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Esquema narrativo de São Bernardo

No documento Tese de Doutorado de Vivianne Fleury de Faria (páginas 128-132)

Como é uma narrativa em primeira pessoa, o romance SB apresenta a duplicidade de pontos de vista e de foco narrativo, aos quais já nos referimos na

Introdução, e que de fato são típicas deste gênero do romance. SB é uma narrativa

“autodiegética”, como a proustiana (GENETTE, 1972). Neste tipo de romance o narrador sempre é duplicado em personagem. Com efeito, Paulo Honório, divide-se em personagem e em narrador.

Paulo Honório representa-se no momento da escrita, pensando os dilemas da escritura e da publicação, ao mesmo tempo em que narra as suas memórias, da infância até os cinqüenta anos. Como observa Genette (1972), sobre o romance autodiegético Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, «qu’il a là deux codes concurrents, fonctionnant sur deux plans de réalité qui s’opposent sans se rencontrer.36» (p. 223)

Neste tipo de narrativa, quando a personagem representa-se nos diferentes momentos do passado, assume o ponto de vista de um narrador em terceira pessoa, ou “heterodiegético”, que relata e comenta as ações pregressas da personagem. Quando se representa durante ato enunciativo, ele apresenta a perspectiva do narrador em primeira pessoa, também em momentos distintos da enunciação.

Segundo Genette (1972), na verdade, toda narração é em primeira pessoa, pois parte de um ‘eu’ que narra. O relevante é saber se este eu que narra é uma personagem e se esta personagem é o herói da narrativa. No caso de SB, Paulo Honório acumula as funções distintas de herói e de narrador, o que faz dele um narrador extradiegético/ autodiegético, como Gil Blas, “narrateus au premier degré qui raconte sa prope histoire37.” (GENETTE, 1972, p. 255).

O romance centrado no narrador autodiegético, sempre oscila entre o passado do enunciado e o presente da enunciação, levando o leitor de um momento a outro, de forma que, apesar dessa dissensão temporal e espacial, possa ter uma visão

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“que possui dois códigos concorrentes, funcionando sobre dois planos de realidade que se opõem sem se encontrar”. (tradução livre nossa)

do conjunto e decidir-se acerca de quem é a personagem. Ao mesmo tempo o leitor constrói uma imagem ideal do narrador-autor. Estes pólos narrativos distanciam-se mais ou menos à medida que se afastam ou se aproximam o tempo do enunciado do tempo da enunciação e as ações do eu-narrado da experiência eu-narrador.

No tempo da enunciação, o leitor tem diante de si o narrador durante o ato de escritura. Os dois primeiros capítulos, o início do III, o XIX e o último estão no tempo da enunciação. Apesar de estarem na enunciação, nas duas primeiras instâncias temporais acima citadas a narração é “ulterior” (GENETTE, 1972) aos eventos narrativos, como indica o uso do pretérito. E no início do III, no capítulo XIX e no final, a narração é “simultânea” (GENETTE, 1972), ou seja, coincidem as esferas das memórias do narrador e da história da personagem. A narração simultânea pode enfatizar a história ou o discurso (GENETTE, 1972). No caso dos capítulos XIX e XXXVI, a proeminência é do discurso confessional do narrador, e no inicio do III a ênfase está na história. Nos demais capítulos do romance – III ao XVIII, e XX ao XXXV – é a personagem narrada que está em destaque e a narração é “ulterior”, como no romance clássico (GENETTE, 1972).

Em SB o tempo da história apresenta dois níveis diegéticos. Um maior, da narração inteira de Paulo Honório, que começa na sua infância, passa pela quebra da lei básica – não matarás – que determinará antecipadamente o seu destino, e chega à tragédia final do herói. Apesar de o narrador nos contar brevemente a sua infância e a sua juventude – o que ele faz ao modo de relatório, usando predominantemente a técnica de “sumário narrativo” –, este percurso tem a função de contextualização dos eventos privilegiados pelo narrador, que dizem respeito à relação de Paulo Honório e Madalena.

Paulo Honório narrador concentra a narração nos últimos cinco anos de sua vida, entre o ato inaugural de sua história, – a conquista de São Bernardo –, e a sua decadência, o que instaura na narrativa um outro nível diegético, onde predomina a técnica da “cena”. Para Genette, “tout événement raconté par um récit est à um

niveau diégetique immédiatement supérieur à celui où se situe l’acte narratif producteur de ce récit.38» (GENETTE, 1972, p. 238)

O primeiro nível diegético é marcado por uma mudança na personagem- narrador, de Fomentador dos primeiros capítulos, para Amador, dos capítulos XIX e último. Esta evolução determina uma alteração da “focalização externa” dos primeiros capítulos, ou seja, restrita às características externamente observáveis dos objetos e pessoas, para a “focalização interna” – centrada no discurso confessional de Paulo Honório dos capítulos XIX e último. Em oposição, quando o narrador se representa como personagem nos diversos momentos do enunciado, que consideramos aqui o segundo nível diegético e o mais coincidente com a história, em geral a focalização é “externa”. Neste tempo do enunciado predomina a perspectiva do Fomentador. Estes níveis diegéticos estão em tensão dialética e, algumas vezes,

dilemática. Eles se aproximam e se afastam, afinam-se e opõem-se, como resultado

dos conflitos colocados pelo narrador-personagem, embora coincidam no discurso final do narrador.

A instância narrativa que faz estas escolhas e organiza os vários discursos do narrador e da personagem situa-se no nível extradiegético, do narrador-autor. Neste nível a função do narrador é apenas “regencial” (GENETTE, 1972), de organização da narrativa. Neste nível, o narrador encontra-se fora da história. Nos termos aqui colocados, um quadro do sistema narrativo de SB seria este:

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NÍVEL EXTRA-DIEGÉTICO NARRADOR AUTOR

NÍVEL DIEGÉTICO I PAULO HONÓRIO NARRADOR

(da infância até os 50 anos, ou de Fomentador a Amador) (quebra da lei básica “não matarás”)

NÍVEL DIEGÉTICO II PAULO HONÓRIO NARRADO (da conquista de São Bernardo até os

50 anos, ou o Fomentador) (quebra da segunda lei básica – “não

amarás”) ENUNCIADO INTERLOCUTOR ENUNCIAÇÃO LEITOR ENUNCIAÇÃO NARRATÁRIO

No documento Tese de Doutorado de Vivianne Fleury de Faria (páginas 128-132)