérolas que compõem minha compreensão de Cuidado.

Segundo Ibn Al-Arabi (2012) as coisas do mundo manifesto são as palavras divinas, ou seja, os atos de Deus (2012, p. 59). Sendo assim, o autor investiga e aprofunda o sentido dos nomes que são atribuídos a Ele na tradição islâmica. O nome Al-Muhaymin, traduzido como se segue, elucida uma compreensão interessante que destacarei abaixo:

O Guarda, O Torcedor, O Protetor, O Vigilante

A função da proteção divina consiste na supervisão, em dar testemunho de todas as coisas protegendo e cuidando delas, em virtude do qual estão implicitamente contidas nestes os nomes o Preservador e o Vigilante, visto que "testemunha pessoal" quer dizer preservação e observância atenta de tudo o que acontece, seja movimentos ou descansos (AL-ARABI, 2012, p.58)76.

Compreendo que ao atribuir a qualidade de guarda, torcedor, protetor e vigilante à força que permeia todas as esferas da vida, e afirmar que estas características estão expressas em uma atitude de testemunho, o cuidado se transforma em uma maneira de dar existência às coisas. Ou melhor, de testemunhar a existência das coisas através da comunhão e da contemplação. Como se todas as relações fossem cunhadas pela força do testemunho, do caminhar juntos, de poder ver e sentir uns aos outros.

76 “El Celador, El Amparador, El Protector, El Vigilante: La funcipon del divino amparo

(muhayminiyya) consiste em la supervisión, em dar testimonio de todas las cosas (al-sahãda adà l-asya) protegiéndolas y cuidando de ellas, em virtude de lo cual están implícitamente contenidos em éste los nombres em Preservador (al-Hafiz) y el Vigilante (al-Raib), ya que ‘testimonio presencial’ (suhud) quiere decir preservación (hifz) y atenta observancia (mura a) de cuanto acontece, ya sean movimentos (harakat) o reposos (sahanat)” (AL-ARABI, 2012, p.58).

Se permanecermos contemplando um pouco mais a imagem de um organismo vivo – um corpo, por exemplo –, é possível perceber que para que a vida se dê e se mantenha, é preciso haver uma confluência de ações metabólicas com base em uma dinâmica altruísta pelo bem do todo. Vou repetir: se uma parte do corpo adoece, todas as forças se voltam para a cura daquela parte e ao mesmo tempo não se esquecem do todo77. Acontece uma dinâmica de ações complementares na qual não cabe a ideia de partes segmentadas ou de egoísmo. Não há como um coração se salvar sozinho, ele precisa do organismo todo para continuar batendo.

Neste sentido, a ideia de testemunho como um caminhar comum, ressaltada por Ibn ‘Arabi, pode ser verificada nas palavras de outro pensador proveniente de uma tradição completamente diferente da do primeiro. Rudolf Steiner, no que tange a questão social, afirma que “toda a penúria humana é consequência apenas do egoísmo e que uma comunidade de pessoas, de alguma forma baseada no egoísmo, mais cedo ou mais tarde, necessariamente se confrontará com a miséria, a pobreza, a penúria” (STEINER, 1983, p. 20). Com base nesta percepção de ordem espiritual, mas que afirmo aqui poder ser perceptível também no que costumamos entender por esfera biológica, o mesmo autor postula o que denomina por Lei Social Primordial:

O bem de uma integralidade formada por pessoas que trabalham em conjunto é tanto maior quanto menos o indivíduo exigir para si os resultados de seu trabalho, ou seja, quanto mais ele ceder estes resultados a seus colaboradores e quanto mais suas necessidades forem satisfeitas não por seu próprio trabalho, mas pelo dos outros (STEINER, 1983, p. 21).

Ao resgatar esta passagem, a qual traz uma ideia de prática que aos olhos ocidentais pode parecer algo impossível, imediatamente me recordei de que entre os costumes dos Yanomami descritos por Davi Kopenawa, está a premissa de que os caçadores dessa tradição não comem a sua própria caça. Entre eles, o gesto de caçar e compartilhar o alimento com os outros integrantes de sua comunidade, sem reverter para si os frutos de seu trabalho, é visto como generosidade tanto pelas pessoas, como pelos espíritos e pelos próprios animais que se oferecem alegremente aos caçadores que preservam tal costume. Gestos de bravura são diretamente ligados a construção de uma ética cunhada pela generosidade, pela partilha e pela confiança de que todos estarão sempre nutridos.

77 “A doença significa um dano à totalidade da existência. Não é o joelho que dói. Sou eu, em minha

Essa confiança de que todos estarão sempre nutridos me parece o cerne de uma percepção de mundo completamente antagônica à nossa percepção e experiência de mundo ocidental do século XXI. Davi nos diz: “Nós nunca morremos de fome na floresta. Só morremos da fumaça de suas epidemias” (KOPENAWA, 2015, p. 486). Os indígenas, vivendo em sintonia e em profundo respeito às forças generosas da natureza, nunca passam fome e por isso não precisam competir, estocar, garantir o seu pedaço de comida em detrimento dos outros. O que fundamentalmente os povos originários sempre vivenciam em seu modo de habitar a terra é um elemento de sincronia entre os eventos da natureza, nos quais eles mesmos estão incluídos. Como nos diz Philipe Descola, “na verdade, o ser humano não se basta mais, como espécie solitária e autossuficiente: a natureza e a cultura não mais se distinguem; a sociedade e o ambiente fazem parte de um mesmo itinerário” (DESCOLA, 2013, p. 97).

Aliando as ideias de “viver como um ato de testemunho” à uma “ética de generosidade” dentro de uma compreensão de mundo em que “sociedade e ambiente fazem parte de um mesmo itinerário”, começamos a desenhar uma outra cultura baseada nos seres vivos como forças relacionais dentro do que estou chamando de Espiritualidade do Cuidado.

Dalai Lama é outro autor que carrega a esperança por uma mudança de cultura através da criação de uma ética secular. Em seu livro mais recende, Além da Religião: uma ética por um mundo sem fronteiras (2016), argumenta que as religiões como um todo oferecem muitos benefícios em relação à orientação moral e a um sentido para a vida, mas que “no mundo secular de hoje, a religião sozinha não é mais adequada como base para a ética” (2016, p. 15). E continua:

No passado, quando os povos viviam relativamente isolados e separados uns dos outros [...] o fato de cada grupo seguir uma abordagem da ética baseada em uma própria religiosidade não apresentava dificuldades. Atualmente, qualquer resposta baseada na religião ao problema da nossa negligência aos valores internos nunca poderá ser universal porque será insuficiente. Precisamos hoje de uma abordagem da ética que não recorra à religião e que

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