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O REENCANTAMENTO DO MUNDO

No documento carolinadecarvalhoduarteguimaraes (páginas 169-198)

3 O RESGATE DA CULTURA DO CUIDADO

3.3 O REENCANTAMENTO DO MUNDO

Definitivamente não somos iguais, e é maravilhoso saber que cada um de nós que está aqui é diferente do outro, como constelações. O fato de poder

compartilhar este espaço, de estarmos juntos viajando não significa que somos iguais; significa exatamente que somos capazes de atrair uns aos outros pela nossa diferença, que deveria guiar nosso roteiro de vida. Ter diversidade, não isso de uma humanidade com o mesmo protocolo. Porque isso até agora foi só uma maneira de homogeneizar e tirar nossa alegria de estar vivos (KRENAK, 2019, p. 33).

Este tópico consiste em um convite: viver e deixar viver; viver, não sobreviver. Não somos máquinas. Não somos homens e mulheres da mercadoria. As relações encantadas entre as pessoas e entre os seres podem ser encontradas como fio de cuidado sutil que alinha todas as histórias, todos os autores, e os questionamentos levantados ao longo desta tese.

Neste sentido, tomar o Cuidado como condutor relacional fundamental passa por um engajamento em reencantar nosso olhar, nossa maneira de ver. Então, corroboro com as ideias de Nancy Mangabeira Unger:

“A morada do homem é o extraordinário”. Resgatar esta experiência se dá na medida de nossa possibilidade de re-encantar o mundo, o que na verdade significa re-encantar o nosso olhar. Para isso somos chamados a uma mudança de consciência, um repensar de quem somos e de qual nosso lugar no Todo (2000, p.15).

Trata-se de uma proposta de resgate profundo da capacidade de maravilhamento e de explicações de mundo que qualifiquem nossa existência. Trata-se de reencontrar a capacidade de se emocionar em nosso cotidiano. Isso imediatamente me remete à conhecida história de Galeano, na qual um pai leva o filho para ver o mar pela primeira vez:

Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sol. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta imensidão do mar. E tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: - Me ajuda a olhar! (GALEANO, 2014, p. 15, grifo do autor). “Por detrás do mero caráter ordinário da visão das coisas reside o grande espanto de ser capaz de ver” (INGOLD, 2011, p.196). Quando é possível realmente ver, faltam palavras diante da imensidão da existência. O sentimento transborda e a respiração cessa por um momento. Nossas moléculas vibram, nos mostram a própria vida assim, de repente, como se fôssemos atingidos por um raio que nos recoloca à dimensão que temos, pequenos e reverentes, diante do

inefável, do numinoso93: diante do mistério. Quase sem querer, o ar adentra os pulmões novamente, como quando emergimos de um mergulho prolongado no oceano. Voltamos então a respirar a partir de uma nova consciência, expansiva e includente, entregues ao maravilhamento e às lágrimas, que como água benta consagram a experiência.

Nenhuma de nossas complexas e técnicas teorias sobre tudo têm sentido quando passam a nos privar do acesso ao sentimento do maravilhamento. Sem ele vivemos, ou sobrevivemos, isolados como em um deserto anímico. Sem afeto, sem contorno, sem pertença, sem motivos, moribundos e sem ânimo. Nos encontramos desligados, surdos, cercados por quatro paredes, com os olhos vidrados em uma tela, esquecidos, adormecidos, sem sonhos.

Neste processo de busca pelo reencantamento do olhar, do sentir e do agir, se faz importante revisitar o sentido antigo da palavra religare, como re-ligação, e não exatamente como instituição religiosa. Hélio Pellegrino, em carta à Nancy Mangabeira, nos revela pistas sobre como é possível e necessário esse resgate:

Religare. Reinserir-se no mundo. Religião é coisa da terra, é antiatomização desintegradora, é anti-solidão. Somos parentes de tudo – do Outro, da terra, da água, da pedra. Somos parentes, ligados, tecidos no tapete do Cosmos. [...] O homem, filho, neto, bisneto, tataraneto do Cosmos é o olho translúcido dele – consciência acordada. A descoberta disto, e de que as coisas existem para doar-se, em sua graça, a uma consciência que as abarque, constitui, a meu ver, a essência do fenômeno religioso. Religar-se, reencontrar os fios que nos fazem pertinentes a tudo, a todos – eis a vocação da consciência [...] Fundamos um Nós com tudo o que existe. [...] A religiosidade não tem a ver, necessariamente, com a ideia de Deus. Religar-se é desvendar o rosto do Outro – o rosto do mundo. [...]. Ser religioso é ter coragem de crer que o homem tem, como destino último, a vocação de ligar-se, de encontrar-se, de afirmar sua pertinência a tudo o que existe. Este processo de ligar-se de encontrar-se é, por sua vez, dialético. Ganha-se e perde-se, encontra-se e desencontra-se, dia e noite, escuridão e claridade, silêncio, palavra. Tudo são pedras para construir o encontro – presente de Eros (apud UNGER, 2000, p.18-19).

