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Trama narrativa Entrada- prefácio ou Resumo MPn0 Encerramento ou Avaliação final (Moral) MPnΩ Sequência Situação inicial (Orientação) MPn1 Situação final MPn5 Nó (Desencadeador) MPn2 Desenlace (Resolução) MPn4 Re-ação ou Avaliação MPn3 Fonte: Adam, 2017, p. 142.

A situação final (MPn5) da primeira sequência narrativa dessa notícia (ou seja, o fato de a utilização do óleo, sob acompanhamento médico, ter resultado em “uma melhora imediata, principalmente na parte de espasmos musculares e de sono”, com uma diferença absurda na qualidade de vida da paciente com tumor cerebral) orienta o olhar do interlocutor para uma visão positiva sobre a descriminalização do uso medicinal da maconha, já que o produto tem demonstrado um desempenho altamente eficaz no tratamento desse tipo de doença neurológica. A MPn5 da segunda sequência (“Conforme a decisão, deve-se seguir rigorosamente um método aprovado por técnicos e pelo juiz responsável — entre outros cuidados, há o limite de cultivo de até 1 metro quadrado da planta. / A produção do óleo é feita artesanalmente pela própria paciente, na casa dela, com o uso de uma panela comum de cozinha e os devidos cuidados de luz e adubo”) contribui para condensar o ponto de vista favorável à descriminalização da maconha para uso medicinal, na medida em que descreve os métodos de plantio e de manipulação da planta como algo bastante simples e pouco oneroso.

A sequencialidade narrativa pode, como vimos, orientar o ponto de vista do interlocutor na medida em que apresenta a este uma certa representação do mundo, que não é a única representação possível, mas sim a que pode ser mais persuasiva em relação aos objetivos pragmáticos do texto.

5.2.2.2 A sequência descritiva

A sequência descritiva, diferentemente das outras quatro sequências, não é caracterizada por um agrupamento pré-formatado de proposições em macroproposições. Adam (2011, 2017) a define, no nível da estruturação composicional, em termos de macro e micro- operações que geram períodos compostos por proposições descritivas. Em qualquer gênero do discurso, os segmentos descritivos são regidos não por uma linearidade intrínseca, pré- formatada, mas pelo plano de texto, que garante a transição das proposições descritivas à textualização (sequências) e, consequentemente, a própria construção da coerência de um texto. A textualização de segmentos descritivos, conforme Adam (2017, p. 80), pode ser operada também por organizadores textuais, que favorecem a passagem de um encadeamento linear de proposições descritivas (enumerações que funcionam como um tipo de grau zero do procedimento descritivo) à sequência (composição textual). O plano de texto e os organizadores são, assim, os responsáveis por impedir uma anarquia descritiva e assegurar a estruturação, a progressão e a hierarquização de uma sequência descritiva.

No nível configuracional/pragmático, Adam (2011, p. 217) considera a descrição como sendo genuinamente indissociável da expressão de um ponto de vista:

Inerente ao exercício da fala, a descrição é, de início, identificável no nível dos enunciados mínimos. Vimos que a teoria ilocucionária localiza a parte descritiva dos enunciados no conteúdo proposicional (p), sobre o qual se aplica um marcador de força ilocucionária F(p). A atribuição mínima de um predicado a um sujeito constitui a base de um conteúdo proposicional. [...] Do caráter indissociável de um conteúdo descritivo e de uma posição enunciativa que orienta, argumentativamente, todo enunciado, decorre o fato de que um procedimento descritivo é inseparável da expressão de um ponto de vista, de uma visada do discurso.

Sobre esse aspecto configuracional, também encontramos em Adam (2017, p. 76) uma afirmação importante, segundo a qual a orientação argumentativa de uma descrição “resulta da lógica de sua inserção em um texto particular (narrativo, argumentativo ou outro)”. Essa afirmação é feita para reforçar a tese de Vaporeau (1884), citada por Adam, de que a descrição inserida em uma narrativa não consiste em um mero ornamento desinteressado, mas, sim, em um recurso utilizado para atingir um determinado objetivo.

