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Espiritualidade versus Religiosidade

CAPÍTULO 3 A ESPIRITUALIDADE NAS PESSOAS IDOSAS: INFLUÊNCIA DA HOSPITALIZAÇÃO

2.2. Espiritualidade versus Religiosidade

Os conceitos de religião e espiritualidade são com frequência utilizados de forma indiferenciada, indicando a necessidade de clarificação e distinção. Nas últimas décadas esses conceitos apresentam alterações de definição e operacionalização (Pestana, Estevens, & Conboy, 2007; Cella et al., 1996): até aos anos 1970, a religião era o constructo amplo que incorporava a espiritualidade; mas, nos últimos anos, ocorre uma transformação conceptual, inverte-se a situação anterior, e a religião assume uma definição mais restrita em relação à espiritualidade, que é separada da prática de comportamentos religiosos tradicionais.

A religião é um sistema organizado de crenças, práticas, rituais e símbolos, com o propósito de facilitar a proximidade com o sagrado e promover a compreensão da relação com os outros (Koening, 2002). É uma forma ancestral da Humanidade tentar dar sentido à vida, através de práticas e crenças institucionalizadas. A religião está associada à participação ou adesão aos rituais religiosos, sendo a crença na existência de um poder sobrenatural, criador e controlador do universo, que deu ao Homem a possibilidade de existir após a sua morte (o corpo morre, não o espírito). A religião refere-se a algo externo, institucionalizado, formal; engloba os conteúdos de uma fé e traduz a extensão da crença do indivíduo que segue e pratica uma religião (Dalby, 2006).

As diversas definições de espiritualidade têm em comum a referência à busca por dar um sentido à vida. Ou seja, a busca pessoal da compreensão de questões fundamentais sobre a vida e seu significado (Koening, 2002), podendo ou não associar-se a rituais religiosos, sem relação com raça, etnia ou classe social, mas promovendo o bem-estar. É entendida

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como um atributo de qualquer pessoa que se questiona perante a simples realidade de existir, estando relacionada com o transcendental da alma e divindade. Relaciona-se com uma atitude ou ação interna, de ampliação da consciência e fortalecimento e amadurecimento da personalidade (Pestana, Estevens, & Conboy, 2007). É um conceito multidimensional que valoriza a experiência pessoal, incluindo: busca pessoal pelo significado e propósito da vida; ligação a uma dimensão transcendental da existência; experiências e sentimentos associados a essa busca. Em resumo, tem sido conceptualizada em três áreas principais: sentido e propósito; vontade de viver; e crença e fé em si, nos outros e em Deus ou algo transcendental (Pestana, Estevens, & Conboy, 2007).

2.2.1. TRAÇOS DE RELIGIOSIDADE EM PORTUGAL

Nesta secção abordam-se os traços de religiosidade em Portugal, uma vez que não há estudos populacionais sobre espiritualidade. Estes dados dão indicações relevantes sobre valores e crenças na população portuguesa.

Em Portugal até à revolução republicana de 1910, a religião católica apostólica romana foi sempre considerada a religião do reino. Só a partir dos primórdios do século XX a situação se alterou, pois foi consolidado um suporte jurídico sustentado na separação entre o Estado e a Igreja. A partir da segunda metade do século XX verifica-se, não só uma separação entre o plano jurídico e político, como uma separação ideológica. A instauração da ditadura militar em 1920 e a Constituição de 1933 reabilitaram a imagem e o poder da Igreja católica na sociedade portuguesa. O catolicismo não volta a ser a religião do Estado, mas através da Concordata de 1940 solidifica esta relação. Em 1974, e com a Nova Constituição, existe uma liberalização religiosa, promovendo igual liberdade e igualdade dos cidadãos, procurando abolir procedimentos discriminatórios. Independente da relação entre o Estado e Igreja, a sociedade portuguesa conserva a matriz cultural católica como demonstram diversos estudos (Vilaça, 2001).

Em Portugal existem poucos estudos centrados nas crenças religiosas. Os últimos dados oficiais sobre a religião em Portugal foram realizados pelo INE (2001) no censo: 96% referem ter uma crença religiosa (84,5% - católica; 1,41% - outra religião cristã; 0,55% - protestante; 0,20% - ortodoxa; 0,13% - muçulmanos; 0,02% - judeus); apenas 3,95%

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referem não ter qualquer religião. Estes resultados sugerem a importância da religiosidade na população portuguesa, indicando que a religião católica é fortemente predominante, sugerindo que os seus valores e crenças estão enraizados na população portuguesa (INE, 2001).

Outros dados derivam do European Value Survey (EVS, 1999 in Menéndez, 2007) que verificaram que 81% dos portugueses se afirmam católicos, sendo que 27% se sentem mais religiosos do que as pessoas dos outros países da Europa. Neste inquérito emerge uma forte confiança na instituição eclesiástica e um elevado nível de crença em Deus. Contudo, os portugueses encontram-se entre os países da Europa mais cépticos sobre a vida após a morte (40%). O inquérito realça um aumento de não praticantes entre os nascidos a partir de 1960, que continuam a considerar-se religiosos. Existe um forte decréscimo daqueles que consideram a religião muito importante, mas é escasso o grupo de pessoas que não atribuem qualquer importância à religião; ou seja, num país tão religioso, mesmo para os menos religiosos a religião é importante (Menéndez, 2007).

Os indicadores sugerem que Portugal caminha no sentido da religião ocupar um lugar menos relevante na vida dos indivíduos, mas não para a sua ausência. Esse estudo indica uma queda acentuada na crença, especialmente na crença nos pecados. As mudanças geracionais parecem implicar uma perda de intensidade e importância da religiosidade e vão reconfigurando as crenças religiosas (Menéndez, 2007).

Outro estudo foi realizado pelo ICS (Instituto de Ciências Sociais), através do

International Social Survey Programme (1998), que abordou a questão da religião em países pertencentes à tradição católica (Portugal, Espanha, Irlanda e Chile) e outras tradições religiosas cristãs (Noruega e Estados Unidos da América). Os resultados demonstram igualmente uma religiosidade católica tradicional difundida principalmente nas camadas populares portuguesas, especialmente entre idosos e mulheres dos estratos sociais mais pobres e menos instruídos, concentrados nos meios rurais e nas regiões do Centro e Norte do país (Cabral, 2001). Neste estudo confirmou-se a tendência das sociedades modernas de tradição cristã para o declínio inter e intrageracional da prática religiosa tradicional. Contudo observou-se que os inquiridos com práticas religiosas mais regulares são mais infelizes, enquanto aqueles poucas ou nenhumas práticas religiosas são

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mais felizes. Estes últimos vêem-se com mais capacidade e confiança para mudar o seu destino, enquanto os mais praticantes mais fatalistas e com baixa autoconfiança. Estes resultados são similares nos restantes países (Cabral, 2001).

O mesmo estudo demonstrou que a religião influência nos comportamentos e atitudes individuais, sendo que os contextos sociais influenciam a religiosidade. No catolicismo tradicional o sofrimento aparece como uma punição para os pecados. O sofrimento é visto como uma consequência de falhas morais. Este é o primeiro sentido de retribuição: “paga pelos teus males feitos”. O segundo relaciona-se com a resignação de quem sofre pacientemente, ou seja, a promessa de uma vida melhor “além morte” para os que sofrem no mundo terreno e consideram que Deus dá sentido à vida e o destino não se altera (Pais, 2001).

Estes dados demonstram a escassez de informação sobre a religiosidade e as crenças em Portugal, sendo mais escassos os dados relativos aos idosos, sua influência na velhice e nas atitudes perante a doença ou hospitalização.