Pellegrino nos brinda com um abrangente resumo do que seria a função do fenômeno religioso e de uma espiritualidade no momento atual: tirar o humano de seu estado de aridez da alma. Realinhar a existência como um exercício da vocação do cuidado. Isso porque, falar sobre

93 “Poderíamos ter aprendido há muito tempo do exemplo das sociedades primitivas o que significa a

perda do numinoso: elas perdem a razão de ser, o sentido de sua vida, sua organização social e, então, se dissolvem e decaem. Encontramo-nos agora na mesma situação. Perdemos algo que nunca chegamos a entender direito [...] Nossa psique está profundamente conturbada pela perda dos valores morais e espirituais” (JUNG, 2015, p. 96-97).

o encantamento é diferente de formular um pensamento que já consagra um compromisso existencial em relação ao mundo (INGOLD, 2017, [n.p.]).

Os povos que ainda carregam a memória de suas antigas tradições têm duas formas de buscar por conhecimento e de vivenciar esse compromisso existencial. Uma é a observação dos eventos cíclicos da natureza e a outra são seus próprios sonhos. Porém, não se trata de uma observação científica ou uma absorção da literalidade dos sonhos94. O que efetivamente fazem, é o que Ingold chama de “conhecer sendo” (2017). Eles escutam e compreendem as vozes do mundo e preservam uma relação direta com seus interlocutores. “Talvez esta fundamentação do conhecimento no ser esteja na base do tipo de sensibilidade que poderíamos chamar de religiosa” (INGOLD, 2017, [n.p.]).

Neste ponto, pego emprestadas as palavras de Serres, emprestadas também por Ingold, que diz que a palavra religião “viria do latim relegere, reler, no sentido de ler que temos identificado como receber conselhos e ser receptivos ao que os interlocutores textuais têm para oferecer” (INGOLD, 2017, [n.p.]). O contrário de Regelere seria neglegelere, ou seja, não-ler. Isto é o que temos feito. Para nós, humanos modernos, só é possível conhecer o mundo se nos apartarmos dele. Para Serres: “Quem carece de religião, não deveria se chamar ateu ou não crente, senão negligente (apud INGOLD 1995, p.48). Então, o oposto de religião é a negligência” (INGOLD, 2017, [n.p.]). E ser negligente é ser descuidado.

Neste trecho Ingold está fazendo uma argumentação sobre o modo de conhecimento científico e o religioso. O primeiro partindo de uma lógica de representação e o segundo de uma lógica de participação. E por “religião”95, aqui, ele entende como uma maneira de se relacionar com o mundo para além dos fatos dados, computados e interpretados de forma literal. Então, compreendo que o autor resgata um sentido primordial da palavra religião, não como instituição ou doutrina, mas como forma de participação no mundo: “conhecer sendo”.

Unger também fala desta proposta de conceber a vida no gerúndio da existência:

A liberdade se funda na amizade; a tirania, no seu esquecimento [...]. A palavra “humano” guarda sua relação com húmus, terra. O que esquecemos, em nosso empenho de tiranizar o real, é que não somos “sujeitos” e sim

94 Para nós, humanos modernos, só é possível conhecer o mundo se nos apartarmos dele; para os povos

originários, isso não faz o menor sentido. E os sonhos são compreendidos por muitos povos como uma possibilidade de comunicação entre o que sonha e o mundo.

95 A religião é uma poderosa fonte inspiradora desses valores, mas eles podem existir também para além

dela, na cultura e nos comportamentos das pessoas a-religiosas. O ser humano precisa voltar, como filho pródigo da parábola evangélica, à Mãe Terra da qual se exilou e sentir-se guardião e cuidador. Então será refeito o contrato natural, e se ainda se abrir ao Criador, saciará sua sede infinita e colhera como fruto a paz e o descanso do coração (BOFF, 2017, p. 112).