Conforme já expusemos, com base em Adam (2011, 2017), a ordenação de períodos descritivos em sequências descritivas é definida pela organização linear global dos planos de textos, não por um agrupamento pré-formatado de macroproposições. Por isso, consideramos importante que as sequências descritivas sejam analisadas, necessariamente, a partir da visão global que se tem do funcionamento de um gênero do discurso. No gênero entrevista jornalística escrita, por exemplo, de cujo plano de texto já tratamos na subseção 5.2.1, as sequências descritivas aparecem, prototipicamente, no início dos textos (no título principal, no título auxiliar e no lide), antes do núcleo transacional (perguntas-repostas[-avaliação]) que caracteriza a sequência dialogal do gênero. Vejamos como isso ocorre em mais uma entrevista concedida por Silas Malafaia, desta vez à revista IstoÉ (texto (08), anexo D).

Fonte: https://istoe.com.br/270456_JA+RECEBI+R+2+MILHOES+DE+UM+FIEL+/ Acesso em 22/11/2017.

A referida entrevista tem como título principal (primeira parte do plano de texto do gênero) um segmento descritivo composto pelo nome do entrevistado (Silas Malafaia) e por uma frase tipográfica atribuída a ele (“Já recebi R$ 2 milhões de um fiel”). Toda descrição implica, sempre e necessariamente, um referente (humano ou não humano), cujos atributos são descritos. É por isso que Adam (2011, 2017) classifica a tematização como a principal macrooperação descritiva. “Uma sequência descritiva se marca por um nome. Propus chamar de TEMA-TÍTULO esse pivô nominal, nome próprio ou nome comum que serve de base a uma predicação (Tema-Rema) e resume a descrição à maneira de um título (ADAM, 2017, p. 89- 90). Especificamente, temos, neste caso, uma operação de pré-tematização (ou ancoragem), por meio da qual o referente principal (ou tema-título) é denominado de cara e abre, assim, um período descritivo, composto também por uma operação descritiva de qualificação, por meio da qual é atribuída ao todo do referente uma propriedade. Interessante notarmos que essa qualificação não é atribuída por uma proposição enunciada pelo entrevistador (locutor privilegiado da entrevista), mas pelo próprio entrevistado. Trata-se de uma proposição “processual”43, por meio da qual o processo de receber (milhões de reais em oferta de um fiel) é assimilado ao próprio sujeito paciente da proposição, de modo que se pode inferir que Silas Malafaia é milionário. Diríamos, na esteira dessa interpretação, que essa proposição também qualifica, indiretamente, Malafaia como um milionário que se beneficia da fé alheia, pois o agente do processo em tela é qualificado como “um fiel”. Integradas, essas qualificações retratam, implicitamente, o referente Silas Malafaia pelo protótipo do pastor desonesto, que se

43 Achamos pertinente, a esta classificação proposicional, a tipologia semântica dos verbos inscrita no escopo da linguística funcional, para a qual o “Processo é o tipo semântico do verbo que ‘expressa um evento ou sucessão de eventos que afetam um sujeito paciente’ ([BORBA, 1996] p. 58). Esse tipo de verbo exprime um acontecer, como descreve o exemplo Rosa ganhou uma rosa”. (LUCENA, 2010, p. ___).

beneficia de uma imagem sacerdotal determinada pelo papel social que ele desempenha em sua igreja. O título da entrevista deixa entrever, assim, de partida, o ponto de vista que se alinha à tese de que pastores evangélicos se beneficiam financeiramente da fé de seus fiéis. Isso significa que o jornalista assume, de esguelha, um posicionamento em uma polêmica.

O título auxiliar da entrevista (Apontado como o terceiro pastor mais rico do Brasil, líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo anda de jato executivo, afirma faturar R$ 45 milhões por ano com a sua editora e diz que evangélico não é babaca) reforça o ponto de vista representado no título principal. A proposição descritiva “Apontado como o terceiro pastor mais rico do Brasil” alude à reportagem “The richest pastors in Brazil”, publicada pela revista Forbes. Ao fazer um apelo intertextual, o jornalista e a revista se eximem da responsabilidade pela qualificação atribuída a Malafaia, mas orientam argumentativamente o olhar do interlocutor para a representação construída pela reportagem da Forbes, aludida na entrevista, para esse referente. As duas proposições seguintes reforçam essa representação. A proposição “líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo anda de jato executivo” descreve Malafaia por uma operação de retematização (“líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo”), pela qual é atribuída uma nova denominação ao tema-título da descrição, e por uma operação de qualificação (“anda de jato executivo”), que descreve Malafaia por uma ação que lhe é habitual, tornando-a uma propriedade dessa pessoa (ADAM, 2011, p. 222).