“sendos”, parte integrante de um real em constante mutação. Assumir nossa humanidade é afirmar nossa amizade co-operária com o próprio ritmo da vida: seus riscos, suas perdas, sua provisoriedade (2000, p.47).

Resgatar os sentidos de Religare, como participação, e Relegere, como um engajamento para reler o mundo, qualificando, então, novas narrativas, são belos passos no sentido do reconhecimento do encantamento do mundo. Leonardo Boff também escreve sobre este processo de religar-se e acrescenta a ideia de que ele pode ser encarado como uma espécie de cura capaz de fazer emergir uma série de atitudes ligadas à nobreza da alma quando o humano se compreende como coparticipante da existência:

A cura consiste na re-ligação com todas as coisas, em nossa inserção na natureza e na volta à casa comum, como habitantes cuidadosos e amigos da vida. Não necessariamente precisa ser mais religioso no sentido de realizar ritos sagrados e inscrever-se em uma determinada confissão ou caminho espiritual, mas, sim, ser mais humilde, sentindo-se parte da natureza, mais responsável por sua sustentabilidade e mais cuidadoso com tudo o que faz. A religião é uma poderosa fonte inspiradora desses valores, mas eles podem existir também para além dela, na cultura e nos comportamentos das pessoas a-religiosas. O ser humano precisa voltar, como filho pródigo da parábola evangélica, à Mãe Terra da qual se exilou e sentir-se guardião e cuidador. Então será refeito o contrato natural, e se ainda se abrir ao Criador, saciará sua sede infinita e colhera como fruto a paz e o descanso do coração (BOFF, 2017, p. 112).

Religar-se aos mistérios do mundo através de diversos modos de ler é ampliar a nossa compreensão do que é sabedoria. Trata-se de ouvir, ver e assimilar o que nos dizem e mostram os intelectuais provenientes de “outros mundos”, sem deixar que nossa compreensão categorizante limite nossa capacidade de escuta e apreensão.

Cumprir esta vocação, como dizia Pellegrino, significa viver em potência. O que significa habitar nossa própria vida em pura potência? Cumprir a saga? Como se pergunta Boff (2002, p. 57), citando Jung. Talvez seja encontrar com o sagrado no cotidiano, em qualquer circunstância, viver o espanto. Realizar um trabalho que traga alimento simbólico e sentido à vida. O presente, a presença, o sentir e o pensar. O pensar a partir do sentimento e dos sentidos perceptivos. Desenvolver uma Inteligência Sensível e com ela ser capaz de respirar. Habitar o lugar do “pré-sentimento” da ligação de tudo com tudo. Não de maneira abstrata, mas simplesmente ser-no-mundo.

Muito se escreve sobre isso atualmente. De certo modo, o Ocidente absorveu os conceitos de presença, meditação, estar no aqui e agora, provenientes do Oriente. Porém,

acredito que o homem típico ocidental ainda não alcançou o grau de maturidade que este tipo de vivência exige. Podemos afirmar que vivemos certa orientalização do Ocidente, mas isso se dá muito mais no discurso do que na prática.

Ao reler e transcrever estas palavras, senti que precisava de uma pausa. Respirei fundo. Como fazer estas palavras habitarem em mim? – Me perguntei. Fiz um chá de folhas da amoreira que eu mesma plantei e com isso me lembrei do privilégio que tenho de morar em meio a uma pequena mata na cidade. Dia de inverno, Sol lindo. Fui deitar no chão do quintal para olhar o céu e sentir o vento. Os gatos se acercaram, gostosos companheiros. Aos poucos fui distinguindo o som e o movimento de inúmeros passarinhos. Bem-te-vis, andorinhas, maritacas, uma paineira lá no fundo com plumas que saltavam para alcançar a terra. Cores e mais cores que bailavam e com isso me embalavam. Senti o peso do céu sobre mim. Estiquei as costas, pressionando contra o solo, alonguei os braços e pernas tentando criar espaço, crescer, tocar mais longe. Ou ser tocada mais fundo. O mundo fala o tempo todo. “Crescemos no mundo à medida que o mundo cresce em nós”96 (INGOLD, 2017, p. 14), me lembrei.

3.3.1 Universo poliglota

O inca lhe perguntou de onde vinha aquela autoridade. Valverde entregou-lhe o livro da Bíblia. Atahualpa pegou-o e colocou ao ouvido. Como não tivesse escutado nada, jogou a Bíblia ao chão. Foi o sinal para que Pizarro massacrasse toda a guarda real e aprisionasse o soberano inca. Como se vê, a escuta era tudo para Atahualpa. O livro da Bíblia não lhe falava nada (BOFF, 2018, p. 147).

Reencantar nosso olhar passa primordialmente pela inclusão de uma pluralidade de modos de ver, ler e interpretar o mundo do qual fazemos parte. Além disso, passa por incluir todos os outros sentidos no processo de validar nossa experiência de vida. Aqui, vou aprofundar um pouco mais a perspectiva da importância da oralidade e da escuta, uma sabedoria trazida até nós pela voz dos povos originários – pessoas que, por habitarem as florestas, desenvolvem uma sabedoria bem diferente da nossa. Trata-se de uma maneira mais simples de pensar, no melhor sentido da palavra simples. Sinto cada vez mais que toda a nossa complexificação

96 “Crescendo no mundo, o mundo cresce neles” (INGOLD, 2015, p. 30); “Growing into the world, the

filosófica e cultural acabou por nos privar da possibilidade de interagir com o que é considerado óbvio por essas pessoas.

Em um programa de entrevistas, Ailton Krenak responde de forma contagiante às perguntas mais profundas de nossas buscas filosóficas:

Krenak, o que é a natureza? – A natureza, não tem como nós que somos poros da terra, nomear ela. Não tem como a gente nomear a natureza. A natureza é uma abstração de um mundo de ideias. Em nenhuma tradição antiga, essa coisificação da natureza se sustenta. Ela só existe como uma idealização de uma cultura que quer incidir sobre a vida na terra para alterar essa paisagem, se apropriar dela. É o negócio do general [que diz]: eu vim aqui comprar sua terra. Só essa mentalidade é que pensa a natureza.

E o que é o tempo? – É a duração da nossa experiência de observador aqui no mundo.

O que é a vida? – Eu só experimento alguma coisa sobre isso, mas da mesma maneira que eu não sei nomear a natureza, eu não sei nomear o que é a vida. É uma experiência maravilhosa que eu estou passando por ela aqui. Indescritível. Viver é a coisa mais maravilhosa que um vivo pode experimentar, mas está cheio de zumbi por aí, né? Os zumbis devem ficar pensando: pô, esses caras vivendo por aí, são preguiçosos, ficam vivendo, andando na floresta. Talvez o grande drama seja isso: tem gente vivendo e tem gente zumbizando (KRENAK, 2019).

Para alguns ameríndios brasileiros, nós que vivemos nas cidades e obedecemos aos ditames de um tempo artificial, estamos zunbizando. Ou, como diz Kopenawa, falamos uma língua de fantasmas97 (KOPENAWA, 2015, p. 77), com “a cabeça cheia de esquecimento” (KOPENAWA, 2015, p. 10). Perdemos a capacidade, ou a oportunidade, de simplesmente viver. Obedecemos a um cronograma que constantemente nos afasta de nós mesmos, vivemos à base de aparelhos, dando importância ao que realmente não tem importância98. Com isso, perdemos a dimensão do maravilhamento e da admiração.

Neste contexto, Davi Kopenawa e Ailton Krenak se destacam como grandes embaixadores e porta-vozes das mensagens de outro mundo, físico e também encantado. Um mundo onde as relações de causalidade são descritas apontando para os pontos mais frágeis de nossa branca compreensão de mundo. “Eles são engenhosos, é verdade, mas carecem muito de sabedoria” (KOPENAWA, 2015, p. 65).

97 “a gente comum, que só tem olhos de fantasmas” (KOPENAWA, 2015, p. 111).

98 Eduardo Viveiros de Castro, no prefácio de A queda do Céu, atesta: “Esse é talvez, o juízo mais cruel e preciso até hoje enunciado sobre a característica antropológica central do ‘povo da mercadoria’ [...] Os brancos, em suma, sonham com o que não tem sentido. Em vez de sonharmos com o outro, sonhamos com o ouro” (2015, p. 38).

Por isso quero mandar minhas palavras para longe [...]. Se as escutarem com atenção, talvez os brancos parem de achar que somos estúpidos. Talvez compreendam que é seu próprio pensamento que é confuso e obscuro, pois nas cidades ouvem apenas o ruído de seus aviões, carros, rádios, televisores e máquinas. Por isso suas ideias costumam ser obscurecidas e enfumaçadas. Eles dormem sem sonhos, como machados largados no chão de uma casa (KOPENAWA, 2015, p. 76).