O segmento “afirma faturar R$ 45 milhões por ano com a sua editora e diz que evangélico não é babaca” é composto por duas proposições descritivas introduzidas por verbos dicendi. De acordo com Monteiro (2016), os verbos afirmar e dizer estão entre os verbos dicendi recomendados por manuais jornalísticos para evitar a “editorialização da notícia”. Esse período, no entanto, apesar dos verbos dicendi supostamente “neutros”, reforçam a opinião de que Malafaia é milionário e sutilmente sugere que, de fato, como sendo um evangélico, ele é esperto (e não babaca) para fazer fortuna.

A sequência descritiva da entrevista em tela inclui, ainda, o lide – o exórdio do texto, que continua a apresentar características do entrevistado consideradas importantes (para despertar o interesse do leitor e levá-lo, assim, a ler a entrevista, e/ou para influenciar o modo de ver e de pensar do leitor) e que descreve a situação em que se deu a entrevista. Essa descrição da situação, interessa notarmos, é um aspecto composicional que diferencia a entrevista jornalística escrita da entrevista jornalística televisiva. Na medida em que o contexto da troca entre entrevistador e entrevistado na televisiva é dado pelo próprio regime de materialidade do gênero, na entrevista escrita, esse contexto somente se torna acessível ao leitor por meio da descrição feita pelo jornalista. Logo, o plano de texto deste gênero autoriza a expressão do

ponto de vista do jornalista, dado a ver pela descrição, sobre uma possível relação de contiguidade (macrooperação descritiva de relação) que assimila um referente a uma situação espacial e/ou temporal. É relacionando o referente Silas Malafaia à situação espacial em que se encontra por ocasião da entrevista que o jornalista reforça, mais uma vez o ponto de vista que se alinha à tese de que Malafaia é muito rico: “De Angra dos Reis, local escolhido para curtir 15 dias de férias em meio a passeios de lancha e banho de mar próximo às ilhas da região, Silas Malafaia, 54 anos, pregou a orelha no celular e, por quase duas horas, abriu o verbo”. Estar em Angra dos Reis, a cidade de hospedagem mais cara do Brasil, segundo ranking divulgado pela revista Exame em 201644, assim como passear de lancha (o referente lancha é seletivamente presentificado aqui por mais uma relação de contiguidade entre ele e o referente Angra dos Reis), denotam que Malafaia goza de um status socioeconômico incomum. As proposições que se seguem a esse período ampliam a tese mencionada e reforçam a representação estereotipada de que o pastor não só é muito rico (ou milionário) como enriqueceu às custas dos fiéis de sua igreja: “O líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo estava bravo depois de ser apontado pela revista americana ‘Forbes’ como o terceiro pastor evangélico mais rico do País, com um patrimônio avaliado em aproximadamente R$ 300 milhões. Ele pretende acionar judicialmente a publicação e provar que a sua renda pessoal

não chega a 2,5% do valor publicado. Um dos mais antigos tele-evangelistas do País, Malafaia é um ex-conferencista que se tornou pastor há apenas dois anos e meio e já administra 120 templos pelo Brasil. Nascido em Jacarepaguá, zona oeste do Rio, casado há

32 anos e pai de três filhos, o sacerdote conta que a maior oferta que um fiel deu em sua

igreja foi de R$ 2 milhões e a sua editora fatura R$ 45 milhões por ano”.

A última proposição do lide (É dele, ainda, a voz mais estridente contra o projeto de lei que criminaliza a homofobia) descreve Malafaia por duas operações de aspectualização: uma de fragmentação, pela qual o objeto da descrição é analisado por meio de algo que faz parte dele: a sua voz, e outra de qualificação, que classifica a voz do pastor como “a mais estridente” dentre aquelas que se opõem ao projeto de lei que criminaliza a homofobia. Trata- se, aqui, de outra questão polêmica na qual Silas Malafaia tem se posicionado publicamente, há muitos anos, de forma incisiva: a que divide os que aceitam a homossexualidade como algo natural e os que se opõem a essa tese. Essa polêmica (assim como os discursos em torno dela) se diluiu recentemente entre duas questões mais específicas: uma em torno da legalização de

44 Disponível em https://exame.abril.com.br/brasil/os-33-destinos-mais-caros-para-se-hospedar-no-brasil/ Acesso em 16/10/2018.

terapias de “reversão sexual” (a chamada “cura gay”) e outra em torno da criminalização da homofobia (mencionada pela entrevista).