Ao contrário de nós, esses povos são capazes de ouvir e compreender os cantos da Terra. Leonardo Boff também nos relembra da importância de aprendermos a escutar o que a natureza nos fala através das nuvens, do canto dos pássaros, do relevo, da cor, do movimento e da temperatura das águas, do vento, e assim por diante99. Diz que “só dominamos a natureza, obedecendo-a; quer dizer, escutando o que ela nos ensina. A surdez nos dará amargas lições” (BOFF, 2018, p. 148). Embora eu considere que o desejo de dominação da natureza devesse passar a ser considerado como patológico e com cuidado nos consultórios psiquiátricos, trago essa citação pela ideia de obediência. Ser obediente é bem diferente de ser servil. Os povos ligados ainda às sabedorias da Terra são obedientes a uma força experienciada como maior que eles. Nós, modernos, em nossa ânsia de dominação, somos servis a um sistema de consumo que nos coloca dentro de uma dinâmica insaciável de aquisição de mercadorias. Na passagem a seguir, Krenak dá um exemplo de obediência:

Tem uma montanha rochosa na região onde o rio Doce foi atingido pela lama da mineração. A aldeia Krenak fica na margem esquerda do rio, na direita tem uma serra. Aprendi que aquela serra tem nome, Takukrak, e personalidade. De manhã cedo, de lá do terreiro da aldeia, as pessoas olham para ela e sabem se o dia vai ser bom ou se é melhor ficar quieto. Quando ela está com uma cara do tipo “não estou para conversa hoje”, as pessoas já ficam atentas. Quando ela amanhece esplêndida, bonita, com nuvens claras sobrevoando sua cabeça, toda enfeitada, o pessoal fala: “Pode fazer festa, dançar, pescar, pode fazer o que quiser” [...] No equador, na Colômbia, em algumas dessas regiões dos Andes, você encontra lugares onde as montanhas formam casais. Tem mãe, pai, filho, tem uma família de montanhas que troca afeto, faz trocas. E as pessoas que vivem nesses vales fazem festas para essas montanhas, dão comida, dão presentes, ganham presentes das montanhas. Por que essas narrativas não nos entusiasmam? Por que que elas vão sendo esquecidas e apagadas em favor de uma narrativa globalizante, superficial, que quer contar a mesma história para a gente? (KRENAK, 2019, p. 18-19)

99 Para os primeiros filósofos, pensar a partir da coisa presente no mundo ao redor é pensar o fogo, a água, o ar, o ser, a transformação de umas em outras, o nascer e o perecer. O rio heraclítico não é puramente simbólico: é banhando-se no rio concreto que percebemos a estrutura contraditória das coisas que são (UNGER, 2000, p.32).

Como dizia Heschel, a admiração “é a fonte do conhecimento” (2001, p. 25) é “a única bússola que nos dirige ao polo do significado” (2001, p. 29). Talvez, maravilhar-se ou entusiasmar-se seja mesmo um modo de conhecer. Um modo de fazer com que o mundo cresça em nós. Um modo de fazer com que sejamos contagiados pelo florescer da vida de tal modo que todos tenham lugar de fala e de escuta, de existência, portanto. Para Boff, “conhecer é, antes de tudo, um ato de comunhão. Conhecemos para participar da realidade autônoma do outro” (2000, p.13). Os povos originários nomeiam elementos da natureza para lhes atribuir personalidade e grau de parentesco100. Nós nomeamos lugares e lhes atribuímos título de propriedade. Esta me parece ser uma diferença fundamental.

Não pensem que a floresta é vazia. Embora os brancos não vejam, vivem nela multidões de espíritos, tantos quanto animais de caça [...]. Tampouco pensem que as montanhas estão postas na floresta à toa, sem nenhuma razão. São casas de espíritos, casas de ancestrais. Omama as criou para isso. São muito valiosas para nós. É do topo delas que os xapiri descem para as terras baixas, por onde vêm a nós quando bebemos yãkoana para chama-los e fazê-los danças [...]. Mas estas são palavras que os brancos não compreendem. Pensam que a floresta está morta e vazia, que a natureza está aí sem motivo e que é muda. Então dizem para si mesmos que podem se apoderar dela para saquear suas

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