A análise de segmentos dessa entrevista jornalística escrita mostra que um juízo de valor pode estar subjacente a uma sequência descritiva aparentemente isenta (porque não apela explicitamente para impressões subjetivas) e ser (re)construído pelo analista, desde que ele perceba os jogos pelos quais são atribuídos predicados a um sujeito. Nesses jogos, pudemos ver que os apelos intertextuais dão a impressão de distanciamento e de imparcialidade por parte do locutor em relação aos dizeres invocados para apresentar o entrevistado; lembremos, no entanto, de que “todo procedimento descritivo é inseparável da expressão de um ponto de vista, de uma visada do discurso” (ADAM, 2011, p. 217). Isso nos leva a defender que a sequência textual descritiva, apesar de ser considerada frágil do ponto de vista sequencial, é uma categoria textual forte do ponto de vista argumentativo/retórico, de modo que sua presença em um texto (legitimada, obviamente, pelas possibilidades de um plano do gênero) pode contribuir fortemente para a eficácia do projeto de persuasão do locutor, especialmente nos gêneros em que sua opinião não deve (por força de restrições institucionais/discursivas) ser expressa explicitamente.

5.2.2.3 A sequência argumentativa

Antes de iniciarmos a caracterização propriamente dita da sequência argumentativa e de seguirmos para a análise, faremos, como Adam (2017), a distinção entre o fenômeno discursivo e pragmático da argumentação e a unidade composicional tipicamente argumentativa. R. Amossy, sempre que delineia sua abordagem da argumentação no discurso, também diferencia os dois modos de argumentar, aos quais voltamos recorrendo a esta afirmação da autora:

De fato, a dimensão argumentativa marca a lacuna que separa uma concepção restrita de uma concepção ampla ou estendida da argumentação (é evidente que, aqui, o termo “restrito” não tem nenhum significado pejorativo). Cada qual repousa sobre uma visão diferente da prática da argumentação e da disciplina que lida com ela. Ambas são naturalmente legítimas e cada uma delas tem suas vantagens e seus inconvenientes [...]. A concepção restrita limita a argumentação ao desenvolvimento de um discurso que usa de argumentos para provar a legitimidade de uma tese; ela a estuda em sua singularidade, diferenciando-a de tudo o que não releva dela de modo estrito. Nesse sentido ela é, então, excludente. A concepção estendida é inclusiva: ela engloba a argumentação entendida no sentido estrito e a coloca no seio de suas preocupações, mas coloca-a no centro de um continuum que contém, em um de seus extremos, a polêmica como confrontação violenta de teses antagônicas e, no outro, uma orientação das formas de pensar e de ver, de questionar e de problematizar, que não se efetua pela via de um raciocínio formal. (AMOSSY, 2018b, p. 19-20).

Para nós, diferentemente de como faz Amossy, a diferença entre “concepção restrita” e “concepção ampla” de argumentação não reside na distinção entre discursos de visada argumentativa e discursos de dimensão argumentativa, mas, sim, entre textos de dimensão argumentativa e textos de visada argumentativa. Isso porque admitimos, com Adam (2011, 2017) e com Amossy (2005, 2006, 2018b), que há, por um lado, a argumentação como traço constitutivo do discurso humano (definida como o compartilhamento de opiniões, de crenças e de valores, que orienta o ponto de vista do interlocutor para uma dada direção, com a finalidade de influenciar seus pensamentos, sentimentos e ações) e há, por outro, a argumentação como o uso de procedimentos argumentativos (verbais) formalizáveis, tal como a sequência argumentativa prototípica. Em outras palavras, a primeira concepção toma a argumentação como um princípio da atividade linguageira, enquanto a segunda a toma como uma forma específica de dizer (e de buscar influenciar por argumentos).

Adam (2017) afirma que a argumentação como fenômeno constitutivo da linguagem “pode ser abordada quer no nível do discurso e da interação social, quer no nível da organização pragmática da textualidade” (p. 150). Nesta proposta de interface entre LT e AAD, estamos optando por privilegiar o primeiro modo de abordagem, sem deixar de reconhecer a segunda (já que recorremos parcialmente a ela e que adotamos, ao menos em parte, a noção de orientação argumentativa). Para a análise da argumentação como forma particular de argumentar, vamos recorrer à sequência argumentativa prototípica delineada no âmbito da ATD e assim esquematizada:

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